O regime de Bashar al-Assad caiu como um castelo de cartas. A família Assad governou com punho de ferro a Síria por mais de cinco décadas, e após treze anos de uma guerra civil morosa e sangrenta, que transformou a Síria numa autêntica manta de retalhos, o Governo finalmente caiu às mãos dos rebeldes.
Numa operação-relâmpago, as forças da oposição ao regime conquistaram duas das maiores cidades do país – Hama e a Alepo –, antes de marcharem sobre a capital, Damasco, e forçarem Bashar al-Assad a fugir para Moscovo. A conquista pode ter sido surpreendente pela rapidez, mas a conjuntura internacional e o desgaste do regime são fatores que ajudam a perceber o golpe de Estado vertiginoso.
A Síria é uma peça de importância acrescida no tabuleiro geopolítico, com todas as potências superiores a jogar de acordo com os seus respetivos interesses. O fim do regime de Assad é um duro golpe para os seus dois aliados históricos – a Rússia e o Irão – que ficam assim enfraquecidos nesta II Guerra Fria. Mas, se por um lado o eixo Moscovo-Teerão fica mais frágil e o povo sírio fica livre de um controlo tirânico, as preocupações com a índole do novo regime fazem-se sentir. Um período de paz e acalmia consolidado parece, neste momento, fora de questão, e o calvário da Síria ainda não terminou. A incerteza é agoniante e resta esperar pelo desenrolar dos acontecimentos.
Ascensão e queda
De origem alauíta, uma minoria étnica num país amplamente povoado por muçulmanos de orientação sunita, a família chegou ao poder em 1970 pela mão de Hafez al-Assad, um ex-membro da força aérea e ex-ministro da Defesa. O país vivia numa constante instabilidade, entre golpes e contragolpes, tendo Assad aproveitado as divisões para se estabelecer no poder e desenhar, ele próprio, um novo país. Contudo, as divergências no tecido étnico e social do país foram corroendo aos poucos uma aparente coesão. Quando Bashar al-Assad, um cirurgião no ramo da oftalmologia, foi chamado ao dever, em virtude da morte do pai, o país já estava amplamente dividido, pelo que o punho, que já era de ferro, ainda se fechou mais.
Em 2010 e 2011, aquando da Primavera Árabe que foi transversal ao Médio Oriente e a várias regiões do Norte de África, a Síria entra definitivamente num período de guerra civil que reclamou a vida a cerca de 230 mil civis e provocou uma vaga de refugiados que ascendeu aos 5 milhões. Após quase uma década de conflito, marcado por avanços e recuos entre as forças do Governo e os rebeldes, um acordo frágil para o cessar das hostilidades foi alcançado em 2017, mas nem assim os dois grandes aliados de Assad descontinuaram o seu apoio ao regime.
As partes envolvidas no conflito são imensas. Desde as grandes potências, como a Rússia e os Estados Unidos, aos principais players regionais, como o Irão, a Turquia e Israel, a Síria é palco de um vasto leque de interesses. Em consequência disso, tornou-se numa manta de retalhos que não é fácil voltar a juntar. Na última edição do Nascer do SOL, foi apresentado um gráfico que demonstra bem a situação. Além dos intervenientes indiretos já mencionados, existem os que combatem no terreno, e não são poucos. No Norte, a presença das Forças Democráticas da Síria, lideradas pelos curdos, e das Forças Rebeldes turcas é imensa. No Nordeste, o Hayat Tahrir al-Sham (HTS) e aliados, a Sul outros grupos opositores do regime e, no centro, há ainda alguns focos do Estado Islâmico.
Mas, desta vez, os esforços foram maioritariamente do HTS, cujas tropas foram lideradas pelo ex-Al Qaeda Abu Mohammed al-Jolani. Os fundamentalistas islâmicos sunitas conseguiram conquistar a segunda maior cidade do país, Alepo, depois a terceira maior, Hama, antes de se dirigirem ao coração do regime de Assad, Damasco. Onze dias foi o tempo de que os rebeldes precisaram para retirar o poder a Bashar al-Assad. E enfrentando uma resistência pouco mais que residual.
Importância estratégica
Há dois motivos principais que podem ter facilitado a rápida incursão. Primeiro, os esforços de guerra tanto da Rússia quanto do Irão, ambos envolvidos nos seus próprios conflitos. A primeira na Ucrânia, o segundo em Israel, mesmo que de forma menos direta. Os opositores, alguns apoiados pelos EUA, outros pela Turquia, aproveitaram o momento do regime, que estava mais exposto que nunca. Segundo, a reposta ao massacre de 7 de outubro por parte de Israel, que paralisou o Hamas e o Hezbollah – este segundo grupo é mais relevante para este caso concreto –, também enfraqueceu o regime. Após a tomada de Damasco pelos rebeldes, Assad fugiu para Moscovo, onde ficará exilado, e o seu primeiro-ministro, Mohammad Ghazi al-Jalali, foi levado para o hotel Four Seasons da capital onde procedeu à entrega simbólica do poder.
Assim, o Ocidente parece ter ganho uma batalha nesta nova Guerra Fria. A Rússia perde um aliado estratégico e histórico, onde detinha duas bases importantes que lhe davam acesso ao Mar Mediterrâneo – a base de Tartus e a base de Khmeimim –, e o Irão vê-se agora privado do corredor pelo qual escoava armamento para os seus proxies no Líbano e em Gaza.
Quanto às bases russas, uma agência de informação militar ucraniana anunciou que o Kremlin estava em processo de retirada do território sírio: «Para se retirarem da Síria, os russos enviaram uma caravana de aviões de transporte militar, que estão a carregar as restantes tropas, armas e equipamento militar», pode ler-se no comunicado. Moscovo desmentiu a notícia. O porta-voz do regime de Vladimir Putin, Dmitry Peskov, garantiu que estão a «estabelecer contactos na Síria com aqueles que são capazes de garantir a segurança das bases militares». O Instituto para o Estudo da Guerra, sediado nos EUA, revelou, citado pela Euronews, que «Imagens de satélite tiradas a 9 de dezembro também mostram que os navios russos […] estão num compasso de espera no ancoradouro, a cerca de oito quilómetros a oeste do porto». O ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, reiterou que os navios de guerra continuam na base de Tartus. Ainda hoje, ainda não existem certezas quanto a este assunto.
A queda de Assad pode gerar um efeito dominó, e o regime iraniano, já frágil e impopular, pode estar receoso. Também não é provável que se estabeleça um acordo com o novo regime, uma vez que Teerão foi um dos patrocinadores da repressão aos rebeldes.
Os Estados Unidos, em momento de transição de Joe Biden para Donald Trump, jogaram a sua parte, mas o envolvimento não foi tão direto como noutras ocasiões. O Presidente-eleito apelou para que os americanos não se envolvessem no conflito e parece que os interesses americanos, para lá do mais amplo enfraquecimento dos rivais, passam pela particularidade de travar erupções do Estado Islâmico e pelo apoio aos curdos. É a morte anunciada da doutrina apelidada como ‘neoconservadora’, que tinha como objetivo exportar, a todo o custo, os valores democráticos e ocidentais para a região do Levante.
Israel também reagiu, bombardeando alvos militares, principalmente repositórios de armamento, na Síria e reforçando a presença militar na zona dos Montes Golã e do Monte Hermon, de forma a prevenir uma incursão do novo regime sírio. Independentemente de Assad ser um dos maiores apoiantes da causa palestiniana, havia um acordo tácito entre o regime sírio e Benjamin Netanyahu que, naturalmente, desapareceu.
O dia seguinte
Agora que o povo sírio conseguiu, finalmente, virar a página, resta saber o que o futuro lhe reserva. O deflagrar de um novo conflito civil não pode ser descartado, principalmente entre as forças curdas e as forças apoiadas pelos turcos. O novo líder, como já foi dito, é um ex-membro da Al Qaeda, o que faz soar os alarmes para as minorias – como é o caso dos cristãos e dos alauítas. As perseguições poderiam provocar uma nova vaga de refugiados para a Europa, à semelhança do que aconteceu na década passada. Por enquanto, Jolani prometeu estar diferente e garantiu a proteção das minorias.
Resta esperar para ver.