“Achava que Soares não envelhecia, nem morria”

Alfredo Cunha e Rui Ochoa revelam, em livro, as várias facetas de Mário Soares. Dos confrontos na Marinha Grande à última viagem. ‘A ideia foi criar uma linha de tempo’, dizem.

«Uma vez íamos de avião para NY e apanhámos muita turbulência, levando alguém da comitiva a ficar muito nervoso, tendo desabafado: ‘Oh senhor Presidente, isto está a abanar muito’. Soares olhou para ele por cima dos óculos e disse-lhe: ‘Tenha juízo, você acha que o avião com o Mário Soares cá dentro cai?’. Estranhamente, depois disto, passou a turbulência». O episódio é contado por Alfredo Cunha, que foi fotógrafo oficial de Mário Soares, em Belém, e resume bem a forma como o fundador do PS encarava a vida.

Dêmos a palavra a Rui Ochoa, também fotógrafo: «A ideia foi fazer um livro diferente a propósito dos 100 anos de Mário Soares. O Alfredo convidou-me, falou com a Isabel Soares, que achou a ideia fantástica, inclusive achou piada a eu não ser da cor política dos socialistas, e o João Soares também aceitou muito bem a ideia. A Isabel achou por bem responsabilizar-se pela edição do livro – Mário Soares 100 anos – que é do Colégio Moderno, a editora é a Tinta da China e os textos são da Clara Ferreira Alves». «O livro divide-se em quatro partes. Os textos da Clara, a parte histórica, que chamámos Memória, a casa do Campo Grande, que é uma coisa inédita, a família não mudou nada, está tudo intacto, e a Democracia, a chegada a Portugal em 28 de abril de 1974 e a carreira», acrescenta.

Ao longo do livro, que tem também fotos antigas e correspondência da família Soares, podemos ver a evolução do primeiro Presidente da República civil a ser eleito depois do 25 de Abril, nos seus momentos mais marcantes políticos, mas também em situações invulgares. «A ideia foi criar uma linha de tempo. Gosto dos planos em que é estabelecida uma leitura e uma narrativa entre as fotos», explica Cunha.

«Conheci-o no dia 28 abril de 1974, quando fui esperá-lo a Vilar Formoso. Entro no comboio, mais o Alfredo Alvela, o Adelino Tavares da Silva, mas nós não sabíamos como ele era, já que nunca tinha visto nenhum retrato dele. Vi uma concentração de pessoas e pergunto: ‘Alguém me sabe dizer quem é o doutor Mário Soares?’. E ele responde assim: ‘Sou eu’. Quando chegámos a Santa Apolónia, o Soares dizia: ‘Apareça’, e eu lá fui aparecendo. Passado uns anos, quando nos propusemos para fazer a campanha presidencial, o comandante Gomes Mota disse que não, que já tinham um fotógrafo. Eu trabalhava com o Luís Vasconcelos, e depois da nega da equipa do Soares fizemos a primeira fotografia do cartaz do Freitas do Amaral, em que ele aparece com o ‘Para a frente Portugal’. O Soares um dia parou em frente ao cartaz, e isto foi-me contado pela Isabel, a filha, e disse que queria saber quem é que tinha feito o cartaz. Ao que a Isabel terá respondido que foram os fotógrafos que o comandante Gomes Mota tinha recusado. ‘Então chama lá os gajos’, apelou à filha. Entretanto nós estávamos a fazer os cartazes para o Freitas e questionámo-nos de como é que descalçaríamos a bota. ‘Em quem é que nós vamos votar? No Freitas ou no Soares?’. ‘No Soares! Então embora, vamos trabalhar com o Soares’. Chegámos a ter os dois cartazes, o do Soares e do Freitas, lado a lado», recorda Alfredo Cunha.

E Soares era uma pessoa fácil de fotografar? «Punha-se a jeito. Estava sempre bem», diz, a rir.

«A mim, dizia-me assim: ‘Tens rolos a cor na máquina? Não venhas cá com essas m… de fotografias a preto e branco, como o Mitterrand’. E eu claro, fotografava-o a cores e a preto e branco», acrescenta.

«O que eu gostava mais do Soares, não era as virtudes, era mesmo os defeitos. Quando vinha com as bochechas caídas, já sabíamos que acabou. Quando ele vinha bem disposto, porreiro. Não havia problema nenhum. Vi-o muito poucas vezes chateado. Era um bem disposto». No livro há uma foto em que Soares está à secretária sem um sapato. «Ele, na altura, vê a foto e diz: ‘Não vais publicar isso!’. Quando a foto foi publicada, disparou: ‘Eu não te disse que a foto ia ficar muito bem?». E como foi ver o fim de Soares? «Da mesma forma que Soares achava que o avião com ele lá dentro nunca caía, eu também achava que ele não envelhecia e não morria. Para mim é muito estranho ele ter morrido», termina Alfredo Cunha.