A ‘guerra’ dos números com a ameaça do regresso do défice

Centeno diz que Portugal vai voltar já no próximo ano a ter défice, contrariando as contas do Governo. Economistas ouvidos pelo Nascer do SOL falam em jogo político.

Contra todas as previsões, o Banco de Portugal (BdP) admite que Portugal regresse a uma situação de défice orçamental entre 2025 e 2027. O Boletim Económico de dezembro aponta para um défice de 0,1% em 2025, 1% em 2026 e de 0,9% em 2027. Valores diferentes face ao Conselho das Finanças Públicas e da Comissão Europeia que estimam um excedente de 0,4%, enquanto o Ministério das Finanças e a OCDE alinham-se nos 0,3%.

Estas diferenças já foram desvalorizadas pelo primeiro-ministro que preserva o otimismo quanto ao excedente orçamental no próximo ano, referindo que «mais nenhuma entidade» interna ou externa acompanha o «pessimismo» do governador. De acordo com Luís Montenegro, os dados do Banco de Portugal «aparecem em contramão, visto que não há mais nenhuma entidade que acompanhe o pessimismo que o senhor governador do Banco de Portugal expressou».


Uma questão também desvalorizada pelos economistas contactados pelo Nascer do SOL. João César das Neves, apesar de reconhecer que a «questão financeira é complexa», lembra que, «por um lado, a trajetória anterior das finanças públicas foi equilibrada», admitindo que «as declarações públicas dos responsáveis vão no mesmo sentido, o que naturalmente leva as organizações que fazem previsões, sobretudo as internacionais, a assumir a continuação dessa trajetória».


O economista diz, no entanto, que «por outro lado, a fragilidade política do Governo minoritário tem gerado várias exigências despesistas, seja por parte do poder, seja por parte da oposição, o que leva razoavelmente a antecipar que o equilíbrio recente do Orçamento está fortemente em risco». E não hesita: «Pode dizer-se que, ao prever já um défice, o Banco de Portugal está a fazer uma leitura mais política do que económica da circunstância, mas não se pode dizer que ela seja injustificada».

‘As contas podem ir todas ao ar’


Já Luís Aguiar-Conraria lembra que apenas o Governo tem capacidade para prever devidamente as suas despesas. «As entidades internacionais acreditam no que dizem e acabou-se. Imagino que Mário Centeno esteja a fazer uma leitura enquanto ministro das Finanças que está a ver a despesa a aumentar e não acredita que as receitas aumentem tanto quanto o Governo acha que irá aumentar», revela ao nosso jornal. Ainda assim, admite que não dá grande importância a esta divergência de números, uma vez que, entende que as diferenças são pequenas e que as contas até poderão ser afetadas consoante o que se passa nas outras economias europeias, nomeadamente na Alemanha e em França. «Estamos a falar de diferenças de margem mínimas e basta haver uma redução na Alemanha e na França que atinja Portugal para todas estas contas irem ao ar. Não consigo dar grande importância a isto e uma diferença de 0,3% não é assim tão importante, pois estamos a falar de algumas centenas de milhões de euros», salienta.
E lembra que, mesmo que Mário Centeno tenha razão e que as suas contas estejam bem feitas, a execução orçamental em 2025 pode deixar de implementar algumas despesas. «Mário Centeno sabe isso melhor que ninguém, porque fazia o mesmo. Quando Mário Centeno era ministro das Finanças orçamentava imensa despesa que depois não autorizava, eram as famosas cativações. Mário Centeno sabe perfeitamente que se o ministro das Finanças quiser chegar ao fim do ano com um excedente chega. Vejo esta questão muito mais como sendo politica do que uma questão de saber quem é que tem as contas certas e acho que ninguém daria tanta importância a isso se o nome de Centeno não tivesse sido apontado para as presidenciais», refere.


O economista recorda a altura de Mário Centeno enquanto ministro e os alertas dados pelo Conselho de Finanças Públicas que fazia contas mais restritivas face às do Governo socialista. «Nessa altura, não se dava grande importância a isso, o alerta estava lançado, António Costa respondia que provámos mais do que uma vez que as suas previsões estavam mais certas do que as dos outros e depois Mário Centeno fazia as cativações, o mesmo acontecia com João Leão e mais tarde com Fernando Medina», acrescenta ao Nascer do SOL.

Os bons alertas do Banco de Portugal


E não hesita: «Gosto sempre quando vejo instituições credíveis, como é o caso do Banco de Portugal a alertar para o perigo das contas derraparem porque isso é meio caminho andado para o Governo não deixar as contas derrapar. E objetivamente quem tem capacidade para determinar o défice é o ministro das Finanças e o primeiro-ministro, basta não autorizarem determinadas despesas e na verdade não são obrigados a gastar o que está previsto no Orçamento. Nisso sou muito apartidário. Ficava muito contente com o brilharete de Mário Centeno e depois com os seus sucessores e agora ficarei contente com o brilharete de Miranda Sarmento».


Também Luís Mira Amaral lembra que o Banco de Portugal é um órgão independente, nomeadamente do Governo e, como tal, admite que pode fazer as suas análises que podem não coincidir com as do Executivo. «Não vejo drama nenhum nisso e ainda bem que é assim. Faz parte das regras do jogo. Também acho que Mário Centeno mesmo que tenha razão, não sei se tem porque nesse aspeto está em minoria em relação a todos os outros – todas as instituições parecem estar mais de acordo com a estimativa do Governo do que do Banco de Portugal que aparece completamente isolado e foi isso que o primeiro-ministro aproveitou e bem para falar – o Governo tem a capacidade de controlar a execução orçamental, fazendo cativações».

O trunfo das cativações


Um trabalho de casa que, segundo o economista, foi usado por Centeno quando estava no Governo. «Lembro-me quando Mário Centeno era ministro das Finanças e várias instituições, entre as quais o Conselho de Finanças Públicas, alertavam para o nível de despesa e para o défice que ia ser gerado, no entanto, o Executivo tinha a capacidade de fazer cativação e de fazer o controlo orçamental», refere ao Nascer do SOL.


Ainda assim, reconhece que são alertas úteis no sentido de consciencializar o Governo de que tem de haver algum controlo na despesa. «Está a haver um grande aumento da despesa pública e isso preocupa-me. Mesmo que não haja défice em 2025 acho que a despesa pública está a crescer a valores que nos deve merecer reflexão. Qualquer pessoa vê isso, não é preciso ser ex-ministro das Finanças para perceber que a despesa pública está a aumentar muito e nesse aspeto se o alerta for visto no sentido de controlo da despesa pública é positivo», salienta.


De acordo com o Banco de Portugal, «as projeções orçamentais apontam para o retorno a uma situação deficitária, embora o rácio da dívida pública mantenha uma trajetória descendente», acrescentando que o regresso aos défices orçamentais é explicado «pelos efeitos das medidas permanentes já adotadas, que impactam tanto a despesa pública como a receita fiscal, pelos empréstimos do PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] previstos para 2026 e, a partir de 2027, pelo aumento de despesa nacional necessária para assegurar a continuidade dos projetos financiados pelo PRR».


Perante estes alertas, Montenegro afirma que a «posição do Governo é de manter firmeza e confiança no cumprimento do nosso objetivo de termos um superavit no próximo ano», afirmando que o Governo irá acompanhar a execução orçamental e, «se for necessário» irá fazer «algum acerto» para cumprir os seus objetivos.


Por outro lado, o primeiro-ministro assumiu que as perspetivas e cenários do Banco de Portugal «não são tão diferentes quanto isso», ao destacar que as previsões de Governo e da instituição liderada por Mário Centeno surgem separadas por «quatro décimas».
E face às divergências de números, o governante assegura que o «tira-teimas» só será possível a 31 de dezembro de 2025.

Outras ‘guerras’


Já em maio deste ano, o verniz tinha estalado em torno da dívida pública de 2023, depois de a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) ter acusado o ex-ministro das Finanças de ter reduzido o valor de forma «artificial». Fernando Medina acusou os técnicos que prestam apoio aos deputados no Parlamento de «erro grave» e de ser «falsa» a afirmação que foi incluída no relatório.


Recorde-se que, no ano passado, foi a primeira vez, desde 2009, que a dívida ficou abaixo dos 100% do Produto Interno Bruto (PIB) – situou-se nos 98,7% do PIB: 263 mil milhões de euros, o que representou uma queda de 9,4 mil milhões de euros face ao ano anterior -, mas essa redução foi feita graças ao dinheiro das pensões futuras dos portugueses, através do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS) e da Caixa Geral de Aposentações (CGA) e de outras operações.


Outra dor de cabeça para Miranda Sarmento diz respeito ao estado das contas públicas deixadas por Medina. Também em maio, Miranda Sarmento acusou o antigo Governo de deixar um défice de quase 600 milhões de euros, que resulta até de medidas tomadas depois das eleições legislativas de 10 de Março, no montante avaliado pelo governante em 950 milhões de euros. «As contas públicas estão bastante pior» do que o anunciado pelo anterior Executivo, acrescentando que a situação é exigente, mas que ainda assim, a Aliança Democrática iria cumprir o programa eleitoral. A resposta não se fez esperar e o ex-ministro das Finanças acusou o Governo de «impreparação técnica» afirmando que o país não tinha «qualquer problema orçamental».