Não caiu bem nos meios políticos e diplomáticos portugueses o último encontro entre António Guterres e Vladimir Putin na cidade russa de Kazan, à margem da cimeira dos BRIC. O Nascer do SOL ouviu, ao longo da semana, várias vozes críticas quer de responsáveis políticos, quer diplomáticos e esta terça-feira a Iniciativa Liberal e o CDS apresentaram na comissão de Negócios Estrangeiros dois votos de protesto contra a participação do secretário-geral da ONU na cimeira. Os votos não foram aprovados graças ao voto contra dos deputados socialistas e à abstenção do PSD, mas o Presidente da comissão, o socialista Sérgio Sousa Pinto, votou ao lado dos deputados da IL e do CDS. Nos votos dos dois partidos critica-se a disparidade de critérios que levou Guterres a não estar presente na cimeira de paz da Suíça e ter marcado presença em Kazan. Para os deputados centristas este facto «mina a confiança das nações e dos povos nas Nações Unidas». A Iniciativa Liberal escreve no voto que apresentou que a participação de Guterres na cimeira dos BRIC «é uma afronta à causa ucraniana e um sinal preocupante de que o sistema multilateral poderá estar a falhar no momento em que mais se espera dele». Os liberais acusam ainda o português que lidera a ONU de ter dado «palco para reforçar a narrativa anti-ocidental e consolidar alianças com países que, em vários graus se têm mostrado relutantes em condenar a agressão russa».
Apesar de todos reconhecerem que o secretário-geral das Nações Unidas tem como missão manter as portas abertas com todos os interlocutores e, nesse sentido, a participação na cimeira dos BRIC não levanta dúvidas, o que os críticos não entendem é a diferença de critérios que levou Guterres a não ter querido participar na cimeira da Paz que se realizou em junho na Suíça. Na altura, 80 países, alguns deles membros dos BRIC, juntaram-se numa estância nos Alpes para discutirem um possível roteiro para a paz na Ucrânia. Putin não foi convidado para esse encontro e Guterres recusou participar.
Além da discrepância de critérios, que permite leituras sobre uma possível parcialidade do secretário-geral das Nações Unidas, o que levantou mais críticas no encontro da ultima semana foi a forma como António Guterres se deixou fotografar, numa posição que foi descrita como «reverencial», diante de Putin, o mesmo homem que tem um mandato de captura do Tribunal Penal Internacional. «Então ele é perseguido pela justiça internacional que a ONU representa e vai à sue casa encontrar-se com ele?», interroga-se um dos principais críticos do gesto de Guterres.
Guterres acusado de favorecer o sul global
Na leitura de um alto responsável socialista, o posicionamento que Guterres tem assumido nos últimos tempos, sobretudo no que respeita à guerra da Ucrânia, «está de acordo com o percurso que tem feito. No fundo, querendo agradar a países do chamado sul global que foram essenciais para permitir a sua eleição para o cargo». Este responsável, que prefere manter o anonimato, mostra-se preocupado com as consequências de um encontro que considerou «uma vergonha», dando razão à reação de Zelenski. «No momento em que a guerra está muito difícil para o lado da Ucrânia e em que ninguém sabe o que vai acontecer com as eleições nos Estados Unidos, este foi o pior momento para o secretário-geral ter aparecido na fotografia com o Putin».
Outra fonte ligada aos partidos do Governo, partilha a leitura de que, na origem da decisão de António Guterres ter participado naquele encontro, «na forma como ele aconteceu e foi divulgado», está seguramente uma relação forte que existe com países que não estão alinhados com o ocidente, na posição que assumem em relação à guerra da Ucrânia. «Países como a Rússia, a China, a Índia e outros BRIC, foram essenciais para as duas eleições», afirma este responsável político.
Quase todas as fontes ouvidas pelo nosso jornal concordam num ponto: pior do que o encontro com Putin, foi a falta de cuidado na comunicação, o que acabou por provocar um grave erro diplomático.
«Se tem de ter as portas abertas com todos, e nesse sentido é aceitável que tenha ido à cimeira dos BRIC, mas deveria ter antecedido a presença, anunciando que ia lá afirmar o respeito pelo direito internacional e contra a invasão da Ucrânia». De acordo com esta voz , Guterres deixou que a sua visita pudesse ter sido aproveitada por um dos lados: «Putin explorou ao máximo o momento», afirma.
A vassalagem a Putin
Outro ponto em que todos os responsáveis políticos ouvidos pelo Nascer do SOL concordam, mesmo os que não são tão críticos em relação à atuação de Guterres, é a falta de cuidado com a captação de imagens. «Devia ter acautelado a divulgação de imagens, aparecer à frente das câmaras a cumprimentar Putin tem um efeito devastador». Noutra perspetiva, afirma-se que não era possível evitar as imagens, mas isso deveria ter sido preparado com antecedência, evitando leituras, «a fotografia era previsível e por isso tinha que ter sido bem preparada e nunca permitir que o secretário-geral aparecesse com um ar subserviente à frente de Putin».
Santos Silva não compreende as Críticas a Guterres
O antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, mostra-se surpreendido pelas críticas à atuação do secretário-geral das Nações Unidas e diz ter visto com naturalidade a participação do responsável máximo da ONU na cimeira dos BRIC em Kazan. «Faz bem em ir a uma cimeira que atualmente representa 40% da população mundial».
O ex-ministro sublinha que o lugar de secretário-geral das Nações Unidas é um lugar de representação de todos os países do mundo e que «os BRIC agrupam muitos países do sul global, portanto é natural que vá». Para Santos Silva, é natural que «fazendo-se a reunião na Rússia, o que é sintomático, não faz mal aproveitar para um encontro com Putin». Já quanto às interpretações que tem ouvido, Augusto Santos Silva estranha as reações negativas, já que «na sua intervenção inicial denunciou a violação grosseira do direito internacional e assumiu a posição dos mesmos que o criticam».
O antigo responsável pela política externa critica o Presidente ucraniano por se ter indignado com a deslocação de Guterres à Rússia e com o encontro com Putin antecipando que as críticas de Zelenski «possam tirar peso aos possíveis resultados do encontro».
E, para concluir, Santos Silva vem em defesa do papel de António Guterres que, relembra é secretário-geral das Nações Unidas e não um mero chefe de estado. «A ONU representa todos os países do mundo e tem como obrigação fazer pontes que a União Europeia não poderia fazer», sublinha. Numa resposta aos que agora vêm criticar Guterres diz: «Não percebo por que não se entende que o secretário-geral faça coisas que, se fosse primeiro-ministro de Portugal não poderia fazer». A verdade é que nos últimos, pela primeira vez, houve um coro de críticas a Guterres vindas de vários políticos nacionais. Para já os críticos preferem manter o anonimato, até porque Guterres é português e, ao criticá-lo estas vozes sentem-se a prejudicar o país, numa altura em que Portugal quer ser eleito como membro não permanente das Nações Unidas