«Enquanto Veneza estiver de pé, as ações da Kodak serão o melhor investimento», escrevia em Marca d’Água (1992) o poeta russo-americano Joseph Brodsky , que visitou a cidade por 17 vezes. Brodsky estava completamente equivocado – a Kodak abriu falência em 2012, ao fim de 124 anos de existência. Mas, afinal, os poetas nunca foram conhecidos pelas suas aptidões financeiras ou faro para o investimento.
Seja como for, já muito antes da invenção da fotografia, as imagens de Veneza eram objeto de deleite e de desejo. Nomeadamente através das vedute, vistas da fantástica cidade que se ergue das águas do Adriático, que nelas se reflete e com elas às vezes se confunde. «Hoje vamos a Veneza e tiramos as nossas fotografias com os telemóveis; no século XVIII as coisas faziam-se de outra maneira», nota Luísa Sampaio, comissária da exposição Veneza em Festa – de Canaletto a Guardi, patente na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, até 13 de janeiro do ano que vem. Sem telemóvel ou máquina fotográfica, os visitantes de outrora levavam consigo a memória da cidade através de gravuras ou pinturas que foram «os primeiros ‘postais’ da cidade», continua Sampaio.
Embora esteja muito associada aos dois protagonistas da exposição em Lisboa, a veduta foi na realidade inventado por Caspar van Wittel (1652-1736), um holandês que passou grande parte da vida em Itália e que «terá pintado com uma câmara escura as primeiras vistas panorâmicas de Veneza». Em seguida, Lucca Carlevaris (1663-1730) é o primeiro homem a sistematizar e ‘fixar’ este novo género na pintura, através de «103 gravuras mostrando os principais edifícios de Veneza, organizados de uma forma tipológica».
O casamento de duas coleções
«Veneza, ela própria uma obra de arte, tinha tudo para fascinar Gulbenkian», refere o diretor do Museu Gulbenkian, António Filipe Pimentel. Nas casas leiloeiras de Londres, o milionário arménio adquiriu todas as pinturas de Francesco Guardi (1712-1793) a que conseguiu deitar a mão. Assim, o Museu Gulbenkian possui a melhor coleção de Guardi de todo o mundo, com nada menos que 20 obras. Porém, nem uma de Giovanni Antonio Canal (1697-1768), mais conhecido por Canaletto – e é aqui que entra o Museu Thyssen-Bornemisza, de Madrid, que emprestou os seus Canalettos, proporcionando assim um frente-a-frente entre os dois mestres.
«Entre Canaletto e Guardi, estilisticamente, há uma diferença enorme», explica Luísa Sampaio. «Sentimos que Canaletto é muito mais rigoroso, muito mais geométrico, muito mais preocupado com o desenho. Guardi é essencialmente um homem que está atento à atmosfera da cidade, ao ar festivo da cidade, e ao movimento das figuras. Cada pintor, com a sua oficina, especializa-se numa forma de olhar para Veneza».
Não era só uma questão de estilo – os dois pintores tiveram também fortunas muito diferentes. Canaletto (mais velho 15 anos do que Guardi) conheceu um sucesso enorme, muito graças ao cônsul britânico em Veneza, Joseph Smith. «Ele torna-se agente de Canaletto, permite que a obra de Canaletto seja divulgada em Inglaterra e que o Rei Jorge III venha a comprar três dezenas de pinturas de Canaletto. Joseph Smith faz de Canaletto um pintor caríssimo, conhecidíssimo fora de Veneza», e dá-lhe acesso «às coleções reais e à grande aristocracia inglesa».
Já Guardi – que era filho de um pintor e teve por sua vez um irmão e um filho também pintores – terá conhecido sérias dificuldades em vida. Segundo testemunhos da época, trabalhava para não passar fome (em finais do século XIX, um pintor de Milão haveria de fazer um quadro em que os mostrava a vender as suas pinturas pelos cafés da Praça de S. Marcos).
«Canaletto foi um pintor abastado – mas Guardi só muito tardiamente, no final da sua vida, é que vem verdadeiramente a ter encomendas, até lá tenta sobreviver», afirma a comissária. E, curiosamente, a diferença de cotações entre ambos mantém-se até hoje.
«Há relatos contemporâneos que dizem que a pintura de Guardi não vai durar sequer dez anos, pois ele era de tal maneira pobre que tinha dificuldade em adquirir materiais e tintas adequadas. O facto é que os quadros ainda cá estão».
O último bucentauro
«Temos algumas surpresas agradáveis nesta exposição», anuncia Luísa Sampaio. «Tentámos a partir do acervo das duas coleções dar alguma coisa mais e criar alguma cenografia, porque Veneza é essencialmente uma cidade cenográfica. Também queremos que as pessoas se divirtam aqui, que estejam em festa».
Uma dessas surpresas é um modelo do bucentauro, a sumptuosa embarcação cerimonial usada no ritual do casamento de Veneza com o Adriático. «Esta embarcação deslocava-se do palácio ducal, sede do governo da cidade, onde o doge residia, até à igreja de San Nicolò do Lido, e então atiravam um anel cerimonial à água, que celebrava o casamento simbólico de Veneza com o mar». O ritual iria manter-se «até à tomada da cidade por Napoleão em 1797, quando o último bucentauro foi incendiado por Napoleão e desmantelado».
Além da maquete do navio, o visitante é brindado com sons de gaivotas, das águas dos canais e dos sinos de Veneza, para uma experiência mais completa. «O nosso sonoplasta da fundação foi buscar 14 sinos diferentes, com intensidades diferentes, a distâncias diferentes, que vão tocar de vez em quando na exposição», revela a comissária. Em certos momentos estamos tão envolvidos no ambiente da cidade, que parece que só falta o cheiro da laguna – há quem diga que felizmente.
À flor da água
Canaletto – mais rigoroso – e Guardi – de pincelada mais liberta e vaporosa, na boa tradição da pintura veneziana – são ambos magníficos pintores. Mas um dos pontos cimeiros da exposição é sem dúvida um pequeno quadro do grande Bernardo Bellotto (1721-1780), sobrinho de Canaletto, Capricho com Rio e Ponte. «Bellotto era sobrinho de Canaletto, e o nome do tio era tão conhecido e importante que ele chega a intitular-se Canaletto. Isto é um exercício de fantasia e realidade. Temos edifícios que parecem ser nos arredores de Veneza, na zona do Brenta, e temos de repente uma torre à maneira do castelo sforzesco em Milão, ou seja, ele vai buscar um elemento real porque lhe interessa em termos de composição criar este tipo de equilíbrio. A luz é maravilhosa, temos uma paisagem maravilhosa em fundo, que lembra um bocadinho os arredores de Veneza, e temos vários componentes que formam uma paisagem que não existe mas é absolutamente convincente». As pinturas de Bellotto, ainda que por vezes mais carregadas que as do tio, emanam uma luz muito própria.
Algo de semelhante se poderia dizer de outro génio mais tardio, o norte-americano John Singer Sargent (1856-1925). «Sargent é filho de um diplomata americano, nasce em Florença, e vai a Veneza inúmeras vezes», comenta Luísa Sampaio. «Senta-se numa gôndola a pintar a cidade vista da água, de baixo para cima». A aguarela que fecha a exposição mostra a basílica de Santa Maria della Salute, uma igreja construída para assinalar o fim da peste de 1630. Um final adequado, para nos lembrar que Veneza é festa, encenação e alegria, mas também doença e decadência, como tão bem captou Thomas Mann em Morte em Veneza, escrito uns meros dois anos depois de Singer Sargent fazer esta pintura.