Luísa Costa Gomes. ‘As livrarias são sítios que me deprimem profundamente’

.

Diz que nunca conhece os escritores laureados com o Nobel e que lhe faz impressão visitar as livrarias. ‘É tudo ao molho, não há critério’. A propósito do seu recente livro de contos, Visitar Amigos, explica qual é o seu objetivo na escrita. ‘Em música e em pintura chama-se sprezzatura: parece uma coisa que se faz sem esforço, mas deu anos de trabalho’.

Encontramo-nos na Caparica, entre as árvores do parque do INATEL, não muito longe de onde reside. «É outro mundo quando se passa a ponte, em termos de população, em termos de clima, em termos de estilo de vida», diz-nos Luísa Costa Gomes. Nascida em 1954, pensou seguir Românicas ou Germânicas, mas acabou por decidir-se pelo curso de Filosofia. Começou a dar aulas ainda durante a licenciatura. Com 23 anos, interrompeu o ensino para passar algum tempo na Alemanha.


Acabou por tornar-se escritora e tradutora, tendo fundado e dirigido a Ficções, revista de contos graças à qual este género passou a ser visto com outros olhos em Portugal.


Conversámos a propósito do seu recente livro Visitar Amigos (ed. D. Quixote), que, diz-nos, foi «pensado como uma exposição de pintura». Aliás, essa é outra das suas ocupações. «Ainda hoje estive a pintar, acordei às 06h30 da manhã a pensar ‘tenho que ir pintar’», confidencia. «Mas saiu tudo bastante mau…».


Este livro tem treze contos, como aliás o Afastar-se, publicado em 2021.
O meu primeiro livro de contos [de 1982] chama-se Treze Contos de Sobressalto. O Afastar-se, que foi feito 40 anos depois, tem treze contos para brincar com esse primeiro livro. E este mais ou menos calhou ter também 13. Acabei por determinar que seriam 13, porque se não nunca mais acabava. Ia por aí fora, estava-me a saber tão bem…

Não é uma pessoa supersticiosa, portanto.
Não tenho as superstições normais, dos gatos pretos e essas coisas. Mas toda a gente tem as suas superstições.

A ordem por que os contos aparecem aqui é a ordem pela qual os escreveu?
É mais ou menos cronológica. Isto foi pensado um pouco como uma exposição de pintura; ordem cronológica, sim, desde que não colida com a ordem da exposição, que é, no fundo, a totalização dessas atmosferas. Na última apresentação do livro que fiz, na Fnac, a Maria João Martins notou que este conto começa com: «Reparas com certeza na imensa mole de respeito que implica da minha parte não te perguntar nada de pessoal». Só nessa altura é que me dei conta de que há realmente uma tematização da amizade que acaba num respeito tão extraordinário pelo outro que nem quer saber nada que ele não queira contar. São coisas que fazem parte do inconsciente do conto. E que eu estou sempre a descobrir. Por isso é que a publicação é apenas uma etapa, porque depois o livro continua a fermentar e continua a dizer coisas e, em termos ideais, continua a produzir coisas.

Escrever às vezes é como escavar para tentar chegar a sítios a que não tínhamos acesso no imediato?
Se não for assim também não tem muito interesse. Se formos escrever uma coisa que já está escrita ou que se esgota na ideia ou na história, de certa maneira não tem grande interesse.

Há aqui um tema que é a proximidade e o afastamento. Como às vezes, depois das separações, as pessoas deixam de estar, digamos assim, ‘em sintonia’. Isso resulta da sua experiência?
Não. Por acaso, a minha experiência mostrou-me o contrário.

A afinidade mantém-se?
A afinidade mantém-se e, de certa maneira, é indiscutível. Aquilo que muda é a relação, sem perder nem valor, nem intimidade, nem afeto. E penso que uma excessiva proximidade é uma forma de não se conseguir ver a pessoa que está à nossa frente. É como se estivéssemos plasmados nela, como naquelas relações em que, no fundo, somos um. A relação passional é das relações mais narcísicas, mais egoístas, mais violentas para o outro, porque não se vê nada do que lá está. É tudo projetado, é tudo imaginário. E é violento. Para mim é um paradoxo grande que nós violentemos dessa maneira as pessoas que mais amamos.

Isso também acontece muito com pais e filhos. Pais que não deixam que os filhos…
Que sejam o que eles quiserem. Que façam as suas asneiras, que cresçam. A ideia do crescimento é isso mesmo, é conseguir ter espaço para fazer o bem, o mal, o assim-assim, o que for. E as pessoas que estão muito próximas não têm a melhor visão sobre isso, pelo contrário, porque é uma visão feita de aflição, de ansiedade, de narcisismo, de projeção.

Aproveita situações, notícias de jornal, histórias que ouve para os seus contos?
Este livro tem vários contos feitos a partir de histórias que me contaram. A situação desse velho senhor que é seguido pelos amigos, por controlo remoto da filha, foi uma amiga minha que me contou. Achei uma história de uma ternura extraordinária e algo que eu gostaria que me fizessem a mim. A partir de certa idade há um terror de as pessoas começarem a fazer coisas mal feitas ou de se esquecerem das coisas… como se as pessoas de 40 anos não se esquecessem de tudo e mais alguma coisa. A história da barragem também parte de uma história que me foi contada por um amigo. Portanto, sim, há várias histórias que partem de situações ou de histórias contadas.

Achei muito interessante ‘O lenço de seda italiana’. Porque contrapõe o lado mais fútil…
Com a coisa mais horrorosa!

Que é o desaparecimento de uma pessoa.
Não é bem o desaparecimento, é a ‘queimadela’, que eu acho extraordinário que se tenha banalizado. É um grupo de amigas que estão a falar de coisas fúteis, do que é que as mães vestiam e não vestiam. E depois quem é que foi cremado e quem é que não foi cremado, uma coisa que eu acho terrífica. Elas estão a beber o chá quentinho e há uma espécie de uma atmosfera subterrânea de terror. Não só por aquilo que elas fizeram às mães delas, como por aquilo que elas próprias vão sofrer. Quer dizer, não vão sofrer nada porque já estão mortas, mas a alma, enfim… Gostei muito de escrever esse conto, porque começou como uma vibração muito sentimental e depois passou a ter um peso humorístico muito negro, embora ainda esteja ali na borderline. Porque é um conto muito simples, é quase uma anedota, parece que elas não estão a fazer nada. E esse é o meu objetivo enquanto ficcionista. Em música e em pintura chama-se sprezzatura: parece uma coisa que se faz sem esforço, um duplo mortal de costas, como fazem aquelas ginastas sobre-humanas. Fazem aquilo como se não fosse nada, mas deu anos de trabalho. O meu pai dizia sempre isso: ‘Olha que o simples é inimigo do fácil’. E é verdade, são 40 anos de trabalho para conseguir atingir essa simplicidade.

Fez-me lembrar uma vanitas, uma meditação sobre a efemeridade.
Claro que a efemeridade da vida está lá sempre. Mas é sobretudo sobre vivermos em cima de terror denegado. Não é só o terror da cremação, é o terror da morte, é o terror do sofrimento dos outros… Fingimos sempre que essas coisas não existem, porque doutra maneira seria impossível viver. Estou a pensar no sofrimento das crianças, na pedofilia, na pornografia infantil, no tráfico de órgãos, etc. Coisas que são inomináveis, coisas de que não podemos nem conseguimos falar. E que estão lá.

Aí, ou o ignoramos ou então temos uma boa alternativa, que é darmos em malucos.
Dar em maluco não é uma alternativa. Portanto, só podemos ignorar e depois, de vez em quando, vislumbrar. Lembro-me de uma vez ir com um amigo meu por uma rua no Algarve e a certa altura há um sururu, alguém a bater numa mulher e a metê-la num jipe. E ele assim para mim: ‘Não olhes, não olhes, que aquilo é tráfico de mulheres’. E fomos rapidamente embora. Para mim aquilo foi um vislumbre de que estas coisas existem mas nós não estamos habituados a vê-las ali, estamos a vê-las das oito da noite às oito e meia, porque o lugar delas é no telejornal, não é na vida real. Há coisas que conhecemos em termos de conceitos abstratos metidos em categorias estanques: tráfico de mulheres, pornografia infantil, essas coisas… A gente aguenta umas alusões vagas no período pós-prandial, em que já tenha comido, já esteja na sobremesa, com os açúcares equilibrados.

Falemos um pouco do conto. É considerado um género menor?
Sim, é. Em Portugal e penso que na cultura latina é considerado um género menor, porque os grandes ficcionistas escreveram sobretudo romance, o conto era uma coisa que faziam para experimentar a mão. Mas na cultura anglo-americana o conto é fundamental, porque não só é um género em si mesmo, com escritores que são apenas contistas, como também é uma forma de publicação imediata através das revistas e dos jornais literários, etc., que nós também não temos.

Mas tivemos a revista Ficções, que dirigiu.
Acho que a Ficções fez algum trabalho nesse sentido.

Fez caminho?
Acho que sim. Há muita coisa que não estava publicada em português e que ficou. E foram dez anos de cânone, por assim dizer, e que acabaram por ‘desguetizar’ um bocadinho o conto.

Como é que a Ficções surgiu, de onde partiu a ideia?
Surgiu justamente da necessidade. É um projecto do Abel Barros Baptista e meu – eu escrevia contos e ele gosta muito de contos e lê muito. Na altura considerámos que era muito necessário e andámos à procura de financiamento. Até teria sido financiado pelo Instituto do Livro, mas houve um editor de Ponta Delgada, o Eduardo Brum, que fez uma editora chamada Tinta Permanente. Ele era muito engraçado. Disse-nos: ‘Não preciso de subsídios do Estado. Eu faço isto’. O primeiro número que fizemos esgotou. E havia uma coisa importante: um dos parceiros do projecto fazia parte da Bertrand.

Portanto tinham a distribuição garantida.
De outra maneira teria sido muito mais difícil. Depois foram dez anos de trabalho sem parar. Quando o Eduardo decidiu acabar com a Tinta Permanente, eu mudei para a Caminho, que estava já em transição para o neoliberalismo. E depois eu achei que era demais, porque estava a fazer a revista sozinha, do princípio ao fim. Tratava dos direitos, fazia traduções em workshops de tradução que duravam três meses, fazia o layout, ia à tipografia buscar e levar. Enfim, achei que já tinha feito o meu serviço público e desisti. Mas dei todo o conteúdo para o Instituto Camões pôr online.

Chamar-lhe revista é um bocadinho discutível. Quando penso numa revista, penso mais num formato de magazine, não num pequeno livro.
É uma revista no sentido em que tínhamos uma periodicidade semestral e depois saía um número extra, normalmente no verão. Também tem a ver o caráter antológico e de ter essa perspectiva de divulgação do género. Tinha quase um objetivo de cânone, principalmente nos primeiros cinco anos. Depois abri muito mais. Aliás, também quis sempre ter autores portugueses novos ou coisas que não estavam disponíveis e que eram difíceis de encontrar, como o caso do Conde de Ficalho.

Houve algum número que lhe desse um prazer especial fazer?
No princípio era uma festa, andava à procura, lia muita coisa. Depois, como tudo, aquilo tem um pendor obsessivo e a vida transforma-se naquela revista que nós temos que alimentar e que se alimenta de nós. Torna-se uma coisa um bocadinho vampiresca. E às tantas percebi que há dez anos que não tinha férias, pura e simplesmente. E nem dava por isso. Não precisava, não me fazia grande falta. Mas a verdade é que não tinha. E quando me afastei é que percebi: ‘Mas a vida é muito agradável!’. Fiquei com imenso tempo para escrever, abriu-se uma clareira e portanto só me fez bem.

Como funcionavam essas oficinas de tradução? Era um trabalho coletivo?
Eram um bocadinho como as minhas oficinas de escrita. Cada um tem um projecto individual e depois discutimos. Eu adoro traduzir, portanto para mim era um grande divertimento. E aprendi imenso. Tinha pessoas que estavam a traduzir o francês, outras do inglês, outras do alemão. Reuníamo-nos numa salinha da biblioteca da Católica, cada um trazia as suas dificuldades, eu lia tudo, toda a gente lia, e fazíamos assim as traduções. Mesmo assim, com meses e meses de tradução e revisão e revisão e revisão, havia erros.

A tradução é uma boa escola. O Saramago, por exemplo, fez muitas traduções.
Para mim, traduzir um texto é uma forma de me apropriar dele. E acho que é a única forma de o compreender, de compreender a mecânica, como é que aquilo mexe, porque é que faz o que faz. E isso é fascinante.

Estudou Filosofia. Quando fez essa opção já imaginava que queria ser escritora?
Acho que é uma violência inacreditável ter que se escolher o que se quer ser aos 15 anos de idade. Ainda por cima, cada dia eu queria ser uma coisa diferente. Obriguei o desgraçado do meu pai a ir umas três vezes à secretaria porque um dia queria Românicas, no outro dia queria Germânicas e depois acabei por me decidir por Filosofia, que achei que era uma coisa mais geral e mais abrangente.

Foi logo professora depois de terminar o curso?
Não foi depois de terminar, foi ainda durante o curso. Comecei a dar aulas aos 20 anos, no 25 de Abril, a alunos que tinham quase a minha idade. Alguns deles tornaram-se meus amigos, como o Zé Vítor Malheiros. Dei aulas durante aí dez anos, depois fui um ano para a Alemanha, voltei, ao todo foram 13 ou 14 anos, depois desisti.

Foi fazer outras coisas?
Fui viver um pouco mais on the edge.

E gostou de dar aulas?
Gostava imenso de tudo aquilo que era conversa e convívio com os alunos. Mas detestava fazer avaliação, detestava repetir vezes sem conta as mesmas coisas. Faço parte de uma geração para quem a avaliação era uma aberração. A avaliação como hoje temos em tudo. No TripAdvisor, quatro estrelas, três estrelas, a obsessão que as pessoas têm com a…

Quantificação.
Com a quantificação de coisas que são eminentemente qualitativas. É claro que eu posso fazer um teste de filosofia perguntando em que ano nasceu Platão. Mas isso não é filosofia, é história da filosofia, quando muito. Filosofia é conseguir pôr as pessoas, e os miúdos são muito receptivos a isso, a pensar, a fazer perguntas, a conversar. E isso é subjetivo. Há uns que fazem ótimas perguntas e que conseguem mais ou menos pensar e há outros que não vão lá de maneira nenhuma. Por isso é que em muitos países a filosofia começa na universidade. E eu tenho sempre sentimentos ambivalentes em relação a isso. Penso que poderia ser eventualmente útil do ponto de vista até da formação para a cidadania e outras coisas que agora se discutem como sendo terríveis, sem preocupações de programas e de avaliações. Claro que tudo isto hoje é utópico e é impossível, porque as pessoas entram na escola como quem entra numa máquina de fazer chouriços, para um determinado fim, e não para o único fim que a escola tem, que é educar, formar, abrir horizontes, dar possibilidades, mostrar outros mundos, para que as pessoas possam eventualmente ter o equipamento suficiente para escolher o que querem fazer.

Vou agora ler um excerto do primeiro conto, ‘A Ditadura do Proletariado’, que descreve obras numa casa: «À medida que se vai apoderando de mim o terror fino da impotência, tomo consciência por degraus de que não sei fazer nada, nem deitar abaixo uma parede, nem construir uma parede, nem mudar uma torneira, nem subir a porta, nem pôr rodapés. Estudei latim e grego e tantas outras coisas. Instala-se uma revolta contra a minha educação: não sei reparar o computador, não sei montar o ar condicionado, não sei renovar a minha própria casa!». Coloca aqui a questão do desfasamento entre a teoria e a prática. E da inutilidade de um certo tipo de saber…
O que nós temos é uma educação profundamente classista. Depois do 25 de Abril, resolveu-se acabar com o ensino técnico e o ensino comercial. Curiosamente, para uma sociedade socialista, o que era importante era ter uma educação burguesa de humanidades, o que era uma contradição em termos extraordinária. O que é que aconteceu? Aconteceu que essas importantíssimas profissões foram desaparecendo por haver um certo desprezo social e cultural contra elas.

Preconceito?
Preconceito. E essas coisas depois acabam sempre por nos morder. Nós deitamo-las pela janela fora e elas entram pela porta. E, portanto, para mim, ‘A ditadura do proletariado’, sardonicamente, humoristicamente e sarcasticamente, diz: ‘Porque é que não me ensinaram a fazer aquilo que para mim é completamente essencial?’. Posso estar a ler Vergílio numa casa a cair por uma ribanceira abaixo. Porque é que não me ensinaram a fazer a coisa que me prende a casa ao sítio? Sempre me fez imensa confusão quando nós comparávamos os nossos currículos com os currículos americanos. Um escritor normal, português, espanhol ou francês, ia para o liceu, fazia o liceu, quando muito ia para a École Normale – ainda não se fazia mestrados nessa altura – ou dava aulas. O currículo de um escritor americano era: ‘trabalhou no McDonald’s, foi taxista…’ O Philip Glass [compositor], por exemplo, foi taxista, ia ele próprio levar as pessoas no táxi à ópera dele! Isto para mim era uma coisa completamente inadmissível. Hoje, obviamente acho que faz todo o sentido.

Este ano o prémio Nobel foi atribuído pela primeira vez a uma escritora coreana, Hang Kang. Já a conhecia?
Não. Nunca conheço Nobel nenhum. Nunca. Ainda não consegui conhecer um Nobel. Às vezes depois vou ler três ou quatro páginas e fico: ‘OK…’

Não fica entusiasmada.
Nada. O Mário de Carvalho é que diz com muita graça que são uns tipos lá na Suécia que não têm nada que fazer e que se reúnem uma vez por ano… Normalmente não se consegue perceber os critérios.

Considera importante para um escritor conhecer a literatura que se faz no seu tempo?
É muito difícil. A indústria distorceu muito as coisas. Não sei se alguma vez as coisas não estiveram distorcidas, mas hoje, com a indústria, é particularmente difícil porque há muito stock, é tudo muito igual, é tudo muito a mesma coisa. Dito isto, vou lendo algumas coisas que me vão caindo ou que alguém me diz: ‘Olha, lê que é muito bom’. E estou finalmente a ler coisas que eu sempre quis ler e que dizia ‘quando eu for velha’. Agora já lá cheguei e portanto já posso. Felizmente, eles começaram a publicar o Guimarães Rosa, que foi uma revelação. Ainda não li o Sertão [Grande Sertão: Veredas], tentei várias vezes e não consigo passar aquelas primeiras 80 páginas, acho aquilo totalmente impenetrável. Mas enfim, com algum treino sou capaz de conseguir. Há uma amiga que me disse: ‘Começa a partir da página 80’. Eu acho isso óptimo, porque às vezes também dizia isso dos meus livros: ‘Não leias os primeiros três parágrafos, começa no quarto, que nos três primeiros eu ainda não sabia bem o que queria’. [risos]

Então mas a primeira página de um livro não é aquela página fundamental em que o escritor joga tudo?
Não, não, não. Isso é uma visão romântica.

Não se põe mais empenho, não se vai apurando até ficar perfeita?
Às vezes o princípio até é escrito no fim. No teatro, por exemplo, diz-se que o importante é que o princípio esteja grávido do fim. O princípio tem que estar grávido. Tem que mexer, tem que propulsionar aquilo, como uma bola de energia. Mas as pessoas agora fazem essa confusão entre ser uma bola de energia e um murro na cara, entre uma brutalidade inicial e uma energia que vai ser produtiva. Não é preciso dar pancada às pessoas. Agora é tudo ‘in your face’, é terrível, não há qualquer subtileza.

Isso terá muito a ver com a competição. Temos de gritar mais alto que os outros para nos fazermos ouvir.
Às vezes é o contrário. A pessoa que está mais caladinha ou que está em surdina é aquela que tem coisas mais interessantes para dizer. Mas é como digo, o meu problema é que tenho ainda muita coisa atrasada para ler que eu quero ler…

Todos temos.
O Guimarães Rosa foi essa última grande revelação. Com certeza haverá mais. E as livrarias são sítios que me deprimem profundamente. Não sou pessoa de andar pelas livrarias a bicar as novidades. É muita coisa, é tudo ao molho, não há critério. É como entrar no Corte Inglés, tenho a mesma sensação de overabundance, de excesso de oferta, é muita coisa, muita coisa, é como entrar num banquete que só tem croquetes. E depois a gente anda ali à procura de alguma coisa boa e não encontra. É deprimente.

Além disso tem de haver muita rotação. Um livro com um ano ou dois já é uma relíquia.
A livraria já não vende livros, uma livraria hoje vende espaço. E é caro. O espaço de armazém é caríssimo, portanto os livros a partir de certa altura são para dar, para cortar às postas, para estilhaçar. Não podem ocupar o espaço que é preciso para que venham outros. É uma fuga para a frente, uma vertigem de publicação, publicação, publicação. Sem grande consideração pela qualidade nem pela pertinência. Mas isso não é só a indústria dos livros. Todas as indústrias são assim.

Não partilho desse pessimismo em relação às livrarias, porque acho que também se publicam coisas muito boas.
Não tenho pessimismo nenhum. O meu problema com as livrarias é o excesso. Têm toda a espécie de coisas, coisas muito boas que eu não vou ter tempo de ler. O que é deprimente nelas, além dessa indiscriminação, ou indiferenciação – do bom com o mau, com o péssimo, com o mais ou menos – é não haver um livreiro que filtre, que era o que acontecia quando as livrarias tinham pouca coisa. Em Portugal não havia livros, esperávamos dois meses por um livro.

Hoje temos acesso a tudo. Podemos mandar vir livros de todo o mundo.
A tudo e coisas muito boas, de décadas de investigação. Aquilo que eu sinto é um embate na minha finitude, tanta coisa boa e eu não…

Há aquele texto do Almada Negreiros, em que conta que entrou numa livraria e começou a fazer contas a quantos anos lhe restavam de vida e quantos livros ainda por ler…
O problema dos livros é que têm uma competição brutal com tudo o que há de séries maravilhosas de televisão, das 35 plataformas dos Netflix aos Filmins, que têm filmes maravilhosos a toda a hora que nós queiramos, com o YouTube, com tudo o que há de tutoriais para aprender tudo e mais alguma coisa, com 300.000 aplicações… Eu agora, por exemplo, estou a praticar italiano com um robô que me ensina gratuitamente. É uma competição danada. Nós estamos sempre, sempre a fazer coisas e sempre muito sobreocupados.