A sua vida mudou aos sete anos quando teve um acidente e fez uma queimadura grave na perna. Exatamente. E depois de um tempo indefinido inicial fui para o antigo Hospital Universitário de Coimbra, onde permaneci largos meses, e durante o qual amadureceu a vocação de uma confiança em Deus, que reconheço ter sido grande auxílio nesses largos meses. Enquanto que a ciência ia de tentativa em tentativa nas operações que não resultavam, crescia este meu abandono em Jesus, em Nossa Senhora. É necessário referir o nome de um homem, o Dr. Lacerda, que foi quem conseguiu pôr-me a andar novamente.
Quando decidiu seguir a vida religiosa?
Quando se vive a experiência que eu vivi, o pensamento não é ser padre, o pensamento é ser para Aquele que foi para mim. Tinha sete anos, aos dez fui para o seminário em Fátima e, terminado o 12.º ano, segui para o Noviciado em Itália. E aí foi um momento, digamos, de enamoramento, literalmente. Foi sempre um encadeamento sucessivo.
Esteve como capelão da Academia Militar.
Fui ordenado, estava ainda a estudar em Roma a terminar os estudos numa especialização e, quando regressei a Portugal, o primeiro trabalho de pastoral que tive como sacerdote foi o de capelão. Fiz o curso na Academia Militar e depois segui para a Marinha.
O que significa o curso na Academia Militar?
São três semanas para saber os postos, as continências, etc..
Não andou a marchar?
Andámos a marchar! São três semanas em que nos são ministrados o ‘ABC’ da vida militar. É nesse sentido que é curso. Eram também ministrados cursos, como ainda hoje, em que se fomentava muito aquela pastoral castrense, ou seja, como é que se anuncia o Evangelho no meio militar. Dali fui dois anos para Castro Verde, no Alentejo, que foi uma experiência maravilhosa, depois para a Universidade de Louvain e regresso a Lisboa. Passado um ano sou enviado como vice-pároco numa paróquia aqui da periferia onde fico responsável de formação no chamado Postulantado e começo o doutoramento na Católica.
Chegou a embarcar em missões muitas vezes e a perceber qual era o papel de um capelão.
Sim, sim. A razão fundamental pela qual o capelão está nas Forças Armadas ou noutra situação é em nome das pessoas e ao serviço das pessoas. Aquela certeza e constatação de que o ser humano é um todo constituído por diversas dimensões, onde a parte espiritual é fulcral, tal como a afetiva, a física ou a psicológica. Sabendo que a tarefa de um capelão, tal como a tarefa dum sacerdote, é muito integral, ou seja, aflora o aspeto da justiça, da paz e particularmente a dimensão da dignidade do ser humano. Há muitas frentes em que o padre capelão está envolvido e, seja na tropa, seja num hospital, numa paróquia ou então numa casa de formação, que tem a ver exatamente com isso.
O que um capelão ou sacerdote acrescenta às Forças Armadas e de Segurança?
Talvez a resposta seja dada pela própria história. A primeira notícia que nós temos de alguém que chamamos hoje de capelão, foi São Teotónio, que era conselheiro, era confessor, mas era particularmente uma pessoa que D. Afonso Henriques procurava. O capelão, numa instituição como a militar, está para viver com o militar o que o militar está a viver. Muitas vezes estamos a falar de experiências trágicas, de mortes, o capelão está lá para dar todo o apoio. É a quem se diz tudo, há uma abertura completa. Há coisas que o militar só diz ao capelão. Depois houve uma fase da nossa história onde o capelão tinha um papel profundamente humanista, quando ele embarcava a bordo das nossas naus e caravelas para zelar pelos bons costumes a bordo, nomeadamente, havia o hábito do álcool, e depois para zelar para que fosse garantida aos marinheiros ‘uma alimentação condigna’ e que não houvesse ‘excesso de castigo’, isto está documentado. Também na batalha de La Lys, na Primeira Guerra Mundial, o capelão teve um papel fundamental. A sua grande tarefa era ser uma espécie de quinhão da pátria junto dos soldados. A maior parte dos nossos soldados eram agricultores e trocaram a enxada pela arma, e era o capelão que lhes lia as cartas, os ouvia ou escrevia as cartas. Mas o papel fundamental do capelão é garantir a presença de Deus. Estamos a falar de homens que têm uma sensibilidade religiosa muito grande, muito profunda. Sendo que a tarefa do capelão não se esgota na dimensão religiosa. Um outro momento em que o capelão teve um papel preponderante foi durante a chamada Guerra Ultramarina.
No seu caso concreto, que situações viveu?
A primeira etapa nas FA foi como capelão militar de um hospital. Ali era escutar os doentes e visitá-los. Depois, quando estive na Escola Naval, tínhamos várias funções. A primeira é a típica de padre, celebrava a missa, as orações, fazia funerais, confessava, atendia em direção espiritual, ouvia os cadetes. Em segundo lugar, tínhamos aquela tarefa pedagógico/académica, nomeadamente, cultivar a disciplina da ética e deontologia. Em terceiro lugar, era sugerir na própria unidade processos e ações que tinham a ver com a abertura à sociedade civil daquilo que eram as grandes correntes de pensamento. Convidávamos pessoas para virem e dar a conhecer temas relevantes de literatura ou filosofia. No caso de Marinha, aconteceu um ano em que eu subi a bordo de uma corveta, em que a guarnição andava há mais de um ano no mar porque não tinha sido rendida. Durante o período em que estive a bordo, o meu trabalho era estar de manhã à noite a escutar as pessoas. Ouvir marinheiros a contar, entre lágrimas, que a filha de três anos lhe telefonou a perguntar se era hoje que ele a vinha buscar porque ela fazia anos. Lidamos com as situações mais extremas da vida.
Quando foi nomeado bispo das FA optou por não viver na residência específica para o bispo, e continuou na comunidade de Monfortinos. Porquê?
Sim, fiquei na minha comunidade. Como disse o Papa, quando lhe perguntaram porque é que ele não quis ir para os aposentos papais e preferiu ficar na Casa de Santa Marta, foi por razões psíquicas. Eu tinha uma comunidade com outros padres, conheço maravilhosamente aquela comunidade e tinha a oportunidade de continuar a ter uma vida simples, como eu gosto de ter.
Mas que não tem neste momento, uma vez que vive na casa Patriarcal.
Tenho sim. Eu venho cá dormir muitas vezes, mas tirando isso passo aqui muito pouco tempo.
Aquando das manifestações dos polícias, era bispo das Forças Armadas e das Forças de Segurança, houve quem achasse estranho o seu silêncio.
É verdade que a palavra é um dos capitais e uma das ferramentas essenciais na minha atividade. Mas também é verdade que nem tudo se esgota na palavra que também é, como sabe, muito suscetível de compreensões e de mal-entendidos. Muito embora não tivesse existido a palavra, existiu a ação e essa nunca falhou em termos de compreender a situação, em termos de manifestar toda a minha solidariedade.
Mas nunca recebeu os sindicatos.
Como bispo das Forças Armadas não.
Como bispo de Lisboa já recebeu?
Não direi sindicatos, mas pessoas que estão ligadas a esse mundo.
Em relação ao caso da Cova da Moura, houve a preocupação de não fazer nenhum comentário. Até porque a discussão estava muito polarizada. O silêncio é de ouro também nesse caso?
Não. Nesse caso, aquilo que é de ouro é estarmos com as pessoas que estão em sofrimento. E atenção: aí estão todos. Eu enviei uma mensagem e o que para mim era e é essencial é olhar para as pessoas concretas, para além daquilo que é sua pertença ou a sua situação. Olho para a pessoa que sofre, que luta, que está em dificuldade, e nesse caso foi transversal. É aí que eu devo estar e não me deixar condicionar, porque não é esse o meu papel. A sociedade tem quem faça essa destrinça que põe pessoas de um lado e outras pessoas noutro lado. O meu papel é estar com todos, tentar compreender a todos e levar uma palavra de alento e de esperança a todos.
Esteve algum tempo na Marinha e conheceu bem o então vice-almirante Gouveia e Melo. Na altura, disse ao SOL, sobre o almirante, que ‘é um homem muito inteligente, nomeadamente na Matemática, além de ser um homem de caráter desprendido, é um homem que consegue oferecer aos outros, fazer da vida uma oferta’. Também disse que um militar está para servir a pátria. Como vê a possibilidade de o almirante concorrer às eleições presidenciais?
Com muita naturalidade. Não nos esqueçamos de que a nossa democracia alcançou já a maioridade há algum tempo. São 50 anos. Somos um país que tem uma história de 900 anos, que já viveu de tudo e o seu contrário, portanto, neste espírito de um país que tem História, memória, que tem esperança e que tem futuro, aquilo que eu entendo é que alguém, como é o caso do senhor almirante, que fez do servir a nação o lema e o princípio e critério da sua vida, não tenho dúvidas nenhumas de que será esse o princípio único e exclusivo que o norteia.
Concretamente em concorrer a Presidente da República?
Quanto a isso, não tenho a mínima dúvida. Com o mesmo carisma, com a mesma disposição que um dia jurou estar disponível para derramar o seu sangue para defender Portugal, para servir Portugal, não tenho dúvida nenhuma que, se no seu entender, este passo ou outro, for o caminho para melhor servir o seu país, com naturalidade vejo que é esse o caminho que ele abraça.
Não o condena por seguir esse caminho?
Mas porquê?
Há muita gente que pensa que um militar não o devia fazer.
Meu Deus… Acho que já estamos mais além. Talvez tivesse existido uma fase na história da nossa democracia em que isso porventura pudesse ser um fator a ter em conta, a ter em consideração, o facto de se ser militar, mas não é de todo a situação em que nos encontramos.
Vê com algum carinho, com simpatia, a possibilidade do almirante avançar para a Presidência?
Isso é outra coisa. Ver com carinho ou sem carinho ou não ver, sobre isso não me vou pronunciar. O que quero dizer é que também aqui valerá aquela palavra do Papa: todos, todos, todos. Um serviço de cidadania por excelência deve estar ao alcance de todos os cidadãos e não deve haver aqui discriminação. É sinal da nossa maioridade e da nossa maturidade. Tanto mais que é um daqueles cargos em que o grande princípio que norteia a pessoa que se candidata é o serviço. Conhecendo-o como o conheço, o almirante é uma pessoa que está para servir.
Então vamos imaginar que um religioso concorria à Presidência da República.
Mas aí, atenção, é o próprio Direito Canónico que contempla a impossibilidade. Só nos casos de abandono da vida religiosa ou pedindo a resignação é que a pessoa é libertada para o fazer. E já aconteceu muitas vezes. Um sacerdote que conheço muito bem, que foi deputado à Assembleia da República e depois foi presidente de Câmara, pediu a permissão para que durante esse período não estar a exercer o seu oficio sacerdotal.
Olhando para trás, o encerramento das igrejas durante a pandemia teve consequências nocivas ou, pelo contrário, levou os crentes a procurarem outros locais de encontro e a serem menos passivos?
Muito embora eu não tenha uma opinião completa e totalmente formada, devo dizer que compreendi o porquê, as razões sanitárias que justificaram o fecho das igrejas, mas devo dizer que não foi de ânimo leve que assisti ao encerramento. Era bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança e os nossos militares e os nossos polícias continuavam a trabalhar e a trabalhar de que maneira. Portanto, se havia momento, ocasião e circunstância em que estes homens e estas mulheres, que estavam todos os dias a lidar com uma ameaça que era o vírus, mais necessitavam do suporte e auxílio a Deus, era aquele. Por isso dei autorização para que a nossa Sé Catedral, que é a Igreja da Memória, estivesse algum tempo aberta durante esse período, exatamente para vir ao encontro da necessidade que as pessoas tinham para estarem com Jesus e alimentarem-se da vida. Os efeitos foram muito, muito nocivos.
Já se conseguem avaliar os efeitos e ainda existem repercussões?
Desde logo há uma coisa que é preciso ser muito claro e ter a honestidade para a enfrentar: num momento em que o mundo tanto precisa de Deus, como é o momento da pandemia, da peste, da doença, foi exatamente nesse momento que se fecharam as igrejas.
Como via aqueles funerais, por exemplo, sem ninguém?
Com tristeza, porque eu próprio os vivi, seja como ministro do culto, seja como familiar. Recordo-me de um funeral em que não era permitida a presença de pessoas que não fossem três ou quatro familiares à distância. Aquilo foi muito mau até do ponto de vista psicológico.
Não se faz o luto.
Sim, e eu tive essa experiência com a morte do meu pai, que foi nesse período. Aquela sensação de estarmos na igreja a celebrar a partida dele e ele não estava ali, nem sequer o corpo, porque não podia. Estava dentro do carro a uns metros de distância. Mas recordo com saudade e positivamente a ação do capelão do Hospital Militar do Norte – há mais, mas eu recordo particularmente este – que nunca deixou de estar presente ao serviço devidamente equipado com toda aquela dinâmica de proteção, e que depois passava por junto dos doentes, dava-lhes um abraço e depois ia retirando as luvas uma a uma. Fazia uma coisa extraordinária: quando o corpo dos que morriam era colocado dentro dos sacos de plástico, ele não só o benzia com água benta, como deixava um terço benzido. Isso era muito importante para a família. E depois, como não podia haver sequer celebrações numerosas, ele reunia-se na casa da família, naquele círculo estreito, para celebrar missa de sétimo dia. Aquilo que sobressaiu foram atos verdadeiramente heroicos de muitos capelães e muitos padres, além de todos os outros profissionais que garantiram serviços essenciais.
Na referida entrevista ao SOL, deu a entender que não concordou com o confinamento, que era uma coisa contra natura.
Aquilo que me meteu muita impressão foi uma falta tremenda de espírito crítico da sociedade.
Em que sentido?
Ninguém se questionou se o único caminho era este, se não havia outro. Porque depois verificávamos que países como a Suécia não tinham adotado tanta assertividade e rigidez. Não havia um espírito crítico.
Apareceram alguns, que depois foram considerados como negacionistas.
Não sou negacionista! Até porque eu próprio contrai a doença do covid. É verdade que foi sem sintomas, mas o teste acusou que eu estava com a doença.
Achava que devia ter havido mais discussão?
Sim, mais espírito crítico. Li algures que estão agora a sair relatórios muito críticos relativamente às práticas que então foram executadas. Mas aquilo que mais me pesou foi a resignação de uma sociedade altamente tecnológica, cientificamente evoluída que, de repente, aceita passivamente ficarmos privados de liberdades.
As igrejas ficaram ainda mais vazias?
Houve uma queda em termos de participação, nalguns sítios mais acentuada do que noutros, mas há nitidamente um antes do covid e um depois. Houve uma outra consequência, pessoas que se habituaram a celebrar a fé de determinada maneira, através das ferramentas digitais, e que não voltam lá e a ter uma participação ativa. Uma outra coisa que ao mesmo tempo é boa e má, apesar de ser inevitável: hoje é muito fácil fazer uma reunião ou encontro evia Zoom e passou a faltar aquela presencialidade, estarmos a olhar uns para os outros, olhos nos olhos.
Para viver a fé isso é fundamental?
É fundamental porque a nossa participação ativa não pode ser por encomenda. Temos de estar presente para receber o corpo de Cristo, a própria comunidade é para nós um valor de tal maneira fundamental que até a definimos como o Corpo de Cristo. Houve outra coisa que também teve um caráter altamente negativo em termos de repercussão e em termos de efeitos, que foi, sobretudo, a questão legítima de onde é que se situa a importância da fé, a importância da dimensão espiritual, no meio desta catástrofe? As pessoas viam o polícia, o médico, etc., mas não viam o padre. Foi como se de repente se tivesse deslocado a presença da Igreja ainda mais para as margens. Porque fechámos as igrejas, deixámos de funcionar e quase deixámos de existir.
É recuperável?
Acho que sim. As pessoas estão a regressar às igrejas.
Há uma tendência de a participação dos crentes ser mais nos movimentos do que nas paróquias, que estão a ficar mais vazias.
Em primeiro lugar, vou-lhe falar de qual é a perspetiva de Lisboa, que é olhar com naturalidade, com simplicidade, mas com verdade para essa questão e não criar aqui uma dicotomia que me dizem que não existe. São todos movimentos parte da Igreja e, portanto, são expressões e lugares e talvez modos de viver, de celebrar, de aprofundar a fé com uma tonalidade ou uma acentuação específica, mas que não é por isso que não faz parte da única Igreja que existe. Dito isto, creio que não podemos aceitar que a paróquia se tenha transformado numa espécie de estação de serviço que está ali para aviar os sacramentos. A paróquia não pode ser só isso e não pode ser isso. É um lugar de vivência da fé, que alimenta a fé, que sustenta a fé, que propõe e que se abre a que a pessoa viva a fé na sua integralidade. Sempre falando de Lisboa, estamos particularmente atentos para que, a começar no sacerdócio, no pároco, até ao último cristão batizado acolhido na Igreja pelo Santo Batismo, tem que se ter a noção de que a paróquia é a Igreja com a vocação de ser Mãe. É ali que nós vivemos esta participação e temos que enriquecer a paróquia com a nossa presença. Agora, as paróquias têm que estar à altura de oferecer aquilo que a sociedade e as pessoas concretamente vão à procura e precisam.
Há uns tempos fizemos uma reportagem em missas celebradas no rito antigo, em latim, e outras comuns. As primeiras estavam cheias e as segundas vazias. O que isto quer dizer?
O que a sua questão está a expressar é o fascínio de algumas pessoas ou de algumas faixas da nossa sociedade pelo mistério, pelo exuberante que o latim encerra. O sacerdote a celebrar de costas voltadas ainda para o povo. Quanto à quantidade de gente numa missa e na outra missa, isso é fácil de explicar. São pessoas que vieram de muitos sítios e proveniências para aquela celebração. Enquanto que as celebrações ao jeito e ao estilo do rito de Paulo VI são as nossas celebrações quotidianas. É natural que haja aqui uma distinção numérica mais espacial pelo próprio espaço.
Não é um recuo?
Talvez seja numa determinada perspetiva, numa outra perspetiva talvez não seja. Tudo depende. Por natureza, sou muito respeitador daquilo que são as sensibilidades religiosas de cada um e, portanto, não vou aqui atirar nomes para ninguém, nem vou dar classificações. Tento compreender aquilo que se está a passar e, de facto, verificamos que há uma faixa, uma parcela da nossa sociedade cristã, que tem um fascínio e uma atração pela dimensão mistérica da existência, aquela solenidade, majestade do antigamente.
O diretor da Pastoral Juvenil dizia numa entrevista ao Observador que a Igreja não consegue ainda entender os jovens de hoje. Concorda?
Os jovens, sobretudo hoje, surgem com uma grande necessidade de alguma solidez na vida. Há fatores ou expressões da vida da Igreja que à partida e aparentemente lhes dão essa solidez ou substância. Talvez porque o mundo é muito ruidoso, os jovens de hoje têm manifestado um certo cansaço do ruído, da agitação. São eles que mais procuram os tempos e espaços de silêncio, de interiorização. Mais facilmente eles alinham e sentem-se atraídos pelo silêncio do que pelo ruído. Tudo isto se verifica ao nível da fé. Não sei se têm noção de quantas experiências e de quantas iniciativas de adoração eucarística que entram pelas noites dentro existem.
Este exemplo que acabou de dar é ou não é um sinal de que os jovens estão mais conservadores dentro da Igreja? Digo isto porque todas essas iniciativas são impulsionadas pelos padres mais conservadores.
Não faço essa leitura de todo. Os jovens são o barómetro da sociedade. E aquilo que eles estão a tentar expressar é o que os homens e as mulheres deste século XXI têm dentro de si. Houve um teólogo alemão chamado Karl Rahner que disse um dia, já no século passado, que o século XXI ou será espiritual ou não será. Quando Rahner fez este pronunciamento, e ele era um teólogo jesuíta ainda por cima, tinha compreendido que o ritmo de vida altamente versado no material e, portanto, no efémero e no ter, não era vida. E os nossos jovens de hoje são exatamente como ele, como que a recuperarem dimensões essenciais do ser humano. Ou seja, a própria ligação ao transcendente. Não tem aqui que ver com o tradicionalismo ou com progressistas, tem a ver com a natureza do ser humano, com o seu próprio estatuto. O Papa Francisco foi recentemente à Universidade de Louvain na Bélgica e teve um acolhimento bastante crítico da parte de um corpo docente, mas os estudantes distanciaram-se daquela tomada de posição e disseram que já não estávamos no tempo do Maio de 68. Estamos realmente num tempo novo onde emerge esta dimensão espiritual e a interioridade. Queria, no entanto, fazer aqui um alerta, que isso está mesmo no meu coração: creio que não podemos esquecer que a ligação de cada um a Deus deve depois levar a uma ligação e a um compromisso na história para a construção da justiça, para a promoção da solidariedade.
Que tenha um reflexo na vida concreta, na sociedade.
Sim e também vejo isso nos jovens de hoje. Por exemplo, ainda tenho como um hábito, chamemos-lhe assim, desde 2016, quando fui nomeado missionário de misericórdia, de acompanhar grupos de voluntários que vão levar comida, roupa, etc., aos sem-abrigo. Ainda tento ir pelo menos uma vez por mês. E são também jovens que lá estão. Vejo que os nossos jovens são muito generosos e alinham com disponibilidade nesta dimensão.
No documento do Sínodo, o Papa diz que ‘temos que criar uma ética e moral sexual focada nas relações’. A mensagem da Igreja está desfasada da vida dos jovens nesta dimensão, na moral sexual?
Essa dimensão relacional é muito mais profunda e estruturante do que a capacidade de se chegar aos jovens. Ela é verdadeiramente vital, porque hoje os problemas do mundo residem nos problemas das relações. Os grandes problemas e desafios pastorais que a Igreja tem, em qualquer comunidade e não em abstrato, são problemas de relações. Quanto aos jovens, nós temos uma certa dificuldade em acompanhar, sobretudo porque o mundo juvenil é um mundo feito a grande velocidade, onde vale a máxima de que aquilo que hoje é valor, amanhã já não é. Os movimentos sociais que operam na sociedade têm um impacto e uma acutilância no mundo dos jovens impressionante. É por isso que entendo que essa tal dificuldade de comunicação pode residir um pouco nisso. Enquanto que nós estamos ainda muito ligados a padrões, a estruturas, a esquemas, os jovens não estão. Vejam a facilidade com que os jovens hoje saltitam de emprego para emprego.
Para onde acha que a Igreja vai caminhar? Vai dar resposta às questões mais fraturantes, como a ordenação de padres casados, das diaconisas, da bênção dos homossexuais? No final deste ano haverá cerca de 140 cardeais com capacidade de voto e 111 foram nomeados pelo Papa Francisco. Ou seja, o Papa Francisco tem aqui a possibilidade de controlar, teoricamente, o seu sucessor. Mas, com a diversidade que existe, como é que a Igreja irá conseguir a união?
A importância do Sínodo foi tal que nós ainda não fomos capazes de a avaliar. Ele deu-nos um método, deu-nos um modo e um como enfrentar estas realidade. Neste momento, não sou capaz de antever qual será a decisão final, mas posso dizer que graças ao Espírito e ao carisma da Igreja sinodal, o caminho vai ser o diálogo e a escuta. Quem esteve a participar no Sínodo não esteve a falar sobre determinados temas. Para mim, a importância fundamental do Sínodo foi como é que eles o faziam. Reuniam-se em grupos de dez ou 15 e num primeiro momento cada um se pronunciava sobre um determinado desafio ou questão. Pouco depois, paravam e havia um momento de oração. Num segundo momento cada um se pronunciava acerca do que mais o tinha tocado, interpelado, do que ouvira. Novo momento de oração e num terceiro momento ia-se para a decisão final. Acho que este é o caminho que se vai percorrer a partir daqui para enfrentar estas e outras questões.
Qual é a grande vantagem que isto dá?
A salvaguarda da integralidade e a unidade da Igreja.
Mesmo relativamente à igreja alemã, que é das mais fortes em termos financeiros, e perdeu 500 mil fiéis num ano?
É preciso conhecer aquela cultura, os grandes teólogos do século XX são alemães. Julgo que existe no povo uma vontade forte, não só no episcopado e talvez nem tanto ou principalmente no episcopado mas no povo, de manter a Igreja una e unida com a figura de Pedro.
Não acha que vai haver uma cisão?
Não acho. A Alemanha é importante demais e ela tem consciência da importância que tem e do que representa para a Igreja. Nós hoje falamos de comunhão, falamos até de sinodalidade, não nos esqueçamos que tudo isso, pelo menos na modernidade, foi em Tübingen que começou a ser elaborado. Eu creio que o método sinodal é o método que salvaguarda a unidade da Igreja.
O que está a dizer é que o Sínodo foi um processo e não uma série de respostas a todas estas questões. Então como é que vai ser transposto esse modelo para a Igreja portuguesa?
Uma Igreja constituída por mulheres e homens que, em primeiro lugar, são capazes de escutar. De escutar a voz de Deus, mas de escutarem-se uns aos outros. Isto que é fundamental, porque significa que na Igreja não há quem dá e quem recebe, quem prega e quem ouve; na Igreja, pela sinodalidade, são todos protagonistas de palavra, protagonistas do Verbo.
Como é que se concretiza?
Vai exigir uma mudança, que não precisa de ser profunda, nos órgãos colegiais, que devem passar a funcionar desta forma. Eles já existem: os conselhos pastorais, económico, o conselho de preparação para os sacramentos, etc. Não podem de maneira nenhuma servir para certificar o que o senhor prior diz. Têm de ser constituídos por pessoas bastante amadurecidas na fé, que têm uma visão evangélica acerca daquilo que é o mundo e as respostas a dar.
O que acha da bênção a casais homossexuais?
A minha resposta, e é genuína, é que acompanho aquilo que a Igreja superiormente decidir.
Mas se no covid não nos questionámos, também neste caso não se questiona?
Mas eu questiono permanentemente. Assim como a Igreja se questiona permanentemente. Exatamente porque a Igreja hoje em dia tem essas questões em cima da mesa, eu estou com a minha Igreja no momento em que se está a questionar. Não temos respostas aqui. A minha resposta só pode ser esta e não pode ser outra porque eu, como patriarca de Lisboa, em questões tão fundamentais como aquelas que está referir, não tenho o direito de ter aquilo que você tem, que é a sua opinião. A sinodalidade é isto, é que haja da minha parte a humildade de eu me abrir àquilo que são as vozes de todos. Não vai sacrificar aquilo que será o meu pensamento e a minha opinião própria, obviamente. Mas como patriarca entendo que tenho a responsabilidade de não ter o privilégio de dizer ‘acho isto ou aquilo’. Tudo isso são questões que nós estudamos amplamente em Teologia. Porque é que é difícil, neste momento, emitir uma opinião? Porque a complexidade das questões envolvidas é de tal ordem, seja do ponto de vista teológico, seja do ponto de vista antropológico e eclesiológico, que eu é que acompanho aquilo que é o ritmo da Igreja. Mas quando eu digo o ritmo da Igreja, não estou a dizer Roma, a hierarquia, eu acompanho o ritmo da Igreja que é o meu povo. Portanto, estamos a fazer caminho. Eu estou com a Igreja e caminho ao ritmo da Igreja. Se o ritmo da Igreja está num momento de reflexão, eu estou com a Igreja.
Quanto aos abusos da Igreja…
Nunca é demais reafirmar a dor e a solidariedade para com as vítimas. Nunca nos esqueçamos das vítimas.
Continua a correr uma hora por dia?
Sim e até já tive direito a um quase atropelamento. Estava a atravessar a rua numa passadeira a correr e de repente surge um carro a alta velocidade e quando eu percebo que ele não me viu, lanço-me para o outro lado. Desloquei o ombro.
Vamos vê-lo algum dia num congresso de um partido ou numa bancada do Estádio da Luz?
No estádio da Luz, em Alvalade, no Belenenses.
E num congresso do PCP?
Não é tudo a mesma coisa. Ir a um estádio de futebol é uma coisa de que gosto.
Não gosta de partidos?
Eles são essenciais para a nossa democracia. Considero, no entanto, que o caminho que os partidos estão a percorrer é uma resposta para as sociedades. E têm a minha solidariedade. Nunca fui convidado, mas se um dia eu for convidado, digo-vos que não há bloqueios para mim em relação a nada. Considero é que um partido é uma proposta, um caminho para responder à sociedade, seja naquilo que são os seus problemas, seja naquilo que é o caminho que tem que trilhar para o seu desenvolvimento. Se recebesse um convite para participar, não sei como é que iria reagir. Não tenho na minha vida zonas proibidas.
Não tem linhas vermelhas.
Exatamente. Reconhecendo eu que nem todos os caminhos que um partido apresenta são caminhos por mim partilhados ou por mim condivididos. Dito isto, não digo que não iria. Portanto, os senhores dos partidos que me convidem e os clubes de futebol que me convidem e logo se vê. E que se saiba isto: os jogos que eu vou ver, a equipa da casa nunca perde.
D. Américo é a figura mais polémica da Igreja portuguesa?
Não. A figura mais polémica da Igreja portuguesa chama-se indiferença religiosa.
O que se se colheu com as Jornadas Munidas da Juventude? Já se consegue fazer o balanço?
Foi a maior bênção que aconteceu à Igreja em Portugal nos últimos tempos. Foi uma prova viva do que é a sinodalidade, um envolvimento total e absoluto de todas as faixas e, em segundo lugar, foi um acontecimento capaz de suscitar nas pessoas o entusiasmo por um ideal. Não foi só dos jovens. Em terceiro lugar, graças às jornadas, nós vimos que os jovens verdadeiramente maximizaram ainda mais a sua ligação às várias formas de vida espiritual, o silêncio, a interiorização, a meditação.
Mas teve efeito de revitalização?
A Igreja revitalizou-se. Fundamentalmente pelo protagonismo que os jovens têm cada vez mais dentro das igrejas. Hoje os jovens não podem ser ignorados ou deixados na margem até das decisões. Nas diversas comunidades, nas diversas paróquias, reativou-se aquilo que antigamente, no nosso tempo, se chamava os grupos juvenis, a pretexto da Jornada. Temos histórias impressionantes de paróquias que estavam desertas de jovens e que hoje têm lá já um grupo de jovens a funcionar. As jornadas vieram dizer aos jovens que é possível ser Igreja e caminhar como Igreja festivamente, celebrando, saindo. Ou seja, de repente, a vida com a Jornada Mundial da Juventude deu à sociedade, e particularmente aos jovens, a certeza de que em todo e qualquer sítio é sítio para viver de acordo com a espiritualidade, para viver a fé.
Todos, todos, todos foi um apelo que está a ser cumprido?
Sim. Esse apelo é repetido, é citado a torto e a direito, contudo há muitos que vêm logo a seguir corrigir, ou clarificar o que é que o Papa quis dizer, ou que não é bem a assim.