A Justiça e Calvino, Revisitados – Parte I

E o rigor obriga também a que se puna a falta, a falha de todos quantos operam no sistema…

Diz o aforismo que não devemos voltar onde fomos felizes. Bom aforismo, este, mas peca por incompleto. Não devemos voltar, ponto final, seja lá onde for. Porque o problema não é apenas a não repetição de uma felicidade. Pode ser, também, a constatação de que algo não mudou, ou não melhorou, ou até piorou, para já não falar no regresso – o pior deles – onde fomos infelizes ou, pelo menos, preocupados. Em 2011, tinha eu 40 anos, idade dita de balanços, publiquei um livrinho, chamado Mapa-Múndi da Justiça em Bilhete Postal, e aí inclui um texto inspirado no livro de Italo Calvino Lezioni Americane – Sei proposte per il prossimo milennio e no qual usava as propostas do escritor sobre Literatura para falar dos principais pontos relativos ao que considerava serem as maiores necessidades corretivas do nosso sistema de Justiça. Treze anos depois volto lá, e mantenho – ou aumento – a preocupação. De facto, o aforismo peca por defeito. Volto ao texto, recordo a preocupação, e vejo-a agora aumentada. É a chamada revisão em alta.
Quis eu, ali, propor, com Calvino: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência. Leveza, no sentido de subtração de peso, sobretudo aos procedimentos e às estruturas, combate à inércia, à opacidade, quando não mesmo à petrificação. Não significa eliminar, tout court, a forma e o ritual, mas apenas naquela parte que está a mais, que não tem funções materiais ou substantivas, que é pura tradição ou puro décor. Também não significa, nunca por nunca, ligeireza, nem frivolidade. E significa também usar as novas tecnologias, no que elas podem trazer de leveza e agilidade, mas – ai, treze anos depois como isto é preocupante – não para o preguiçoso e a metro copy and paste, e muito menos ainda para colocar a inteligência artificial a fazer aquilo que só pessoas podem fazer. Rapidez, no sentido, essencialmente, de encadeamento, de ausência de tempos mortos, de ausência de perdas e desperdícios, que escapam pelas fendas de um túnel mal construído ou mal conservado. Não é, note-se e sublinhe-se, de rapidez matemática que se fala, nem é necessariamente essa rapidez matemática ou física, digamos, que se pretende, até porque a justiça precisa de um tempo, do seu tempo – como fenómeno que é, a um tempo, reconstrutivo e desconstrutivo, e também, retrospetivo e prospetivo. Em quatro palavras: agilidade, mobilidade, desenvoltura, foco. Mas – atenção – exorcize-se a tentação de supressão – de garantias, de explicação, de fundamentação. Trezes anos depois, novamente um ai; como se confundem e burlam etiquetas, e como vão bebés com a água do banho sobre esta questão. Exatidão como rigor, antes de tudo. Mas também atenção – atenção ao detalhe, aos pormenores, às nuances, às cambiantes da vida. E esforço, esse antónimo da preguiça e esse antídoto para a mediocridade (dois problemas tão presentes no nosso sistema de Justiça, mas tão ‘não ditos’, como se cobertos por um tremendo tabu). Rigor, atenção e esforço que exigem tempo, liberdade de espírito, abertura à vida, disponibilidade mental, independência. Que exigem que o julgador – também os outros que operam no sistema, mas sobretudo o julgador – seja, possa ser, um sage, e não um burocrata. E o rigor obriga também a que se puna a falta, a falha de todos quantos operam no sistema. Que se puna dentro do processo, mas também fora, no quadro disciplinar nomeadamente. E que se puna realmente, significativamente, largando em definitivo o (ruinoso) hábito de tudo incensar no altar do nacional-porreirismo. (Continua.)