Carteiras alinhadas, de madeira e muitas vezes aparafusadas ao chão. Desconfortáveis. As salas eram frias. Nas paredes existiam retratos de Oliveira Salazar e de Óscar Carmona, depois de Oliveira Salazar e de Américo Tomás. Mais tarde de Marcello Caetano e Américo Tomás. No meio, um crucifixo. Cantava-se o hino e rezava-se. Assim eram muitas das salas de aula no país na altura do Estado Novo. Quem viveu não tem as melhores memórias. Bem, nem todos. Mas já lá vamos.
As matérias dadas na altura eram muito diferentes do que se aprende nas escolas hoje em dia. Para Salazar apenas havia uma visão e era isso que era ensinado nas escolas. Os livros, todos iguais, foram os mesmos durante décadas e a regra era clara: era preciso saber toda a lição de cor. Não havia margem para erros. Estudava-se o Português, Matemática, História, Ciências, Geografia e Religião e Moral. Era obrigatório saber a tabuada, os nomes de todos os rios, das serras e até dos caminhos-de-ferro. Os manuais eram únicos, iguais para todos e espelhavam os valores tradicionais e ideológicos do Estado português.
Maria tem atualmente 82 anos, mora na Amadora e fez o ensino até à quarta classe numa aldeia na zona de Almeida, na Guarda. E não tem as melhores recordações, ainda que já tenham passados todos estes anos.
“Estudávamos a Gramática, o Português, a História, a História de Portugal. Tínhamos que saber de cor as dinastias, por exemplo”, começa por detalhar ao i. A memória vai falhando mas há coisas das quais ainda se lembra. “Isto era mais na quarta classe. Nos primeiros anos era diferente”. Mais fácil, talvez.
Já a imagem da sala não lhe sai da cabeça. “Tínhamos uma cruz na escola e rezávamos logo que chegávamos. Tínhamos um quadro do Salazar e a frase ‘Deus, Pátria e Família’”. E assim foi sempre durante esses anos em que estudou, nos anos 50.
A lei da régua
Quem não esquece é a professora que, diz ao i, “era muito mazinha”. “Sofri muito com ela. Era muito nervosa, lá seria por problemas que tinha”. E, claro, como era comum na época, batia nos alunos. “Dava-nos com cada reguada… Mandou fazer uma régua própria. E não podíamos dar erros. Só saíamos da escola sem dar erro nenhum”. Algo que diz que nos dias de hoje não acontece. “Agora é diferente. Agora muitas pessoas dão muitos erros. Mas nós não podíamos sair da escola sem saber, a professora era exigente. Até com o filho dela. Chamava-o ao quadro, tinha um filho da minha idade. Batia tanto no filho por trás com uma régua…”.
Terminado a quarta classe, era obrigatório fazer um exame. “Tínhamos que fazer um exame na quarta classe. No fim da quarta classe era a admissão ao liceu”.
Mas nem todos seguiam, recorda. “Da minha idade só eu é que segui e mais o filho da professora”. Seguiu porque o pai e a tia queriam que fosse estudar para a Guarda e foi lá que fez o exame de admissão. Mas não eram muitos os que seguiam depois da quarta classe. Era preciso ajudar os pais e existiam outras obrigações.
Mas Maria não acabou os estudos lá. Começou o quinto ano e não o acabou, vindo depois terminá-lo aos “25 ou 26 anos”, quando se mudou para a Amadora. Mais ou menos perto do período em que Salazar é obrigado a abandonar o poder.
Augusta estudou longe de Almeida mas nem por isso as suas recordações são diferentes das de Maria. Parece que era tudo mais ou menos igual. Salazar assim o exigia, na verdade. Conta ao i que estudou em Alenquer numa sala só de raparigas. E nem no recreio se podiam cruzar, uma vez que era dividido por uma parede. Do outro lado, no mesmo regime, estavam os rapazes.
Nessa altura não iam muitas pessoas à escola e, por isso, da primeira à quarta classe era a mesma sala e a mesma professora para todos. “Nem todos pretendiam ou gostavam de ir para a escola e aí os pais tinham sempre uma palavra a dizer e havia quem preferisse pôr os filhos a trabalhar do que irem aprender a ler a escrever”, confessa ao nosso jornal.
Mais uma vez, a educação era rígida e errar não era permitido. Quem errasse, já sabia que ia ao castigo: as tão temidas reguadas. Faziam testes e também havia o exame de admissão no final da quarta classe. “A professora era muito rígida e todos tinham medo de errar mas se calhar por isso aprendíamos tão facilmente os rios e afluentes ou as estações de comboios. Como era uma aluna aplicada nunca fui alvo de qualquer tipo de castigo”, recorda.
Professoras ‘escolhidas a dedo’
Ainda que com algumas diferenças do que foi contado até então neste texto, o sociólogo Mário Bacelar Begonha conta-nos também a sua experiência. Aos quatro anos, no período de 1940/41, ingressou no Colégio Valsassina, em Lisboa, na Avenida António Augusto Aguiar, em frente à Rua Ramalho Ortigão, no Bairro Azul, onde moravam os seus pais. “Era uma escola privada, dirigida por uma família, a família Valsassina, o Doutor Valsassina avô e a Sra. Dona Susana avó dos restantes membros da direcção, todos familiares”, começa por explicar, lembrando que, por essa altura, havia três gerações, em simultâneo, a trabalharem no Colégio Valsassina. Mas tem boas recordações. “Era um ambiente familiar, de tal modo simpático, agradável, confortável que nós, alunos, chamávamos avó à Directora e avô ao Director e éramos tratados como netos”. No fundo, recorda, a principal preocupação do colégio onde estudou era que os alunos se sentissem bem, “tão bem como se estivéssemos em casa”.
Diferente do que acontecia em muitos locais naquela altura, o sociólogo lembra que, naquele colégio, “os alunos vinham de um meio seleccionado, em que os pais, por norma, eram todos licenciados, o que facilitava o convívio e a disciplina, que era exactamente à da nossa casa, da casa dos nossos pais, o que facilitava a adaptação”, acrescentando que “era o tempo em que havia uma destrinça muito grande, a professora não era como tempos depois, que passou a dar todas as disciplinas – até Ginástica! – mas ali não”.
Ali, recorda Mário Bacelar Begonha, “a pedagogia era ultra-moderna, os castigos e as punições eram altamente pedagógicos, simplesmente com um grande rigor nos princípios e na formação moral”. Lembra que a disciplina que mais gostavam era a ginástica “dada por um nome famoso da Educação Física em Portugal, o Professor Artur dos Santos”.
É com saudade e honra que recorda ter sido nomeado Chefe de Turma, “por ser o melhor ginasta da classe”. “Era eu, que no início da aula, mandava formar e pedíamos, depois, licença ao Professor Artur dos Santos para ele começar a aula”.
Depois fala ao i das professoras primárias do Ensino Particular – no oficial nunca conheceu – que “eram escolhidas, como é evidente, pela Direcção Pedagógica do Colégio e, portando, a ideia que tenho hoje, é que eram ‘escolhidas a dedo’, com disciplina, com uma certa rigidez, quando era preciso, mas como ouvíamos dizer naquele tempo que era usual em certas escolas, ‘reguadas’”. Mas onde estudou, “nada disso, não havia!” Porque, ali, “a base era a Educação e o respeito pela Professora e pela Escola e pelos princípios que a Escola ensinava”. O grande princípio, recorda, era este: “a Professora representa, ali, os nossos pais. Podemos dizer que havia uma espécie de cartilha com regras, que todos cumpriam. Todos cumpriam rigorosamente tudo porque podíamos ser “convidados” a sair, se nos portássemos mal ou fora dos princípios da Escola”.
Quanto às matérias aprendidas, diz que era as do Programa de Ensino Oficial que não se recorda já. “Estávamos em plena Segunda Guerra Mundial – o ambiente que se vivia em Portugal, logicamente, era afectado pela Segunda Guerra Mundial, que estava a decorrer desde 1939. Simplesmente, com senhas de racionamento e “partes gagas” como o obrigatório blackout, ou seja, desligar as luzes e cobrir as janelas à noite”, conta-nos.
Anos depois, quando estudou História, percebeu “que tínhamos sido enganados porque o Hitler, o Salazar e o Franco tinham feito um acordo, cujo nome era “Neutralidade Colaborante” em que, por esse acordo, a metrópole Portuguesa nunca poderia ser bombardeada, só os Açores, o que levou as pessoas cultas dos Açores a nunca perdoar Salazar, tendo alguns residentes dos Açores comprado casa em Lisboa”.
Mário Bacelar Begonha diz que “sofremos algumas restrições, como é lógico, em tempo de Guerra, mas o ambiente pedagógico no Colégio Valsassina era de tal ordem que, quando estávamos na Escola, nem nos lembrávamos que havia Guerra, ou seja, era um Paraíso. Não havia proibições nenhumas, porque o nosso comportamento tinha de ser igual ao de casa, e era, com alguns excessos no recreio”. Recorda-se ainda de um pátio “enorme todo em calçada, era onde fazíamos corridas entre nós, alguns jogavam com uma bola, e situava-se exactamente por cima do nosso ginásio, que era extraordinário para nós porque, depois de estarmos horas e horas sentados, era aliciante”. De recordar, acrescenta, “as aulas de Canto Coral dadas por um maestro, que tocava órgão e aprendíamos e cantávamos o Hino Nacional. Ele explicava que isso era eterno e que, explicava aos meninos, era a música mais importante que tínhamos de saber de cor. Havia Teatro, Actividades Manuais (Plasticina, etc…)”.