Zbigniew Herbert. Afinal era uma questão de gosto

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Depois de uma breve antologia poética assinada por Jorge Sousa Braga e vertida a partir das traduções em inglês, chega-nos, por fim, a voz de um dos poetas europeus que melhor soube responder aos desafios éticos do último século. Pela mão de Teresa Fernandes Swiatkiewicz, e com soluções de tradução cirúrgicas, “Poesia Quase Toda” é um acontecimento que deveria sobressaltar-nos, por trazer a esta língua a firmeza de um registo poético que, sendo impermeável ao tom de cantilena do lirismo vendido como perfume, nos traz uma lucidez e um exame de consciência que a nossa poesia ainda não conhecia.  

Poucos como ele são capazes de ser comoventes e trocistas ao mesmo tempo, de nos oferecer um duro balanço existencial aliado a uma saborosa e sôfrega percepção do mundo e do diverso. A sua poesia é de uma claridade e contenção magistrais, talvez por reconhecer que estamos a viver numa época de enfraquecimento da realidade, como dizia Lukács, e que isso implica reaver um sentido virgem àquelas palavras que foram demasiado prostituídas, resgatá-las dessa exuberância aluvial, e, também assim, procurar “ensinar-nos a desprezar a moleza de coração, essa falsa bondade que por alguns instantes, de boa-fé, oferece e promete arrebatadamente mares e montanhas, convicta da sua própria generosidade, para depois recuar, por muito bons e válidos motivos, quando chega a hora da verdade” (Claudio Magris). Mesmo se reconhecia que o discurso claro e firme, mesmo sinuoso e irónico como o da sua poesia não tem grande hipótese de resistir face àquilo que ele chamava o “alarido da tribuna a espuma negra dos jornais”, a única coisa que restava então era elevar esse princípio de lisura a regime estético decisivo, com um vigor de ordem moral. Ele diz-nos num dos seus poemas que o seu propósito era fazer da imaginação um instrumento de compaixão, exigia-lhe que fosse um modo de ir até ao limite, às últimas consequências, querendo entender e “logo, dar vida aos mortos/ preservar a aliança// a imaginação do Senhor Cogito/ tem movimento pendular// move-se com precisão/ de sofrimento em sofrimento// nela não há lugar/ para os fogos-de-artifício da poesia// gostaria de continuar fiel/ à claridade da incerteza”.

Zbigniew Herbert é um poeta crucial da nossa época, assumindo uma exemplaridade que o coloca a par de outros dos grandes nomes da poesia europeia do último século, como Rilke, Eliot, Celan, Auden, Heaney e uns poucos mais, alguém que assume a dificuldade, impossibilidade e, no entanto, dignidade e paixão de viver. Um poeta familiarizado com a morte e capaz de ouvir todas as vozes da vida, conjugando em tudo o que escreve a precisão àquela urgência que apura detalhes fabulosos, formulações contundentes e que o levam a confessar que “trocaria todas as metáforas/ por um termo/ arrancado do peito como uma costela”. Embora as suas imagens tenham aquele grau de propriedade e encanto que se espera da imaginação de um explorador perdido, aquilo que realmente o distingue, que tanto fascina e perturba na sua poesia, é isso a que William Blake chama “o sagrado do pormenor mais ínfimo”. Porque esta é uma obra que se serve de exemplos, figuras, que exerce uma torção dos sentidos, recorrendo muitas vezes à História e à mitologia, operando como um núcleo de metamorfoses, jogando com as zonas cinzentas, os momentos de incerteza, os quais, como portas, abrem para outro espaço diferente e secreto, para um lado insuspeitado das coisas. Os seus temas atravessam como um corredor íntimo diferentes épocas, os episódios que convoca flutuam como um destroço dos séculos, são fragmentos de uma História antiga ou recente, sedimentos de idílios e conflitos que o vento, por um instante, levanta como poeira. Na ausência de Deus, há algo aqui que se exprime diante do vazio, que vibra na continuação de um soluço, do grito, da respiração, da fuga, do nublar-se do mundo nos olhos de quem morre, da queda, do fim. Ainda recorrendo a uma formulação de Magris, aquilo que a obra de Herbert parece buscar é “esse ruído humilde, no qual se fundem outros sons trémulos, é o eco do fragor distante, onda sonora que viaja através dos séculos, ilusoriamente doce com todo o som de dor que nos chega do passado e do qual colhemos apenas o sortilégio e não o sofrimento”.

Como nos diz um dos seus primeiros poemas, “todos os dias renovo o olhar/ todos os dias cresce o meu tacto/ estimulado pela proximidade de tantas coisas// a vida borbulha como sangue/ Suaves as sombras derretem-se/ não deixemos morrer os caídos –// quiçá uma nuvem passará em sua memória –/ o perfil desgastado de moedas romanas (…) a cidade situada à beira da água/ lisa como a memória de um espelho/ reflecte-se na profundeza das águas// e voa rumo a uma estrela longínqua/ onde o fogo exala seu cheiro distante/ como uma página da Ilíada”.

E, contudo, ainda que esteja comprometido com essa concisão e despojamento de toda exuberância e artifício que não deixa de ser decisivo no volte-face que opera a escrita poética, talvez a sua habilidade esteja na forma como este tom menor consegue disfarçar a loucura poética de bom senso simplório e até de uma obstinação carrancuda. Afinal, J.M. Cotzee não deixa de reconhecer na introdução que assina à antologia da obra poética de Herbert que acaba de nos chegar a sua “grandeza retórica e ferocidade moral”, sendo estas qualidades que normalmente não lhe associamos, mas que não deixam de ser apercebidas “desde o início, por detrás de toda a ironia”. Talvez por ter aprendido a defender-se da História, do pesadelo para o qual esta atirou tantos daqueles com quem ele conviveu.

Czeslaw Milosz disse certa vez que Herbert conseguiu sobreviver à guerra e ao Estalisnismo por causa das “suas virtudes pessoais”, uma saúde que ser resistente e uma carapaça emocional bem como uma mente que foi levada a aferrar-se à ordem, como se esta pudesse ser a sensualidade que resta num mundo estropiado. No entender de Cioran, uma mente séria e honesta não consegue conciliar-se nem perceber nada da História, sendo esta, em contrapartida, uma disciplina que faz as delícias do erudito cínico. Herbert parece ter estabelecido um estranho pacto para manter intacta a sua mente, a sua persistência e lucidez, servindo-se da “lente da ironia que escolhe e distorce”, como nos diz Coetzee. A sua erudição permite-lhe uma distância que não vai ao ponto de o colocar do lado da frieza, sendo a ironia apenas uma estratégia daquele que confia na capacidade do sentido moral para se restabelecer. É preciso lidar de algum modo com o desastre, não deixando que a indiferença tome conta do seu olhar, impedindo-o também de, no seu classicismo, assumir uma relação abstrata ou pedante com o mundo à sua volta. De algum modo, e na linha do que reconhece Magris, ele entendeu que existe um futuro do passado, um seu devir que nos transforma, uma vez que, tal como a realidade, também o eu que a vive e a olha se descobre plural. “Atravessando os lugares referidos pelas crónicas épicas de há trinta anos, temos a impressão de despedaçar finas paredes invisíveis, camadas de diferentes realidades, ainda presentes embora não observáveis a olho nu, raios infravermelhos ou ultravioletas da História, imagens e instantes que já não podem impressionar uma película mas que são, que existem tal como os electrões fora do alcance da experiência sensível.”

Se à superfície não faltam os sinais de um desconsolo tremendo, com cada vinco Herbert vai abrindo margem, suspendendo a marcha da devastação, recuperando o fôlego, e na pureza do vocabulário, na expressividade rítmica dos seus versos livres e sem pontuação, o equilíbrio sintáctico devolve uma graça inusitada a certas expressões idiomáticas. Assim, como quem não quer a coisa, ele vai reparando a linguagem, fazendo-nos compreender como está inscrita na sua estrutura uma elegância e uma capacidade de conceptualizar o mundo, tendo esse poder de construção funcionado sempre como uma forma do homem sobreviver frente às imposições que o dilaceram. Por essa razão, como nos lembra Coetzee, a ironia pode vir revestida de ironia. “A decisão de se tornar ironista para toda vida pode, ironicamente, virar-se contra si própria; ou, para lembrar a figura extensiva de ‘Um coração pequeno’, a bala disparada há décadas pode dar a volta ao mundo e acertar nas costas de quem a disparou.”

Percebemos, deste modo, como funciona este ardil, esse doloroso expediente, daquele que constrói uma linguagem humilde, mas prenhe de subtilezas, de ressonâncias e encadeamentos, golpes que regressam, como uma estratégia que se serve de uma persona autodepreciativa apenas para proteger o seu romantismo, essa intimidade que, nos seus movimentos, não abdica do clássico cânone da beleza e da moral. De resto, depois da Polónia se ver livre do pesadelo soviético, Herbert atribuía a sua relutância em vergar-se ao poder, pondo-se de joelhos como tantos outros, não à sua coragem ou força de carácter, mas ao seu sentido do gosto, ou seja, a sua incapacidade de suportar a execrável retórica do regime, a dialéctica do torturador, com a sua racionalidade mesquinha, a sua lógica que não passa de uma forma de extorsão, sem qualquer elemento de graça. “Por outras palavras, pode-se dizer que foi afinal um certo refinamento estético que lhe salvou a alma: a beleza teve assim um papel subversivo na sua recusa em engrossar as fileiras daqueles que se deixaram corromper”, vinca Charles Simic.

Essa insubordinação silenciosa mas determinada que caracterizou a sua vida pública encontra eco na poesia, naquele registo lúcido, tantas vezes satírico, que se apoia na dicção simples, numa sintaxe meticulosa, para se debater com essas zonas cinzentas em termos que colocam ética e estética ao mesmo nível, apontando tantas vezes para a ténue fronteira entre estas duas categorias. Leia-se “O poder do gosto”: “Não não exigiu grande carácter/ a nossa recusa discórdia e teimosia/ bastou-nos um pouco da coragem necessária/ mas afinal era uma questão de gosto/ Sim daquele gosto/ em que residem as fibras da alma e as cartilagens da consciência (…) De facto a sua retórica era deveras grosseira/ (Marcus Tulius revirava-se na cova)/ cadeias de tautologias noções boçais/ dialéctica de carrascos sem fineza de raciocínio/ sintaxe desprovida da beleza do conjuntivo/ É assim que a estética pode ser útil na vida/ não se pode menosprezar o estudo do belo/ Antes de aderirmos à ideia urge investigar/ a forma da arquitectura o ritmo de tambores e pífaros/ as cores oficiais o vil ritual dos funerais// Nossos olhos e ouvidos – príncipes dos sentidos –/ recusaram obediência escolhendo orgulhosos o exílio// Não não exigiu grande carácter/ bastou-nos um pouco da coragem necessária/ mas afinal era uma questão de gosto/ Sim daquele gosto/ que manda fugir esboçar um trejeito um sorriso de escárnio/ mesmo que para isso tivesse de rolar o precioso capitel do corpo – a cabeça”.

Quanto à esperança, não deixa de emergir como algo de sub-reptício, está alojada entre as costelas destes poemas saturados de ironia, nas entrelinhas. No fundo, a ironia é uma espécie de código, um disfarce para que o canto passe ileso nas alfandegas onde essa beleza distintiva e que restitui um sentido de dignidade aos homens é sempre suspeita e alvo de um exame degradante. Por isso, e diante das autoridades, ele assevera a sua inabilidade para encantamentos: “repito tão-só uma ladainha de palavras comum cruel”. Vai falando como quem se soubesse observado, escutado, reconhecendo-se oriundo de uma “terra incerta como um dente-de-leão”, ao mesmo tempo que frisa que “no final a fidelidade às coisas abre-nos os olhos”. Ou seja, paga os seus impostos, consciente de que, depois de anos de sufocação, é natural que já só resistam esses “neuróticos supersticiosos” que levam nos bolsos estatuetas de sal simbolizando o deus da ironia, já que nesse tempo não há um deus maior. E, no entanto, “eu passarinho sei qual é o meu valor sim/ não sou como o grilo debaixo da pedra/ livre leviano porque só tem carapaça/ que em breve se tornará um monumento vazio”.

Há lugares e épocas onde os homens abrem os jornais pardos apenas para confirmar que estes continuam calados. Aprendem então a ler nas mais subtis variações uma possibilidade de se evadirem, tornam-se atentos, deslocando-se sobre essa fronteira, de modo a sentir como “as pedras feridas imploram/ a água morta implora”. Tornam-se habitantes dessa “fronteira impossível/ entre a matéria animada/ e inventada/ entre um feto da floresta/ e um feto do Larousse/ num talo seco/ sobre uma pata/ nos cabelos do vento/ no que se ausenta da realidade/ mas não tem coração que chegue/ nem força”.

Herbert admite a possibilidade de o seu tempo não oferecer qualquer margem para a alegria – “tão pouca alegria (…) nos nossos poemas, Ryszard”, escreve ao amigo Krynicki, “tão poucos crepúsculos luminosos espelhos grinaldas arrebatamentos”… Mas se isso parece condená-los à asfixia, a uma visão do mundo restrita e monótona, ao mesmo tempo confere àqueles que resistem essa condição espantosa de descreverem o mundo da forma mais transparente e bela, com a total consciência da sua fragilidade: “Filhote de territórios vazios/ de um mundo impreparado/ esfrego as mãos até sangrarem/ trabalhando sobre o princípio”. Escrevem como se tudo estivesse ainda por fazer: “tendo escrito a história natural/ o inventário completo das espécies/ desde o grão de sal até à Lua/ desde a ameba até ao anjo// isto é para vós/ caríssimos vindouros/ para que vossos sonhos leves/ não os esmague a pedra/ quando a noite voltar a devastar o mundo”. E aquilo que sabem estes homens formados numa época de confronto com a barbárie totalitária, é que o próprio fim do mundo não passa de uma ingenuidade: “Infelizmente o mundo não tem fim.”

Neste aspecto ele denuncia essa ficção do apocalipse, que, mais tarde outro poeta, o alemão Hans Magnus Enzensberger, denunciaria como outra das ficções do nosso repertório ideológico: um afrodisíaco, um pesadelo, uma mercadoria como qualquer outra. E se Herbert vivia nauseado com a ideologia, num dos seus poemas nota que desde a infância a imortalidade sempre induziu nele uma sensação de inescapável torpor. Invejar o quê aos deuses?, interroga ele. Em seu entender, o universo pode até ter alcançado um equilíbrio perfeito, mas não é isso o que o torna um lugar mais aprazível para quem tem de viver nele. E mesmo que lhe fosse dada a hipótese de ingressar no paraíso, reconhece-se que até seria capaz de “submeter-se a todas as torturas/ de persuasão gentil/ mas defenderá até ao fim/ a maravilhosa sensação de dor” Não abre mão do sofrimento, uma vez que entende que a humanidade reside nessa espécie de miséria, que no confronto com cada dificuldade desenvolve a sua astúcia. No fim, reconhece como “só o sangue/ que entoa tautologias obscuras/ liga margens longínquas/ com linhas de mútuo entendimento”. E esta talvez seja a mais perfeita arte poética que podemos extrair dos seus versos, estando Herbert comprometido não com a eternidade, mas com a beleza de tudo aquilo que, sendo efémero, perecível, carrega a morte a morte dentro de si, “como o fruto o caroço” (Rilke).

Nascido em 1924, em Lwów, na Polónia (hoje Lviv, na Ucrânia), com 15 anos, Herbert viu a sua cidade natal ser ocupada pela União Soviética na sequência do Pacto Molotov-Ribbentrop e, 19 meses depois, pelos nazis, após o colapso da aliança e o ataque de Hitler à Rússia. Sendo aquela uma cidade movimentada e que devia a sua fluência cultural à vizinhança entre uma mistura de polacos, russos, ucranianos e judeus, em poucos dias viu-se transformada num campo de concentração, segunda recordava Herbert. O seu professor de Ciências foi morto e outros foram enviados para a prisão. E ele não o esqueceu, tendo-lhe redigido uma contida, aparentemente lacónica, e, por isso mesmo, tão pungente elegia: “Não consigo lembrar-me/ do seu rosto (…) fora ele o primeiro a mostrar-nos/ a perna de uma rã morta/ que tocada com uma agulha/ bruscamente encolhia// fora ele quem nos iniciara/ através de um microscópio dourado/ na vida íntima/ do nosso antepassado/ a paramécia// fora ele quem trouxera/ um grão escuro/ e dissera: esporão-do-centeio// foi porque insistiu/ que com dez anos de idade/ me tornei pai/ quando após uma espera enervante/ uma castanha imersa em água/ deu à luz um rebento amarelo/ e tudo exultou/ em redor// no segundo ano da guerra/ mataram o professor de Ciências/ os canalhas da História// se foi para o céu –// talvez agora passeie/ na luz de longos raios/ calçando meias cinzentas/ com um grande saco/ e uma caixa verde/ pendurada alegremente nas costas// mas se não ascendeu –// quando num trilho da floresta encontro/ um escaravelho que trepa/ por um montículo de areia/ aproximo-me/ baixo-me/ e digo:/ – bom dia, senhor professor/ permita-me que o ajude/ desloco-o delicadamente/ e fico a olhar para ele demoradamente/ até desaparecer/ na sala escura de professores/ no fim do corredor das folhas”.

Herbert participou activamente na resistência polaca durante a ocupação alemã, prosseguindo os estudos numa universidade clandestina. Foi um período traumático, em que dezenas de povoações foram reduzidas a escombros e os seus habitantes massacrados, levando à morte de seis milhões de pessoas numa população de 30 milhões. Evidentemente, isto teve um impacto decisivo na geração de poetas do pós-guerra. “A história ensina-nos que as nações e as suas conquistas podem ser obliteradas de uma forma quase total”, disse Herbert numa entrevista citada na introdução de Selected Poems de 1977. “Durante a guerra, vi um incêndio consumir uma biblioteca. O mesmo fogo devorou indiferentemente livros sábios e estúpidos, bons e maus. Então dei-me conta de que o niilismo é a maior das ameaças que enfrenta a cultura. O niilismo do fogo, da estupidez e do ódio.”

Em 1944, antes da chegada do Exército Vermelho, a família de Herbert fugiu para Cracóvia, onde ele estudou Direito e Economia, frequentando ainda cursos de Filosofia e História da Arte. Como antigo membro do Exército Nacional anti-comunista, era considerado politicamente suspeito, e, embora tenha sido admitido na União dos Escritores Polacos, renunciou à vida subsidiada, vivendo uma existência apagada, entre diferentes empregos, de editor de um jornal económico a bancário, empregado de uma loja, contabilista numa cooperativa, bibliotecário e, por fim, administrador da Associação de Compositores Polacos. Num período mais difícil, viu-se obrigado a suplementar o rendimento vendendo o seu sangue. Escrevia versos desde os 15 anos, mas teve de esperar até 1950 para ver os primeiros poemas saírem numa revista de pequena circulação, e o seu primeiro livro, “Corda de Luz”, só saiu em 1956, quando já tinha trinta e dois anos. Nesses anos, com a repressão das actividades políticas e culturais imposta pela União Soviética aos países satélites, tanto o ensino como a arte viram-se submetidos à camisa-de-forças do realismo socialista, Herbert tornou-se um desses tipos admiravelmente não cooperantes, e mesmo se a sua crescente reputação viria a permitir-lhe viajar para fora do país, sendo convidado como professor visitante no Ocidente, de acordo com um artigo do Süddeutsche Zeitung, sempre que a polícia secreta pedia a Herbert que escrevesse relatórios sobre essas viagens, ele enchia-os “com interpretações dos poemas de Czeslaw Milosz (…) bem como de longas observações culturais e filosóficas”.

Num ensaio dedicado a Leonardo da Vinci, Herbert diz-nos algo dessa consciência profunda, que, não podendo esquivar-se à desolação que testemunhou, acaba por perturbar a superfície de uma obra de arte: “Observando os quadros de Watteau, Chardin, Renoir, vê-se que possuem a mesma beleza de superfície, a mesma tranquilidade, a mesma graça no uso da cor. Já Leonardo sabia demasiado para um pintor. Parece que, quando pintava as suas belas cabeças, não conseguia deixar de ser assediado pela lembrança do crânio, do cérebro, da rede de veias, de tudo o que aprendera com as autópsias a cadáveres. Não deveria um pintor conhecer apenas a pele do mundo? A cada passo, Leonardo, o pintor, era emboscado por Leonardo, o anatomista. E daí a triste sabedoria e a melancolia do conhecimento nos seus quadros.”

O poeta, contrariamente ao pintor, não deve cingir-se à superfície, pode isolar as suas impressões umas das outras, jogar com diferentes níveis de entendimento, permite-se avançar entre disposições contraditórias, expressando esse clamor trovejantes das suas suspeitas, de tudo aquilo que lhe assalta a razão. Mas Herbert também sentia muitas vezes que a alegria lhe escapava, aquela beleza inesgotável que se aproxima do delírio estava-lhe vedada. Num certo sentido, tal como Leonardo, sabia demasiado para se abandonar a visões deslumbrantes, sentindo uma espécie de pudor, como se levasse inscrito nos nervos a sabedoria terrífica da sua época, que o impedia de abandonar a postura vigilante. Por mais que emergisse nele um ímpeto de desbravar de forma irrestrita as possibilidades de investigar a beleza, na companhia desses “ilustres xamãs que conheciam o segredo/ da magia das palavras da forma imune à passagem do tempo”, o seu conhecimento fazia-o encarar tudo isso como uma espécie de traição àqueles que não contavam com o pior. Na sua carta ao amigo Ryszard Krynicki, ele oferece uma justificação para a resistência daquela geração às visões siderantes da grande poesia: “os nosso cadernos escolares sinceramente atormentados/ com vestígios  de suor lágrimas sangue serão/ para o revisor eterno a letra de uma canção sem partitura/ nobremente íntegra e demasiado evidente (…) nos ombros magros carregámos assuntos públicos/ a luta contra a tirania a mentira registos do sofrimento/ mas tínhamos – concordarás – adversários desprezíveis mesquinhos/ valerá então a pena rebaixar a fala sagrada/ ao alarido da tribuna à espuma negra dos jornais”.

Há aquele célebre poema de William Carlos Williams em que este nos diz que será difícil que se possa receber desta arte essas notícias que lemos ao abrir um jornal, mas que todos os dias são muitos aqueles que morrem, talvez sem sequer lhes ser dado suspeitar aquilo que faltou às suas existências, aquilo que se encontra nos poemas. Ora, a poética de Herbert parece ter sempre residido nesta fronteira impossível entre as notícias, as ameaças bem como os entusiasmos que traçam o contorno breve de cada dia, e esse resíduo de uma clareza que não desarma, as frases que resistem à passagem do tempo, e que arrancam as “ligaduras de indiferença cordial”. Ele está consciente de que há sempre o perigo de os templos da liberdade se transformarem em feiras da ladra, o que coincide normalmente com as alturas em que “os cidadãos/ não querem defender-se/ frequentam cursos intensivos/ para cair de joelhos”.

Através da persona do Senhor Cogito, Herbert conseguiu vencer aquela inibição de não se pôr a falar sobre si próprio, o mesmo compromisso ético que deve observar o jornalista, não se transformando ele na notícia, criando assim esse efeito de distância que, na ficção, se estabelece a favor de uma personagem, de forma a poder analisar-se e às suas opiniões sobre uma vasta gama de assuntos. É em “Relatório de uma cidade sitiada”, onde nos fala de uma cidade sujeita a um eterno cerco, sendo-lhe “concedido por graça o papel menor do cronista”, por ser já “demasiado velho para pegar em armas e lutar como os demais”, que Herbert nos oferece uma das mais poderosas metáforas deste regime de crise permanente em que nos vemos, hoje, engolidos, sufocando por falta de forma, derrubados pela inércia. Aqui, diz-nos ele, “estão todos doentes perderam a noção do tempo”, incapazes de relativizar os factos, de buscar exemplos na História ou nos mitos. E esta descrição vertiginosa é alcançada através de um registo aparentemente seco, quase banal… “sei que tudo isto é monótono e não comoverá ninguém/ evito comentários refreio emoções registo factos/ parece que só estes têm valor nos mercados externos/ mas com algum orgulho gostaria de dizer ao mundo/ que criámos graças à guerra uma nova espécie de crianças/ as nossas crianças não gostam de contos de fada brincam a matar/ acordadas ou a dormir sonham com sopa pão ossos/ tal e qual cães e gatos”.

A verdade é que esta recusa da ênfase acaba por gerar um ânimo absurdo, um espírito de resistência que não vacila porque também não está dependente de nenhum tipo de entusiasmo. E isto, por estes dias, faz-nos compreender melhor a resistência fabulosa dessas cidades que ainda se defendem, enquanto “os cemitérios crescem diminui o número de defensores/ mas a defesa continua e continuará até ao fim// e se a Cidade cair e só uma pessoa sobreviver/ ela levará a Cidade em si pelos caminhos do exílio/ ela será a Cidade”. E é isto aquilo que, de forma cada vez mais rara, se consegue obter quando se abre um destes pardos jornais onde nos é dado esse contorno morto de cada novo dia. Essas notícias que passam ao lado dos motivos que levaram a que a unidade monetária passasse a ser a ratazana. Uma solução grotesca, mas, afinal, industriosa.

Esta é a força singular de uma poesia que se esforça por dar essas respostas complexas que exigem as perguntas aparentemente simples que hoje nos são feitas, perguntas colocadas sempre de forma insidiosa.

Do mesmo modo, Simic notava como para quem lê pela primeira vez a poesia de Herbert, a maior surpresa advém da forma como muitos dos seus poemas se detêm sobre a antiguidade grega e romana, sobre mitos e figuras históricas que, nos nossos dias, estão tão presentes na cultura contemporânea, muitas vezes apenas para ilustrar alguma noção motivacional dessas que permeiam a filosofia barata que tanto sucesso faz nos nossos comícios digitais. E se é para os antigos que nos viramos quando nos cansamos do informe, da confusão do nosso tempo, quando seguimos Herbert neste exercício, cedo nos damos conta de que ele não está minimamente interessado em traficar algum exemplo de pureza, mas (e à semelhança de Kavafis, que também abriu espaço para a mancha ‘vergonhosa’ do desejo ao expandir a intimidade dos exemplos clássicos) as suas versões desses mitos e episódios históricos “são reavaliações radicais do ponto de vista de alguém que viveu as guerras e revoluções modernas”. Assim, não se trata de reduzir o contributo dos antigos a histórias e lendas magníficas, a mitos e fábulas mais ou menos didácticas, porque as crianças que se criaram num contexto de guerra simplesmente já não engolem contos de fadas, preferem reconhecer o sofrimento que as iguala a esses homens traduzidos, deslocados da sua origem. Como nos diz Pierre Judet de la Combe: “Em Homero, os gregos estão sempre em movimento. E quando param, como Ulisses de regresso a Ítaca, nada é natural, nada é dado; tudo tem de ser estabelecido através da acção, inclusive violenta. E, no entanto, essas epopeias do deslocamento, da desapropriação da pátria, eram os poemas oficiais, recitados e celebrados em grandes festivais que permitiam aos ‘nascidos da terra’ encontrar juntos o seu lugar no mundo.”

Assim, Herbert empenhou-se de forma a que ficasse claro que os clássicos estão à nossa frente, não atrás, como um passado opressivo. E a poesia é esse movimento que actualiza a todo o momento a força dos exemplos, que trabalha para vencer a amorfia ritualista, para devolver o sentido de radicalidade à cultura, que se prende com regressar às origens, ao ímpeto transformador. Deste modo, o desafio é sempre o confronto com o nosso tempo. Atentemos na conclusão do poema “Porquê os clássicos”: “se a arte como objecto/ tomar uma ânfora partida/ uma alma pequena despedaçada/ com muita pena de si própria// o que de nós restará/ será como o pranto de amantes/ num hotel sujo e pequeno/ quando amanhece o papel de parede”.

Mas talvez o poema em que Herbert vai mais longe na expressão dessa vantagem decisiva que a poesia traz, nesse esforço de nos permitir encontrar juntos o nosso lugar no mundo, esteja patente no poema “Cinco”, sobre cinco condenados que, ao raiar do dia, serão encostados a um muro para se despedirem da vida frente a um pelotão de fuzilamento. O poema começa aí, “à luz berrante/ do óbvio”, para depois recuar e nos dar conta das últimas horas destes cinco homens, e à “revolta dos cinco sentidos/ que de bom grado fugiriam/ que nem ratos do naufrágio/ antes que a bala chegue ao destino”. Herbert refere que não ficou a saber de mais este fuzilamento hoje, nem o soube só ontem, não está a reagir a quente a algo que leu numa notícia de jornal, e depois surge uma dessas perguntas insidiosas: mas se já o sabia há muito, por que foi que antes de escrever este poema vieram outros “sem importância sobre flores”? Talvez porque esse foi o tempo que lhe foi necessário para indagar quanto ao que terão falado os cinco na noite antes da execução.

É uma questão que se estende a todos nós, não servindo a imaginação para grande coisa se não se puder fazer dela um instrumento de compaixão. A menos que estejamos alheados a pensar na eternidade, talvez a meio desse projecto de sermos enfim derrubados por força da inércia, podemos imaginar que naquelas últimas horas entre os vivos, aqueles cinco homens terão falado “de sonhos proféticos/ de uma aventura num bordel/ de peças de automóvel/ de viagens marítimas/ de não abrir o jogo/ quando se tem espadas/ de que a vodca é melhor/ o vinho dá dor de cabeça/ de raparigas/ de frutos/ da vida// assim pode-se usar na poesia/ nomes de pastores gregos/ sentir-se tentado a preservar a cor do céu matinal/ escrever sobre o amor/ e também/ mais uma vez/ com seriedade mortal/ oferecer ao mundo traído/ uma rosa”.