Síria. Por que caiu, e de forma tão rápida, o regime de Bashar al-Assad?

A rapidez do golpe rebelde foi surpreendente. Ainda assim, uma análise dos antecedentes e da conjuntura mostra que o colapso do regime de Assad era apenas uma questão de tempo.

Após um período de enganadora acalmia, o conflito sírio foi reaceso e, desta vez, o regime de Assad não resistiu. A dinastia que tomou o poder na Síria há 53 anos capitulou à mão dos grupos rebeldes de uma forma que não era esperada. Em apenas 11 dias, as fações opositoras conquistaram as três principais cidades do país; primeiro Alepo, depois Hama e, por fim, Damasco, a capital e o centro do poder de Bashar al-Assad.
Um regime que se arrastou por mais de cinco décadas chegou ao fim em pouco mais de uma semana. Porém, nem tudo se resume aos últimos dias. O desgaste que a longa guerra civil foi provocando nas forças do Governo sírio é impossível de ignorar, e há já alguns anos que Bashar al-Assad não controlava boa parte do território. A incursão dos rebeldes das últimas semanas foi apenas a machadada final num regime altamente debilitado.

A Primavera Árabe

Relacionar o protesto de um vendedor tunisino em 2010 com a queda do regime de Assad parece rebuscado. Mas foi esse mesmo protesto, junto a um edifício do governo da Tunísia, que provocou uma onda de choque por todo o Norte de África e Médio Oriente. De Marrocos a Omã, passando pela Argélia, Líbia, Egito, Sudão, Líbano, Jordânia, Síria, Iraque, Kuwait, Bahrain e Iémen, a Primavera Árabe propagou-se com uma dimensão tal que fez abanar as bases de vários regimes. É um exemplo de que a História e a geopolítica também são forjadas a partir de decisões individuais.
Vários especialistas apontam que se tratou de um processo que reivindicava o regime democrático e a proteção dos direitos humanos. Independentemente de este ser o objetivo, os resultados foram amplamente diferentes. A Primavera Árabe criou focos de conflito um pouco por toda a parte, mergulhou nações em guerra civil, espoletou uma grande vaga de refugiados e, no final de contas, a democracia e o respeito pelos direitos humanos ficaram para trás. Como mostra o Council on Foreign Relations, apoiando-se num gráfico elaborado pela Freedom House, o processo de democratização apenas foi consolidado na Tunísia. No Egito e na Líbia chegou a haver esperança, mas os índices de direitos civis e políticos voltaram a cair a pique, e para níveis mais baixos que os apresentados no período anterior a 2010 no caso egípcio.
Na Síria, que mergulhou numa guerra civil sangrenta e duradoura, estes indicadores caíram e estiveram até negativos entre 2014 e 2018. Os níveis de vida baixaram, a liberdade de imprensa – após um aumento entre 2010 e 2012 – voltou para perto da posição pré-2010 e a corrupção atingiu novos máximos. Mas o dado mais impressionante é o número de deslocados. Segundo números do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), o número de refugiados, requerentes de asilo e deslocados internos acresceu aos 12 milhões e 900 mil em 2019. Isto numa população de cerca de 20 milhões (ver págs. 14-15).
Além de tudo isto, a Guerra Civil síria dividiu o território e várias fações tomaram o poder em determinadas zonas. Assim, a Síria tornou-se um caldeirão que, mais cedo ou mais tarde, acabaria por transbordar. Seis grupos controlavam várias regiões do país. De Assad ao Estado Islâmico, contando com os curdos, o Hayat al-Sham (HTS), as forças turcas e sírias com apoio da Turquia e até com Israel a desempenhar o seu papel nos Montes Golã, estava montado o cenário para a queda de Bashar al-Assad, cujo poder dependia umbilicalmente da ajuda da Rússia e do Irão. O que pode ter sido uma surpresa foi a duração do golpe. Após 13 anos de conflito, marcado por avanços e recuos, os rebeldes tomaram o poder em apenas 11 dias. Mas porquê?

A queda

Como foi referido, a Primavera Árabe e a consequente Guerra Civil, abriram o caminho para a queda de Assad. Mas há outro fator que pode estar relacionado com este fenómeno – o massacre de 7 de outubro, quando o Hamas penetrou no território israelita e cometeu as atrocidades que são já amplamente conhecidas. Com a resposta de Israel, o Hezbollah – outro proxy do Irão –, abriu mais uma frente de guerra no Sul do Líbano. Tel Avive conseguiu neutralizar, ou pelo menos paralisar os dois grupos, o que enfraqueceu, consequentemente, o Irão. Com o Irão enfraquecido e preocupado com os seus próprios esforços de guerra, Assad ficou com um dos maiores aliados a meio gás. O mesmo aconteceu com a Rússia, cuja invasão na Ucrânia vai já para o terceiro ano. Os interesses das grandes potências mundiais e dos principais players regionais (ver págs. 4-5) foram decisivos no desenrolar e no desfecho deste conflito.
Outro aspeto importante é a orientação religiosa. Cerca de 70% da população síria é árabe de orientação sunita. O Irão é composto por 90% de xiitas. Assim, a constante dependência de grupos xiitas iranianos fez aumentar progressivamente o desagrado da população síria com Assad. Também o papel da Turquia, que está interessado em lutar contra as forças curdas, é substancialmente importante.
A incursão rebelde começou quando Bashar al-Assad estava em Moscovo, e a tomada de Alepo foi como um passeio no parque. A resistência foi praticamente nula. O mesmo aconteceu com Hama e com Damasco, o coração do regime. Este é outro dos fatores explicativos para a queda abrupta de Assad. Mais uma vez surge a pergunta: mas porquê? A juntar ao descontentamento crescente com o Governo, as sanções aplicadas à Síria tornaram difícil o pagamento devido às forças armadas, cujos níveis de vida começaram a cair, tal com os da população civil.
Com todas estas variáveis na equação, os esforços rebeldes, maioritariamente do HTS, liderado pelo ex-Al-Qaeda Mohammed al-Jolani, tiveram um sucesso vertiginoso. Porém, a dúvida continua a pairar nesta zona do Levante. A paz parece não estar próxima, e o currículo de al-Jolani não gera, propriamente, entusiasmo. Teme-se pelas minorias – a começar pela cristã, embora o novo primeiro-ministro, Mohamed al-Bashir, novo primeiro-ministro da Síria, prometido liberdade religiosa – e por uma nova vaga de refugiados para a Europa. Face a tantas incógnitas, o risco de um novo conflito civil também não pode ser descartado.