Joaquim Poças Martins. “Já não há falta de água em Portugal para abastecimento público”

Para o especialista em gestão de água só falta resolver o problema da agricultura de regadio, já que entende que as cheias não se resolvem com barragens: E justifica: “Dão uma falsa sensação de segurança e podem inclusivamente aumentar o número de mortes potenciais”.

Eficiência, redução de perdas, monitorização, licenciamento, fiscalização, reutilização, gestão, governança, obras de reparação e renovação, qualidade das massas de água, proteção do consumidor, informação, comunicação, poderão ser, no entender do especialista, objetivos estratégicos mobilizadores de uma estratégia de água que une os portugueses. E alerta: “Temos muito a esperar da reutilização, da dessalinização e da gestão da água virtual. Sustentabilidade é a palavra chave”.

Como vê a questão da água? Tem dito que o problema não é a falta de água, mas a sua gestão…

É uma questão de gestão, mas as coisas aí estão mais facilitadas. Há boas notícias, já temos o abastecimento público resolvido. Isto significa que não há falta de água em Portugal para abastecimento, só faltava no Algarve e aí também o problema está resolvido. Em relação às cheias não se resolvem com obras. Fica apenas a faltar, e que é mais fácil, que é o problema da agricultura. Mas a solução para o problema vai ser mais fácil em 2024 do que era antes. O problema mais grave a ser resolvido foi no Algarve, e o Pomarão e a dessalinizadora já permitem que, nas próximas décadas, não haja falta de água nem para o estabelecimento público, nem para as atividades económicas ligadas ao turismo. Com a dessalinizadora e com o Pomarão fica libertada mais água barata para que a agricultura possa usar mais. Portanto, do ponto de vista do Algarve, este problema ficou resolvido e com uma vantagem, as câmaras ainda podem reduzir muito as perdas de água e vão certamente fazê-lo. Há uma grande quantidade de água no Algarve que dá para reutilizar e que não está a ser feito e com isso haverá no futuro muito menos escassez, deixando de haver estes problemas. No resto do país já praticamente não havia escassez para abastecimento público há muitos anos, em que as secas já não chegam às torneiras. Desde 1995, quando se fizeram os sistemas das Águas de Portugal, resolveu-se esse problema. Na zona do Alentejo, o Alqueva tem uma grande quantidade de água e nunca faltará água para abastecimento público porque a quantidade usada é muito menor do que a que é usada para a agricultura. Outra coisa que tem sido dita, e olhando para Valência, é que devíamos construir barragens em Portugal para evitar as cheias. Isso não colhe e acho que até seria uma péssima decisão. Não há nenhuma barragem no mundo que evite situações como a de Valência. Mais, barragens para minimizar mortes por causa de cheias dão uma falsa sensação de segurança e podem inclusivamente aumentar o número de mortes potenciais. Autorizar neste momento barragens para reduzir cheias diria que não, pois não quereria estar nunca associado a uma decisão dessas.

Por dar uma falsa ideia de segurança e de proteção?

As palavras secas e escassez são coisas diferentes, assim como cheias e inundações. Cheias são inevitáveis, os rios enchem e depois inundam os campos e as cidades. Em Portugal, há dois tipos de situações, por exemplo, no Porto, o rio enche e há inundações na ribeira do Porto e de Gaia, mas não há problema porque não há vidas em perigo. E porquê? Porque essas cheias são previsíveis. Sabemos sempre com antecedência que essas cheias vão acontecer e o que acontece, já há muitos anos, na ribeira do Porto e de Gaia é que as pessoas já sabem o que é que têm de fazer e não põem, por exemplo, tacos de madeira no rés-do-chão. Coisa diferente é o que acontece na zona de Loures, no Algarve, em Setúbal e Algés, mas, infelizmente, nessas zonas, o problema não se resolve com barragens. Isso era o que se fazia há uns anos. Aprendi isso há 50 anos quando estava na faculdade, mas já não ensinei assim. As barragens evitam pequenas e médias cheias, mas essas normalmente não matam, causam danos à propriedade, mas não matam. O que cria problemas são as cheias muito grandes e essas não se resolvem com barragens. Essas barragens para resolverem o problema das cheias teriam de ser profundamente gigantescas e tinham de estar vazias antes de setembro e para estarem vazias em setembro não serviriam para mais nada. O que dizem hoje as boas práticas de gestão da água e de engenharia? O que temos de fazer é recuos planeados nas zonas em que haja vidas em perigo, a melhor experiência internacional diz que as pessoas devem recuar para zonas mais seguras. E para essas situações tem de haver apoios, subsídios para que haja este deslocamento, porque as pessoas fizeram as suas casas, foram legalizadas.

Fruto de uma construção desorganizada…

É verdade, mas o que está feito está feito. No entanto, há muitas zonas do mundo e também em Portugal em que será inevitável as pessoas afastarem-se do mar e dos leitos de cheia e tem de haver apoios para isso. Deve-se gastar um milhão de euros para fazer uma obra de defesa como, por exemplo, uma barragem, ou deve-se gastar esse milhão em indemnizar pessoas a mudarem de sítio? Hoje em dia, a única solução é a segunda, até por uma razão, quem tem a sua casa num leito de cheia tem uma inundação e recorre ao seguro, tem uma segunda recorre ao seguro, mas à terceira já não há seguro. E se as pessoas deixam de estar cobertas pelos seguros vão ter de encontrar uma alternativa. Mas uma coisa é falarmos de perdas de bens, agora quando estamos a falar de perdas de vidas é outra coisa completamente diferente. E aí temos de ser mais corajosos em termos de política. Veja, por exemplo, os incêndios de Pedrógão ou as cheias da Madeira, não faz sentido voltar a fazer casas nos sítios que arderam, nem vale a pena reconstruir casas onde morreram pessoas nas últimas cheias. Aí vai ter de haver com certeza coragem e opção política para convencer as pessoas a mudarem de sítio e ajudar as pessoas a mudarem de sítio. Na gestão da água em Portugal, neste momento, as coisas estão mais claras e só falta resolver o problema da agricultura de regadio porque o abastecimento público está resolvido e cheias não se resolvem com barragens. Portanto, obras que sejam feitas vão ter de ser exclusivamente destinadas para uma atividade importante que é o regadio.

É um setor que, em determinado tipo de produções, usa e abusa da água?

Em Portugal, no que diz respeito ao regadio, graças aos agricultores, 80% daquilo que comemos é produzido em Portugal e o que não se produz dificilmente poderá ser feito porque nestes 20% que faltam está incluído o café, bananas, cacau, frutos tropicais e cereais, coisas que nunca serão produzidas em Portugal. Para produzir os cereais que faltam em Portugal precisávamos de cinco Alquevas.

É impensável tanto em termos dimensão, como em termos financeiros…

Mais grave, mesmo se os construíssemos, os agricultores não fariam lá cereais, da mesma maneira que neste momento não fazem no Alqueva. Alqueva é extremamente importante. Foi muito bem construído. Fiz parte do Governo que viabilizou Alqueva, e ainda bem que existe, mas neste momento, está a produzir sobretudo azeite a granel, se estivesse a contribuir mais para o PIB estaria a produzir coisas de maior alto valor acrescentado. E estar a aumentar o regadio corresponde, em princípio, a estar a replicar o Alqueva e temos de saber se é isso que o país quer.

Mas no caso do Algarve há muitas vozes contra a produção da pera abacate…

Aí há muitos mitos: o anti-abacate, o anti-laranjas, etc. No Algarve e no Alentejo, onde há escassez de água, os agricultores já são eficientes, a rega já é gota a gota e os agricultores dificilmente poderiam gastar menos água do que a que estão a gastar para produzir o que estão a produzir. No entanto, se quiserem aumentar o número de hectares é uma atividade económica que tem de em diálogo com o poder político procurar encontrar subsídios para obter mais água. Mas é mesmo só para isso, porque o abastecimento público está resolvido, o abastecimento para o turismo também e o golfe tem a possibilidade de ser totalmente regado com águas residuais, tratadas que neste momento estão a ser lançadas no mar. Neste momento, no Algarve, há 40 milhões de metros cúbicos por ano que estão a ser lançados no mar sem nenhuma utilização e depois estamos a ir buscar 15 milhões que custam mais 100 milhões de euros para o abastecimento. Se já reutilizássemos provavelmente nem teria sido necessário avançar com a dessalinização. Estes 40 milhões de metros cúbicos lançados para o mar dava para regar muito abacate e muita laranja. Por outro lado, o Algarve tem um ou dois Alquevas debaixo dos pés, são os aquíferos e há a possibilidade de os utilizar melhor. Claro que é perigosíssimo sugar a água junto ao mar porque se entra nos campos, ficam destruídos para sempre, mas se se montar uns medidores de salinidade no furos, aos primeiros índices de salinidade pode parar e ir usar a água de outro furo. Ou seja, com melhor gestão da água subterrânea teria uma capacidade muito maior do que as albufeiras que existem no Algarve e conseguiria libertar mais água para outras coisas, designadamente para agricultura. Isso significa que também temos muita água disponível para a agricultura e que a agricultura continue praticamente a não pagar a água, apesar de termos uma agricultura de baixo valor acrescentado. Por exemplo, no Algarve temos as melhores laranjas do mundo, mas nos últimos anos uma parte tem ficado nas árvores e outra tem sido vendida para sumo a granel de marca branca. Isso dá a ideia que não vale a pena fazer mais porque não se consegue vender e, ao mesmo tempo, tem concorrência das laranjas de Espanha, de Marrocos, apesar das nossas serem muito melhores. Do meu ponto de vista há muito a fazer para vender melhor.

Isso implica mudar mentalidades?

É uma questão de números. Neste momento, há 600 mil hectares de regadio em Portugal, parte é o Alqueva e os agricultores desses 600 mil hectares deveriam conseguir ficar mais ricos usando a mesma água. Isso seria fantástico e não estaríamos a artificializar os rios com barragens, com transvases, etc., cuja construção hoje tem impactos ambientais muito maiores e sua construção obedece a regras muito claras da diretiva Quadro da Água. Hoje, para fazer uma barragem num rio ou um transvase tem de se provar que não há alternativas, caso contrário, as autoridades não podem autorizar, nem subsidiam. E no caso da agricultura praticamente não há condições históricas para o pagamento da água e não há condições para os agricultores pagarem muito mais. Há exemplos internacionais mais violentos, mas não estou a ver que haja condições em Portugal para fazer isso. Lembro-me de Israel que, nos anos 90, alterou completamente o seu processo de gestão da água. O que fez? Nacionalizou a água – em Portugal, a água dos furos é privada – e a água para a agricultura passou a custar um euro o metro cúbico e a água reutilizada puseram a 30 cêntimos o metro cúbico, quando em Portugal pagamos três cêntimos o metro cúbico. O que aconteceu em Israel? Os agricultores ficaram mais ricos, abandonaram as culturas de baixo valor acrescentado e concentraram-se em culturas de mais alto valor acrescentado e passaram a importar, por exemplo, cereais que são culturas que se vendem a cêntimos o quilo, que se transportam com facilidade e são quase commodities. Neste momento, existe, a nível mundial, barcos de trigo que, tal como os do petróleo, vão para aqui, vão para ali consoante são comprados por este ou por aquele país. Ora, isto não é a solução para Portugal em 2024, Portugal não tem a secura que tem o Médio Oriente. E nem no deserto do Saara não há escassez de água. Há seca, mas não há escassez porque não há procura. A escassez é a falta de capacidade de responder à procura. E como é que elimino a escassez? Ou aumento a água e vou para o lado da oferta – coisa que, muitas vezes, temos vindo a ser tentados a fazer nas últimas décadas em Portugal e sempre que há falta de água vamos tentar fazer barragens, vamos armazenar, vamos transvazar, etc. e é uma opção – ou vamos viver com a água que temos, em que vamos reduzir os consumos, vamos ter de ser mais eficientes, vamos reparar as infraestruturas e vamos reduzir as perdas.

Ainda há municípios com perdas acima de 40%…

Ainda é mais grave do que isso. Em Portugal, temos quase 300 entidades gestoras e a média das perdas das entidades gestoras é de 37%, mas há entidades gestoras com perdas de praticamente de 80%. O facto de haver perdas tão altas, em 2024, é uma oportunidade porque há um problema que não está a ser resolvido que é o envelhecimento das infraestruturas, em que as infraestruturas estão quase todas em fim de vida e vão ter de ser substituídas. E quanto é que é preciso para isso? 15 mil milhões de euros. Como pode ser resolvido? Ou aumentando brutalmente as tarifas, o que seria péssimo e desadequado ou com uma coisa muito mais simples que é melhorar a eficiência das entidades gestoras porque é possível reduzir perdas abaixo de 15/20% em dois/ três anos, praticamente gastando muito pouco. E as contas são simples de se fazer: Há 300 milhões de euros por ano de potencial de melhoria e porque é que são 300 milhões? Essencialmente o volume de vendas, o que pagamos em tarifas nos sistemas de abastecimento de água em Portugal são 1500 milhões de euros, 20% de melhoria dá 300 milhões e esses 300 milhões em 50 anos fazem os tais 15 mil milhões que são suficientes para renovar integralmente as infraestruturas que existem sem aumentar as tarifas. Há quem advogue que se deve começar a resolver o problema da ineficiência das entidades gestoras aumentando as tarifas, mas não acompanho esse raciocínio e também acho que quem tem perdas de 40 a 50% não deve sequer ser autorizado a aumentar as tarifas.

Devia haver uma maior responsabilização por parte dessas entidades, principalmente as que são responsáveis por perdas de 80%?

Acho que sim, mas como é que se faz? Em Portugal, essas empresas são sobretudo de responsabilidade municipal e os municípios fizeram um excelente trabalho durante estes anos todos de levar a água a casa das pessoas, o saneamento, etc. Mas em termos de gestão, muitos desses sistemas, são pequenos, muitos dos municípios em Portugal têm dois mil, três mil, cinco mil, 10 mil pessoas pessoas e para fazer um sistema eficiente para um universo tão pequeno é difícil. O que é que os municípios conseguem fazer? Conseguem manter os sistemas a funcionar, mas com muita ineficiência. E depois vão com o orçamento municipal subsidiar isso e deixam de fazer outras coisas para subsidiar a água. É legítimo fazerem-no, agora é evidente que se os sistemas fossem mais eficientes pegavam nesse dinheiro e, em vez de estarem a subsidiar o serviço da água, estavam a subsidiar a conta da farmácia dos idosos mais pobres, os livros das crianças mais pobres ou as propina dos mais pobres.

Estamos, mais uma vez, perante uma decisão política…

A água é, em última análise, uma questão política. O que acontece é que as políticas medem-se pelos resultados e são julgadas nas eleições. Em Portugal já se ganham e se perdem eleições por causa da água. Já há exemplos concretos no passado. Em muitos países nórdicos, por exemplo, os temas mais importantes nas eleições, são de cariz ambiental. Em Portugal não são. Primeiro, porque felizmente não temos também problemas tão graves assim e Portugal, do ponto de vista ambiental, tem melhorado muito nos últimos anos. Mas ainda há muito a fazer.

Acha que este Governo tem maior abertura ou maior sensibilidade para estas questões?

Fiz parte de um Governo há 30 anos, fui secretário de Estado e conseguiu-se fazer, nessa altura, uma grande mudança porque estavam a chegar os fundos comunitários, criámos as Águas de Portugal, os sistemas em alta. E essas políticas mantiveram-se ao longo desses 30 anos. Mas cada vez que há um Governo novo temos de ter esperança e este fez uma coisa positiva: disse que aquilo que temos não é suficiente e, como tal, temos de desenvolver uma estratégia para a água, porque os planos que temos não foram suficientes, segundo chamaram-lhe Água que Une e não posso estar mais de acordo. Não faz sentido do meu ponto de vista haver uma animosidade, por exemplo, no Algarve, entre o golfe e a agricultura. Tem de haver harmonia e é fácil o golfe com água residual libertar água para agricultura. Agora dizer água que une e com isso ligar o Douro ao Algarve já acho que não une os portugueses.

A famosa autoestrada…

Há 30 anos estava no Governo e o país levantou-se quase em armas porque os espanhóis queriam ligar o Douro ao Guadiana. Percebo que haja lobbys nesse sentido e que são certamente legítimos mas acho que dificilmente conseguirão justificar porque e fosse fazer isso era só para a agricultura e seria para a agricultura de regadio para exportação, não é para produzir coisas para Portugal. Mas vamos aguardar pela estratégia liderada por Carmona Rodrigues, que foi uma excelente escolha, e depois vão ter a vida facilitada. E porquê? Porque a estratégia que vão definir já é mais fácil em 2024 do que era antes porque já não há escassez de água para abastecimento público, turismo e indústria, como disse no início. E comparando com experiências internacionais, por exemplo, na Austrália e na África do Sul, obter um terço da água proveniente da dessalinização do ponto de vista de segurança de abastecimento público é uma excelente solução. Aconteça o que acontecer não há falta de água para abastecimento público, nem é preciso fazer grandes restrições – e quando estamos a falar de restrições estamos a falar de em vez de tomar um banho duas vezes por dia, terá de tomar um duche dia sim, dia não, isso é aceitável durante um mês. E, eventualmente, ainda se pode até ampliar. Ou seja, a capacidade de ampliar a dessalinização em Portugal é infinita. E atualmente o custo da água dessalinizada é semelhante ao custo que as Águas de Portugal vendem hoje a água normal para as câmaras. Portanto, isso já não é nenhuma loucura. Por exemplo, Singapura bebe água dessalinizada, Israel também. Temos à nossa frente algo que ainda não tínhamos antes e que dá para utilizar. À dessalinização podemos fazer a que quisermos. Reutilização ainda não estamos a fazer e também podemos fazer se quisermos, em particular, no Algarve. No que diz respeito à eficiência, ainda temos muito a fazer no sistema de abastecimento público e na agricultura também.