Indústria automóvel em crise com ameaça de fechos e despedimentos

Bruxelas impôs metas e fabricantes automóveis estão a sofrer as consequências. Para já, os anúncios não ameaçam Portugal. Tanto a Autoeuropa como a Stellantis receberam investimentos para a produção de novos modelos, mas as incertezas permanecem.

A crise no setor automóvel tem feito soar alarmes. O cerco da Comissão Europeia aos veículos de combustão, cuja venda quer proibir a partir de 2035, não tem dado tranquilidade aos fabricantes. E os anúncios de encerramentos de fábricas, a par de despedimentos, não têm parado. A Volkswagen (VW), o maior grupo automóvel europeu e o 2.º maior do mundo, já revelou que até 2026 pretende reduzir os custos de produção na ordem dos 10 mil milhões de euros, para ganhar competitividade. O diretor executivo Oliver Blume não confirma os 30 mil despedimentos, mas admitiu: «A forma de atingir este objetivo em conjunto com os representantes dos trabalhadores faz parte das próximas conversações». Continua em cima da mesa o encerramento de três unidades na Alemanha.


Também o presidente executivo da construtora automóvel Stellantis, Carlos Tavares, já admitiu a possibilidade de virem a encerrar fábricas de montagem na Europa, na sequência da instalação de fabricantes chineses no continente. «Se os chineses conquistarem 10% da quota de mercado na Europa no final da sua ofensiva isso significa que produzirão 1,5 milhões de automóveis. Isto representa sete fábricas de montagem. Os fabricantes europeus terão então de fechá-las ou transferi-las para os chineses», salientou.


Já esta quarta-feira, a Ford Motor revelou que pretende avançar com uma redução de 4.000 postos de trabalho na Europa, o equivalente a 14% da força de trabalho da empresa na região. A nova ronda de despedimentos, que se junta aos planos anunciados no ano passado para cortar 3.800 postos de trabalho, irá afetar sobretudo a Alemanha e o Reino Unido, e irá decorrer até ao final de 2027, permanecendo pendente de conversações com os sindicatos e os governos.


Ao Nascer do SOL, o presidente da Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel (AFIA), José Couto, lembra que ainda não é certo que o encerramento de fábricas seja efetivo, já que neste momento existem negociações entre as administrações e os trabalhadores dos construtores para encontrar a melhor forma de ultrapassar este desafio da competitividade da indústria automóvel europeia. Mas admite que «efetivamente há sobrecapacidade de produção instalada e terão de ser efetuados ajustes».


No entanto, reconhece que a indústria automóvel tem assistido a vários acontecimentos e desenvolvimentos marcantes nos últimos anos. «Desde 2019 que se esperavam alterações no mercado, não podendo deixar de referir que a UE protagonizou com o Green Deal uma proposta importante que condiciona a evolução da mobilidade e particularmente o uso do veículo automóvel». Acrescenta que há outros acontecimentos que estão a condicionar, como a forte limitação do uso do automóvel, e que estes fenómenos estão a moldar o futuro do setor da mobilidade em termos de tecnologia, sustentabilidade e preferências do consumidor. «A indústria encontra-se num momento de grande reflexão, porque haverá que ter em conta alterações que têm que acomodar um novo paradigma económico, de imposições de diminuição da pegada ambiental. Ora, tudo isto leva a que coloque a indústria numa posição complexa e que exige alterações mais radicais do que era suposto, nomeadamente, as relacionadas com a transição energética (eletromobilidade, pilhas de combustível a hidrogénio, etc.); a transição digital (conectividade, condução autónoma, software, etc.); mas também as alterações das decisões dos consumidores».

‘Chineses introduziram novos desafios’


Os números falam por si. Em 2023 venderam-se na Europa 12,8 milhões de automóveis novos (ligeiros de passageiros), o que compara com os 15,8 milhões de viaturas vendidas no ano de 2019, ou seja, menos três milhões de automóveis novos face ao ano de 2019. «Só para termos uma noção do que significa esta redução drástica, era o mesmo que em Portugal não se vendesse nenhum automóvel novo desde o ano de 2007. Isto é, esta quebra das vendas é equivalente à soma dos automóveis novos vendidos em Portugal nos últimos 17 anos. Esta realidade já era pouco interessante para a indústria, mas a complexidade aumentou quando existem novos players no mercado, como são os veículos chineses, que introduziram novos desafios».


O presidente da AFIA chama também a atenção para outros desafios que esta indústria enfrente. A par da transição energética e da transição digital é preciso ter em conta a situação geopolítica, a guerra comercial, as alterações climáticas, assim como os desastres naturais, a inflação dos custos – matérias-primas, energia, transporte – e a disrupções nas cadeias de abastecimento. «A juntar a este quadro há que considerar alteração das decisões dos consumidores, ao que não é estranho a entrada de novas marcas, com produtos competitivos em preço. Os construtores europeus têm que reagir à diminuição da procura e estão a adequar a capacidade de produção instalada, logo o efeito sobre as exportações é uma consequência de um cenário de contração. Enfim, as empresas enfrentam um clima de grande incerteza. Alguns construtores já anunciaram uma grande dificuldade em cumprir as metas indicadas e pedem que sejam avaliadas de forma a poderem reagir sem perderem posicionamento e que não serem dadas vantagens aos que fora do espaço europeu têm políticas pouco claras em termos ambientais e de concorrência», salienta.


Apesar destes desafios, o secretário-geral da ACAP, Hélder Pedro, refere que a indústria tem vindo a fazer um esforço enorme para se adaptar, acenando com o facto de os construtores automóveis já terem investido 200 biliões na Europa em tecnologia elétrica, pois teriam de pagar multas caso não tiverem veículos elétricos na sua oferta: «Assistimos ao lançamento de veículos elétricos e plug-in todos os dias por parte das marcas». Mas reconhece que isso não é suficiente: «Os poderes públicos, sobretudo ao nível europeu, e os Governos dos Estados que compõem o Conselho Europeu que decidiram estas metas também têm de fazer o seu papel. E, na nossa opinião, têm duas obrigações muito grandes: uma, é assegurar uma rede de pontos de carregamento, não só a nível nacional como transeuropeia, porque as pessoas circulam de carro e vão de Lisboa a Madrid, a Bruxelas, a Paris, etc.; e, por isso, têm de ter essa garantia; houve um regulamento comunitário que já vem definir algumas metas; a segunda é haver uma política também de incentivo e apoios, que este ano em Portugal foi descontinuada, à compra de veículos elétricos para particulares e empresas, porque, se não for assim, não se motiva a eletrificação, que foi um objetivo desses Governos. Isso é importante que continue a verificar-se porque as marcas de automóveis não podem sozinhas fazer o trabalho todo de casa, os poderes públicos também têm de fazer esse trabalho».

E Portugal?


O presidente da AFIA mostra-se esperançoso em relação ao futuro da indústria no mercado nacional, recordando que tanto a fábrica da Volkswagen em Palmela como a da Stellantis em Mangualde receberam investimentos para a produção de novos modelos. Para a AFIA, «é fundamental que os construtores implantados em solo nacional aumentem as aquisições no mercado. O acréscimo da Incorporação Nacional tem seguramente um efeito multiplicador e será benéfico para o desenvolvimento sustentado da economia, já que se estão a substituir importações pelo aumento da produção interna de componentes. Isto devia ter feito parte do pacote de negociação, na nossa opinião».


E recorda que a indústria de componentes para automóveis em Portugal agrega cerca de 350 empresas e emprega diretamente 64 mil pessoas. Fatura 14,3 mil milhões de Euros (ano 2023), com uma quota de exportação superior a 85%, apesar de este número crescer com as exportações indiretas. Já em termos de importância na economia nacional, representa 5,4% do Produto Interno Bruto (PIB), 8,9% do emprego da indústria transformadora, 11,1% do valor acrescentado bruto da indústria transformadora, 15,6% das exportações nacionais de bens transacionáveis e 15,8% do investimento total da indústria transformadora.


Já Hélder Pedro recorda que «a Volkswagen tem tradicionalmente uma relação muito próxima entre a gestão das fábricas e as comissões de trabalhadores», acrescentando que «na Autoeuropa, por aquilo que a própria Comissão de Trabalhadores tem dito, não há notícia de qualquer impacto na fábrica em Portugal, que é uma das mais rentáveis do grupo, que produz um modelo da marca mais vendido na Europa e que tem anunciados investimentos significativos na fábrica».

Várias Ameaças


José Couto recorda, no entanto, que a escolha de veículos com motorização elétrica, por parte dos consumidores, não tem progredido como era espectável, sobretudo devido ao preço, infraestruturas de carregamento e ao corte de incentivos. «A diminuição ou supressão dos apoios para a aquisição de veículos elétricos trouxe um desvio na opção de compra destes veículos, bem como temos que considerar que a infraestrutura para carregamento, nas cidades, tem funcionado como efeito retardador em muitos países», diz ao nosso jornal.


A ameaça dos carros chineses é vista pelo responsável como uma realidade que as empresas têm que enfrentar: «A União Europeia está a estudar a aplicação de tarifas sobre a importação de veículos elétricos fabricados na China – está em plena negociação neste momento. Tem havido movimentações de alguns construtores chineses no sentido de implementarem fábricas para produzir os seus automóveis na Europa. Todavia é necessário garantir que esses construtores adquirem componentes fabricados na União Europeia, porque podemos assistir à importação de componentes que não cumprem regras ambientais e de concorrência».


Outro alerta a ter em conta diz respeito à vitória de Donald Trump nos Estados Unidos. O presidente da AFIA recorda que este mercado é o quarto país cliente dos componentes automóveis fabricados em Portugal. Só no ano passado, foram exportados cerca de 600 milhões de euros de componentes automóveis, o que equivale a uma quota de 4,5% do total das exportações portuguesas de componentes automóveis. «O mais sensato por agora é esperar para ver qual será o novo rumo da política industrial dos EUA. Mas a Europa não se pode distrair e esperar e deverá preconizar políticas que acresçam a competitividade», salienta.