O procurador-geral da República, Amadeu Guerra, deu ontem posse a Rui Cardoso como novo diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), com uma mensagem clara: “Passados 26 anos (sobre a sua criação), a experiência acumulada e as exigências dos novos tempos justificam que se tente ir mais longe e alcançar melhores resultados”. Rui Cardoso, por seu turno, afirmou-se ciente do desafio quanto à modernização e uma maior eficácia do DCIAP: “É tempo de mudar, há muitos anos que é tempo de mudar”.
No seu discurso, o novo diretor do DCIAP, de 54 anos, prometeu ainda que vai cumprir aquela que é a sua “obrigação” constitucional: “Aplicar a lei a todos”, incluindo os que, “de forma mais assumida ou mais dissimulada, querem controlar a Justiça para continuar acima dela”, os “que não gostam que a Justiça recuse ser instrumental e submissa à política, à economia, à finança” e os “que julgam que o voto popular tudo legitima e tudo amnistia”.
Ciente de que o DCIAP está há muito tempo debaixo de fogo na opinião pública pelo tempo que demoram as suas investigações, Amadeu Guerra estabeleceu, no discurso que proferiu, as metas que quer ver alcançadas – nomeadamente, a modernização de procedimentos no tratamento dos alertas de branqueamento de capitais, uma aposta no arresto de bens dos arguidos investigados (e que são suspeitos de ter origem em crimes como tráfico de droga, branqueamento ou corrupção) e a respetiva perda a favor do Estado, hierarquia e “liderança” nas equipas de investigação e “estratégia” na gestão dos inquéritos.
“Ao nível das comunicações de branqueamento (mais de 18.000 em 2023) é necessário fazer algumas reformas, nomeadamente no domínio do registo automático das comunicações recebidas da parte das entidades obrigadas. Não é compaginável com os tempos atuais – de consolidação das novas tecnologias – que as comunicações das entidades obrigadas tenham que ser introduzidas, manualmente, no sistema de gestão do DCIAP. Introduzir 18.000 registos implica um dispêndio enorme de recursos humanos, que podem ser afetos a tarefas de investigação”, afirmou o PGR.
Perda de bens versus penas de prisão “Na criminalidade económico-financeira, é tão ou mais eficaz assegurar a perda de bens do que uma condenação em prisão. Por isso, é uma prioridade dinamizar e concretizar a recuperação de ativos”, declarou Amadeu Guerra. Recorde-se que a apreensão e perda imediata a favor do Estado dos bens que são suspeitos de serem produto de crimes, ainda antes do trânsito em julgado dos processos, é um mecanismo há muito consagrado em Portugal, embora com resultados ainda relativamente escassos, e foi uma das questões mais discutidas na campanha eleitoral para as últimas legislativas.
“É necessário que os magistrados especializados nestas áreas consigam localizar os bens em tempo útil e antecipem a apreensão de bens em data anterior à sua dissipação”, inclusive “conseguir a apreensão de bens noutros países, em particular nos países da UE”, afirmou ontem o PGR. A este propósito, Amadeu Guerra revelou que “estão a decorrer estudos, ao nível da Procuradoria-Geral da República, para conseguir a aprovação de uma estratégia do Ministério Público, devendo assumir o DCIAP um papel de liderança”.
Estratégia e liderança na direção do DCIAP, avaliando de forma pragmática os inquéritos onde se deve apostar e que se crê serem passíveis de gerar despachos de acusação – tendo coragem em assumir que noutros, sobretudo os mais antigos, isso não será possível – foi outro aspeto enfatizado pelo PGR e do qual incumbiu diretamente Rui Cardoso.
A capacidade de comunicação “É fundamental que seja encontrada uma estratégia que permita compatibilizar a celeridade dos inquéritos mais recentes (e prioritários) com a elaboração de despacho final nos inquéritos mais antigos. É fundamental enunciar as razões determinantes dos atrasos em cada um dos inquéritos, por forma a poder ultrapassar as dificuldades, nomeadamente através de uma atuação pragmática e decisiva do diretor do DCIAP”, afirmou. Para isso, acrescentou, “a capacidade de comunicação” de Rui Cardoso “representa uma mais-valia, num período em que pretendemos estar mais perto dos cidadãos e prestar contas do trabalho desenvolvido pelo Ministério Público”.
Ao mesmo tempo, o PGR promete acompanhar de perto o trabalho do DCIAP: “A liderança das secções especializadas do DCIAP” deve ser reforçada, em particular através de uma maior proximidade e efetivo acompanhamento dos inquéritos, com reporte ao diretor do DCIAP de informação detalhada sobre as dificuldades (nomeadamente da carência de meios, de perícias ou de insuficiências ao nível dos recursos de órgãos de Polícia Criminal). Deste modo, o diretor do DCIAP “pode encontrar os caminhos que permitam assegurar uma maior celeridade aos inquéritos”.
“Não nos cabe fazer a lei, apenas aplicá-la”, lembrou, por seu turno, Rui Cardoso. E foi mais longe na mensagem: “Respeitar a separação de poderes é, sem temer ou sequer hesitar, aplicar a lei a todos: também aos que as aprovam, também aos que a aplicam. Não é violar a lei, deixando de a aplicar àqueles que, de forma mais assumida ou mais dissimulada, querem controlar a Justiça para continuar acima dela; àqueles que não gostam que a Justiça recuse ser instrumental e submissa à política, à economia, à finança; àqueles que julgam que o voto popular tudo legitima e tudo amnistia”, adiantou. “Nisto, não deve haver qualquer temerária coragem, mas antes convicção; não se trata de missão, mas de obrigação. De obrigação que nos é imposta pela Constituição e que assumimos com convicção e tranquilidade. Não é justicialismo, é só… Justiça”, frisou.
O novo diretor do DCIAP deixou ainda um ‘recado’ para os que mais têm criticado o MP: “Os procuradores não se sentem menos legitimados por não terem sido eleitos. A sua legitimidade vem, robusta, da Constituição e da Lei. E é porque não depende do voto, de ter de agradar a maiorias impotentes ou minorias poderosas, que os procuradores podem e devem sempre respeitar a Constituição e a Lei”.
A legitimidade dos magistrados do MP, acrescentou, “vem também da forma como a cada momento exercem as suas funções, como isso gera ou não gera confiança em todos e cada um dos cidadãos. E para isso temos sempre de fazer melhor, mas também de comunicar melhor: de forma atempada e clara. Não devemos ser escravos das perceções públicas, mas não as podemos ignorar”, salientou.
“Quem não conhece e não compreende não pode confiar. E nós devemos querer que em nós confiem. E para isso é importante que conheçam o que fazemos, como fazemos e porque fazemos; que tenham a certeza de que para nós cada caso é único, que cada decisão é ponderada, que é aquela que julgamos a correta. Mas também que podemos errar”, concluiu.