Dylan Thomas. O bardo merecia algo mais que um macaco de imitação

Figura romântica exilada da sua época, Dylan Thomas teve uma vida adulta marcada por uma série de tumultos. Uma nova e algo inepta tradução, que nos chega pela mão de Frederico Pedreira, oferece-nos um bom motivo para revisitar os versos do bardo galês e perceber o que se perdeu no trânsito entre as duas línguas

Existe, hoje, na tradução um regime de pudor bastante inconveniente para os seus fins, sobretudo quando se fala na tradução daquelas formas que devem suscitar um abalo íntimo nos modos de dizer. A disciplina que se nos impôs é a dos restos mortais, da transladação feita de um idioma para outro, e os responsáveis por estas operações parecem satisfazer-se com o culto da “orgulhosa espinha que rejeita desvios e rodeios”. Ao mesmo tempo que se tornou um hábito todos proferirem as suas declarações de amantes esganados, quando chegam à página só sabem repetir as convenções que nos levam sempre ao vazio de que se faz todo este mal-estar. Se quiséssemos representar uma ruptura com este estado de coisas o que diríamos? “O meu herói expõe o meu flanco e vê o seu coração/ Atravessar, como uma Vénus despida,/ A praia de carne e enredar a sua trança cor-de-sangue;/ Despojando a minha costela de toda a promessa,/ Promete-me um certo calor secreto.” Mas e estes versos que aqui se reproduzem poderiam soar melhor? Já vamos ver.

Há uma desgastante castidade na luta que nos retira todo o gozo de participar nessas manifestações sempre tão dignas, e cansa-nos sobretudo ver como vivem burguesmente e pacatamente todos aqueles que exibem como títulos os mantras do que em tempos foi uma ordem de revolta. Já sabemos como todo o valor heróico lhes causa cãibras, mas não deixa de ser instrutivo perceber como, mal um corpo arrefece, e já não há grande hipótese de assuada, motim, chasco, se aproximam de talher as larvas do costume. Aqui, sim, conviria que houvesse algum pudor no sentido de cortar com o cerimonial, este fatigado cerco que vence tudo na base de ocas aclamações, da geral imbecilidade ou desinteresse que redunda num pensamento sem substância, incapaz de confrontar seja o que for, de escolher isto contra aquilo.

Num poeta como Dylan Thomas, cuja trágica e convulsa lenda sobressaltou as hostes literárias há pouco menos de um século, acabando por dar origem a um culto desmedido e que, hoje, não encontra qualquer paralelo no espaço literário, o mais extraordinário é o facto de o tumulto que este provocou ter surgido aparentemente como uma crise nervosa da própria linguagem, como se tivesse construído uma respiração autónoma separando todas as letras do vazio, “traduzindo para o coração/ Os primeiros caracteres do nascimento e da morte”.

Os seus instintos e impulsos eram os de um homem que ganhou os sentidos e uma apreciação pelo mundo vagueando num ambiente rural, e a partir daí criou o órgão através do qual começou a intuir e elaborar aquelas imagens e metáforas carregadas de um sensualismo desbravador, alimentando-se das pulsações do cosmos, dos elementos mais imprevistos, desse balanço sinestésico para o qual a mente é empurrada no convívio muito de perto com os fenómenos naturais. E apesar de ser um homem fiel a essa realidade telúrica, o seu temperamento era urbano, no sentido em que aspirava a uma compreensão de tudo, sendo o movimento e a intensidade as suas verdadeiras aspirações.

Fez ainda novo algumas das suas leituras decisivas, entre elas a de Rimbaud, e costumava dizer que se considerava “o Rimbaud de Cwmdonkin Drive”, afirmando noutras alturas que não desejava mais nada que tornar-se um poeta da estatura de Keats, senão mesmo superá-lo. Estes acabaram por ser os seus dois grandes rivais no que diz respeito à precocidade do seu génio poético. Mas antes ainda há que destacar as leituras que lhe fazia desde a mais tenra idade o pai, que ambicionara em tempos afirmar-se enquanto poeta, mas se ficou pelo exercício apaixonado da transmissão, enquanto professor de inglês. Foi assim que de muito cedo o ouvido de Thomas foi habituado ao verso, fosse ouvindo Shakespeare, fossem trechos da Bíblia, não pelo sentido dogmático, uma vez que o pai era intensamente agnóstico, mas pela clareza e força anunciadora daquela linguagem, estendendo essa influência pela leitura dos chamados poetas metafísicos do século XVII. E reza a lenda que se a mãe do miúdo achava tudo aquilo algo inadequado, reclamando por em vez de se ficar pelas baladas ou nursery rhimes, o pai se por a ler Shakespeare a uma criança de quatro anos, este respondia: “Ele há-de fazer sentido disto. Será como se lhe estivesse a ler coisas banais.”

Ainda adolescente lia por prazer, e fez questão, mais tarde, de sublinhar que nunca leu por outra razão, senão em busca de sensações fortes, daquilo que o fizesse rir, chorar, uivar, aquilo que o contagiasse, que o comovesse a fazer isto e não aquilo. Não lhe importava a poesia em si, mas esse ângulo intersticial dos seres que espreitam os mistérios, e absorvem essa luz rara. “Por mais sublime que seja o poema, tudo o que importa é o eterno movimento que há por trás da poesia, a vasta corrente subterrânea da dor, da loucura, da pretensão, da exaltação ou da ignorância humanas.”

Assim, ele buscava esse efeito de sensualidade, de encantamento, e punha acima de todos os outros compromissos aquela ideia da celebração do Homem, que é também a celebração de Deus, e poetas como Gerard Manley Hopkins foram a influência central em termos do ímpeto e da audácia expressiva e sonora dos seus versos, com todos aqueles artifícios de rima, ritmo, de aglutinação de palavras… “Sirvo-me de tudo e de qualquer coisa para escrever os meus poemas, e dirijo tais recursos na direcção que bem entendo: velhos e novos truques, trocadilhos, portmanteau words [fusão de dois ou mais vocábulos com significados muitas vezes arbitrários], paradoxos, alusões, paronomásias, paragramas, catacreses, gírias, rimas assonantes, rimas vocálicas, sprung rhytm.”

Daí toda aquela voluptuosidade, a rispidez do ritmo, uma mastigação feroz e com um estupendo impacto expressivo para quem contacta com aqueles versos pela primeira vez. Tudo isso resultou de um esforço obsessivo, de uma experimentação que, do lado da poesia, o coloca a par de Joyce, no sentido de transcender os limites racionais do idioma, tanto no plano vocabular como no terreno sintáctico, e daí resulta aquela aspereza de superfície, uma sintaxe muitas vezes elíptica, que comanda o génio dos versos, e sem nenhum tipo de condescendência com o leitor o obriga a escavar com ambas as mãos de forma a captar a sombra de um significado.

Mas apesar do intricado e copioso enredo de influências, Thomas sempre atribuiu às descobertas feitas quando a sua percepção ainda fazia estremecer a realidade ao seu redor, quando era criança, quando tudo estava submergido na névoa poderosa dessas imagens que cobrem grandes distâncias, a origem das suas audácias: “E quando comecei a ler as nursery rhymes por conta própria e, mais tarde, outros versos e baladas, compreendi que descobrira as coisas que seriam sempre as mais importantes para mim.” No fundo, como ele mesmo admitiu, começara a escrever poesia porque “se apaixonara pelas palavras”, mais precisamente pelo som das palavras, e não tanto pelo significado ou pelo arrasto simbólico.

O vigor da sua escrita está nesse elemento musical, como ele mesmo atesta: “Aquelas palavras eram para mim como as notas emitidas pelos sinos, os sons de instrumentos musicais, os ruídos do vento, do mar, da chuva, o rangido das carroças de leite, o resvalar dos cascos dos animais sobre as lajes do empedrado, o dedilhar dos ramos na vidraça, tudo isso que poderia ser para alguém que, surdo de nascença, fosse como que raptado milagrosamente pela sua audição.”

Começou assim por estudar autores que descobria um tanto ao acaso, chegando aos simbolistas e aos imagistas, passando por Blake e Keats, indo e vindo pelo próprio pé, glosando-os, escrevendo intermináveis imitações. Os seus cadernos de juventude eram isso mesmo: repositórios de uma aventura que se servia de qualquer recurso ao dispor da língua, muitas vezes sujeitando-a a variações e contorções implacáveis, buscando esses espasmos das palavras e como eles afectam a percepção, compreendendo como as invenções e os artifícios são essenciais à mecânica de composição da realidade, como é um método muito antigo de diversão, mas que não deixa de implicar um doloroso e comprometido empenho. No fundo, foi então que Dylan estabeleceu as bases da sua técnica, que acabou por ser reconhecida sobretudo pela contracção das imagens, as repetições obsediantes, a violência barroca e o impacto das metáforas, as síncopes do ritmo e o desenho elíptico da linguagem. Por isso mesmo não é possível apreciar a ruptura formal que ele significou sem compreender o modo como aparece isolado, de costas voltadas para uma geração extremamente instruída, com uma cultura livresca, enquanto ele tinha como sua fonte principal esse conhecimento a partir de si mesmo, buscando incessantemente encontrar-se na sua infância e na infância do mundo.

Como vinca o crítico norte-americano Karl Shapiro, o bardo galês arrancou aquela sintaxe tortuosa, não como um efeito escolar, mas na senda de uma erupção mais visceral e que o aproxima do subjectivismo romântico. Foi, assim, um poeta deslocado, “o primeiro romântico moderno, o primeiro cuja vida pública se tornou parte integrante da sua própria mitologia, uma vez que a oferece à multidão como um repasto, e não como uma audiência privada”. Assim, Shapiro acentua “o tom vibrante, sacrificial” desta poesia, “a sua voz irrefreável, tão peculiar, de um homem que se move à deriva e que se agarra a quaisquer destroços flutuantes da convenção literária”.

É sabido como ele morreu precocemente pouco depois de fazer 39 anos, como o álcool era o mar todo que levava a bordo, como fez dele um símbolo, uma espécie de passaporte que lhe permitia ir da loucura à literatura e vice-versa, defendendo-se do mundo que lhe impôs uma vida de sujeições, andando sempre às voltas, infernizado pela falta de dinheiro, por lhe ser feito sentir tantas vezes que não passava de um inapto, incapaz de sustentar a mulher e os três filhos. Dois anos antes da morte, numa das tantas cartas em que se via obrigado a humilhar-se e desculpar-se pelo seu comportamento em público, pelas tantas faltas nos compromissos que assumia, disse isto: “Estou farto de estar sempre a fazer um alarido do caraças com estes pequenos desgostos e eu como um macaco no topo de tudo com o meu boné de mendigo.”

Depois da juventude, e para alguém que até muito tarde entreteve uma espécie de complexo de Peter Pan, a sua vida adulta foi marcada por uma série de tumultos, pela constante dissolução dos tempos em que se entregou aos devaneios do espírito enquanto outros se adaptavam às exigências e rigores da vida em sociedade. No fundo, aquilo que fez dele essa figura romântica exilada da sua época, o que o torna único entre a geração da qual cronologicamente faz parte, a da década de 1930, que reunia a quase totalidade dos integrantes do grupo conhecido como os “poetas de Oxford” – entre os quais se destacam W.H. Auden, Stephen Spender, Louis MacNeice, Cecil Day Lewis, Wyndham Lewis, Laurence Durrell ou William Empson –, aquilo que o distingue mesmo entre os vultos da época, é o facto de ter gozado já de uma popularidade distintamente moderna e que se efectivou num laço que acabaria por dar cabo dele.

Dylan Thomas foi um dos raros poetas contemporâneos de quem se pode dizer que atingiu o estatuto de uma celebridade. Como assinala Adam Kirsh num perfil na The New Yorker, “participou nessa forma de transacção selvagem do estrelato: a sua desenfreada auto-indulgência satisfez as fantasias das audiências, e a sua destruição saciou a sua inveja moralista”.

Para este crítico é evidente que muitas pessoas, assistindo à sua degradação fabulosa, puderam obter uma forma obscura de gratificação, e que se saldou com a sua morte precoce, como é próprio de um verdadeiro poeta. Deve morrer jovem para que possa ser chorado e glorificado ao mesmo tempo.

Segundo Shapiro, havia-se tornado um lugar-comum reconhecer em Dylan Thomas o maior lírico da nossa época, mas era preciso traduzir isto, perceber o que passou a significar essa condição nos nossos dias. “Simplesmente que, indo ao encontro das ambições épicas de muitos expoentes da poesia moderna, Thomas foi o único que verdadeiramente reclamou o estatuto de bardo.” Num certo sentido, ele recusou separar-se de uma certa pretensão de lenda, e se tantos poetas se deixaram absorver pela figura do intelectual, Thomas corporizou um efeito de recusa radical desses modos de conformação. É neste sentido que Shapiro frisa como mesmo a sua poesia nasce do desmoronamento daquilo que representava a tradição de Yeats, Pound e Eliot. “Ela nasceu da revolta contra a poesia livresca de Auden, e da sistemática dos socialistas revolucionários.”

Não só Thomas não assinava manifestos nem integrou qualquer grupo ou escola, como não manifestou empenhamento em causas de sorte política, nem outras transacções desse género, limitando-se a estar absorvido no elemento trágico de uma condição de inadaptado perante uma sociedade que vai arranjando empregos aos seus poetas, enquanto funcionários do aparelho cultural. Se Constantine FitzGibbon, o seu mais dedicado biógrafo, regista a importância do trabalho na rádio britânica, como leitor e enquanto actor, pelo facto de lhe ter providenciado uma audiência imensamente ampla dos dois lados do Atlântico, e que viria a servir como base para o enorme êxito que veio a alcançar, o certo também é que foram os compromissos profissionais que levaram a melhor sobre ele, forçando-o a viver submetido a uma série de constrangimentos, ao ponto de lhe ser cada vez mais difícil retomar aquele embalo que lhe exigia a escrita.

Uma obra com tão fundas raízes telúricas galesas e que partia das investigações que fazia sobre os problemas da linguagem pedia-lhe que regressasse à sua Swansea natal, mas ele estava ocupado a maior parte do tempo a ganhar um sustento.

Desde a sua morte, na última das suas quatro digressões pelos EUA, entre 1950 e 1953, tornou-se um motivo de debate se não foi a América que acabou por assinar a sentença. Ele ia atrás do dinheiro fácil, e desdobrava-se em recitais e conferências, tendo chegado a participar em não menos que 108 apresentações ao longo das quatro breves estadias em solo americano, passando muitas vezes num estado de estupor constante por dezenas de cidades e universidades situadas em 19 estados. Isto representou um verdadeiro festim para a imprensa, que deu eco dessas conferências, onde Thomas não deixou de impressionar as audiências de uma forma que só terá tido paralelo nas apresentações de Dickens um século antes.

Aquele tom de barítono vivaz e o instinto dramático aperfeiçoado pelos anos de trabalho na rádio já eram conhecidos de muitos, tendo gravado ao todo 166 programas radiofónicos, muitos deles com grande repercussão nos serviços internacionais da BBC. Thomas lia como ninguém poemas de uma série de autores ingleses e norte-americanos, desde Byron, Keats, Edith Sitwell, Blake, Poe, Donne, Milton, D.H. Lawrence e Auden, mas nem isto nem os trabalhos como guionista de cinema ou até as vendas dos seus livros foram o suficiente para aplacar os problemas financeiros, sobretudo porque tanto ele como a mulher, Caitlin, se comportavam como autênticos perdulários desluzindo somas fabulosas em menos de nada.

O certo é que tudo se combinou para que ele tenha chegado aos EUA em profunda crise, e se atraía multidões de Nova Iorque a São Francisco, não era só pelo favor que colhiam as suas actuações, mas pela possibilidade que oferecia ao público de presenciar a sua derrocada. Elizabeth Hardwick recordava como professores e estudantes pareciam hipnotizados pelo seu número enquanto funâmbulo alcoólico a andar para cá e para lá no arame: “Será que ele ia comparecer apenas para logo se vir abaixo, e rolar pelo palco? Havia a hipótese de alguma cena desoladora abandalhar a solenidade das festas da faculdade? Iria ele ao ponto de perder as estribeiras e ter um comportamento ofensivo, violento, obsceno? Eram possibilidades que, ao mesmo tempo, geravam um certo alarme e excitação”. Outro dos seus biógrafos, Andrew Lycett, refere que Thomas servia à audiência um vislumbre dos excessos que mais tarde seriam associados às estrelas rock.

Thomas prenunciava esse desajuste entre os espíritos dominados pela volúpia e uma sociedade cada vez mais dúplice, que se entrega ao conformismo ao mesmo tempo que anseia por uma libertação, mantendo uma relação de fascínio e de ódio por esses seres que suspendem o proibido e se comportam de tal modo que ferem a sensibilidade dos homens tristemente racionais. Num certo sentido, aquele tom sobrenatural que impregna os seus versos, bem como a figura pública que ele representou, podem ser encarados como uma extensão do romantismo num século que reduziu à escravatura a imaginação.

Completamente alheado dos ditames e das convenções literárias que impunham esta ou aquela tendência, ele emerge com uma potência inaudita, intempestiva, a de um formalista de uma espécie indefinível, perturbando o equilíbrio narrativo num movimento escorregadio em que cada sugestão ou surpresa surge como que amontoada, num efeito deliberado que submete a linguagem a um regime convulsivo, abrindo uma gaveta dentro da outra de onde saem imagens a um tempo fisiológicas, bíblicas e até de ordem cósmica.

O crítico francês Denis Roche, no texto que introduz a edição francesa das obras do poeta galês, tem esta abertura: “Sangue, sílabas, esperma, sons – eis a escrita de Dylan Thomas”. E logo salienta que, “ao contrário de Blake, de Hopkins, Thomas aspira desajeitadamente à evasão do texto”. No fundo, ele dirige-se aos elementos decisivos da experiência humana: o nascimento, a morte, o amor e a infância, sendo estes reelaborados da forma mais imprevista, adquirindo um denso e misterioso elemento de sacralidade.

Empson identificou-o como um druida de corpo despedaçado, alguém que se serviu das imagens ritualísticas que encontrou na Bíblia para as libertar do elemento dogmático, alimentando-se da sua veemência de forma a dar origem a uma religião que excluía a moralidade ou a consistência da fé cristã. Por essa razão, vê nele um espírito inquieto, debatendo-se com um “panteísmo pessimista”. Assim, e num percurso paralelo ao dos surrealistas – cuja influência ele rejeitava, sobretudo por uma das principais atribuições do intelecto ser o não se entregar ao caos, mas seleccionar a partir da massa amorfa das imagens subconscientes aquelas que melhor sirvam os seus propósitos imaginativos –, os seus símbolos “mergulham no substracto do inconsciente, na selva das suas origens primitivas, enquanto a sua utilização do som lhe confere uma força quase brutal quando estes nos chegam aos ouvidos”, regista Lawrence Durrell.

Segundo o autor do Quarteto de Alexandria, Thomas leva a um nível de obsessão maníaca o seu esforço de esgotar as possibilidades do idioma… Ele “escrevia lentamente e, para minha surpresa, com extrema dificuldade, o que se reflecte na sua escrita cerrada”. “Havia imaginado que os seus versos despontassem de forma algo espontânea, ajustando-se ainda quentes ao molde, mas a verdade é que ele reescrevia e mudava adjectivos e substantivos até comprimi-los numa forma exacta, apropriada ao tema, e continuava a desbastar os versos até que se desse por satisfeito; cheguei a ver uma única frase encher um caderno inteiro, repetida, reescrita de mil maneiras diferentes”.

No meio de tudo isto, dessa profusão absurda de recursos e possibilidades, guiava-o o ouvido, a sua bússola era a música das palavras. É o próprio poeta que o confirma na quinta estrofe do poema “Da primeira febre do amor”, que integra o seu volume de estreia, “Dezoito poemas”, que aqui reproduzimos na tradução de Ivan Junqueira: “E aprendi, com a primeira fraqueza da carne,/ A linguagem dos homens, a retorcer as formas do pensamento/ No pedregoso idioma do cérebro, a obscurecer/ E novamente urdir a trama das palavras/ Legadas pelo morto que, em seu alqueire sem luar,/ não carecia de nenhum calor verbal.”

Thomas tinha uma espécie de ódio pelo fácil, por tudo aquilo que buscasse suprimir esse elemento enigmático que supera o condicionamento racional e obstaculiza que o leitor alcance aquele grau de exaltação em que tudo se mostra disponível. “Chegava a tornar intencionalmente incompreensíveis alguns dos seus poemas (que são amiúde bastante simples, desde que se lhes conheça as chaves). E isto porque tinha um verdadeiro horror à simplicidade”, anota Shapiro.

Ele procurou ser obscuro, “dividir noite e dia com polegares de fada”, trabalhou uma “língua aracnídea” em busca desse mel que escalda. Atravessou as zonas onde a consciência se turva e o território apresenta dobras implausíveis, perseguindo os “belos mortos que vazam o mar”, colhendo “o novelo de ondas e espuma/ para engasgar os desertos com a maré”. Ao mergulhar tão fundo na noite, nessa zona mais agreste e virgem para se apropriar dos materiais líricos que ainda nos fazem estremecer, Thomas arriscou tanto quanto podia, os anos mais verdes, mais férteis, e pagou o preço, vindo desse outro lado impressionado pelo elemento ruinoso da existência, associando para sempre as imagens de túmulo e útero, tornando-se conhecido da morte, mas, também por isso, sendo capaz de apreciar como poucos cada cor, cada momento de glória, ficando sensível à sacralidade e ao seu contrário, a devastação de que se cobre o mundo.

Se voltamos aos seus versos agora é graças ao impulso de uma nova tradução, que nos chega pela mão de Frederico Pedreira, também ele poeta e, cada vez mais, um desses nomes que pertencem ao regime das circulares de um ambiente literário que só nos dá notícias de ontem, das imitações mais improfícuas e de glosas diluídas a partir dos grandes e perturbadores enredos originais. Neste caso, o leitor português tem a sorte algo equívoca de ser chamado para um confronto a sério, que infelizmente só ocorre de forma parcial, uma vez que de um esforço de tradução manifestamente árduo, nalguns momentos tão frustrante que se torna absolutamente inglório, damos com um tradutor que logo de partida nos diz que, “por norma, o tradutor que não se deleite em demasia com delírios românticos tenderá a considerar o seu papel como uma espécie de macaco de imitação”.

Pelo menos, já sabemos onde foi colocada a fasquia logo ao pegar numa antologia com o título “Eu vi o tempo assassinar-me”. Ou seja, deixemo-nos de romantismos tardios e aprestemo-nos a contemplar os esforços de mais um açougueiro.

Curiosamente, o breve ensaio que serve de prefácio a este volume acaba por se revelar o seu elemento mais incitante, não só pela profundidade crítica dos seus melhores momentos, mas até pelos equívocos que nos oferece e que permitem auscultar o grau de confusão que vai na cabeça de alguns tradutores, e desde logo o à-vontade para decepcionar leitores que possam encarar a tradução como uma arte decisiva no horizonte da poesia, cujo idioma é precisamente esse: a tradução.

Mas Pedreira circunscreve esta função a um regime imitativo, e compraz-se com esse “divertimento um tanto travesso de se saber caricatura do original”.

É um péssimo começo e que nos diz muito sobre o exercício que se vai seguir, em que as versões ficam a dever a sua graça mais a um efeito de sorteio, num arranjo de conformidades em que resultam sobretudo aqueles versos em que a frágil estrutura da ponte literal aguenta melhor os abalos das chegadas, que nunca são partidas. Contudo, e voltando um pouco atrás, não deixa de ser irónico ver o tradutor abrir o volume tachando de romantismo serôdio esse ânimo fundamental da poesia, que passa sempre pela expansão e redescoberta de um idioma face à visita de uma força estranha, procurando estabelecer um pacto em que o conjunto dos efeitos formais e de conteúdo sejam transmitidos “por outras palavras”.

Ora, particularmente no caso da poesia, é de esperar que a tradução não aceite ver-se castrada atendo-se a um rigor denotativo, rebaixando-se a uma tradução de dicionário em nome de um complexo de fidelidade gramatical.  Mas isso precisamente é aquilo que nos oferece Pedreira, ao mesmo tempo que faz questão de diferenciar a tarefa do tradutor de prosa, que, segundo ele, “é, por regra, uma besta de carga da linguagem, arrastando quilómetros de frases de um ainda vago ponto de partida para o transpirado ponto de chegada”. Já a tarefa do tradutor de poesia subentende-se que será de ordem mais aristocrática, uma vez que sendo “menos volumosa, a matéria que tem em mãos não deixa de ser, ainda assim, mais especiosa e temperamental”.

Admitindo-se que “nem toda a poesia é esquiva, de índole sediciosa”, esse é certamente o caso da poesia de Thomas, em quem Pedreira vê “um excelente mau aluno de Shakespeare e Donne, de Gerard Manley Hopkins, W.B. Yeats e James Joyce”, adiantando que este “parece forjar em si, na novidade imensa da sua linguagem e no seu esforço agonístico, o molde de toda uma tradição por vir”. Não se percebe bem que tradição será esta, uma vez que se Thomas teve alguns imitadores inconsequentes, não se lhe reconhecem verdadeiros continuadores. Mas também não se percebe como entende o tradutor que um poeta tão poderoso e seminal, e que tem nos seus versos um verdadeiro “ninho de vespas verbal” (expressão que Pedreira vai buscar a Joaquim Manuel Magalhães), poderá encontrar alguma equivalência sendo a sua tradução confiada a um “macaco de imitação”.

Ensaiando as atenuantes para um eventual argumento em defesa dos resultados da comissão de serviços que lhe foi confiada, Pedreira assinala as dificuldades assinalando a “exasperante polissemia e a subtil engrenagem de termos corriqueiros ou de uso habitual em situações verbais tantas vezes estranhas ou desconcertantes”. Refere-se ainda aos “emaranhados semânticos de Thomas”. E, no entanto, também ressalta que “não deixa de ser verdadeira a noção de que muitos destes poemas, lidos em voz alta [no original, presume-se], se assemelham a grandes tambores que reverberam de um extremo ao outro da sua pele retesada ou às vozes litúrgicas e monocórdicas de um cantochão”. Ora, aquilo que poderá ser imputado a esta tradução é o facto de ser incapaz de uma tese ou coesão rítmica, ficando a perder para a tradução de Ivan Junqueira realizada há mais de duas décadas dos “Poemas Reunidos” de Thomas. O poeta brasileiro mostra-se não apenas competente na capacidade de nos oferecer uma versão gramatical correcta, como largamente faz Pedreira, mas rende ao bardo galês uma bem mais envolvente atmosfera, não o sujeitando a tropeços sintácticos de toda a ordem, justificando-o com uma suposta prosódia um tanto truncada, mesmo fendida ou rachada que este teria ido beber em Hopkins. Na verdade, se a sintaxe se mostra tortuosa, isso não deixa de romper com a habitual dicção, apelando antes a um registo cantante.

O tradutor português garante que nesta antologia não se procurou normalizar o discurso, e ter-se-á preparado para um possível embate, admitindo que “as páginas de uma tradução (especialmente quando bilingue) de um poeta maior são uma espécie de tribunal a céu aberto”. E nós só temos dúvidas de que assim seja perante um quadro em que, na verdade, são muito poucos os leitores que procuram ler em voz alta e comparar versões, sendo também ínfimo o número dos que não esperam da tradução apenas que ofereça um vago resíduo dos significados originais, mas esperam colher ali os frutos de “uma paciência fantástica”, de um exercício de crítica supremo, que passe pelo regime da recriação e transcriação, o qual tem orientado os esforços do grande mestre vivo desta arte, Augusto de Campos.

Pedreira conforta os seus leitores reconhecendo que “cada verso vertido é uma seta de sentido, isto é, prevê uma trajectória pensada, calculada, burilada, nada tendo sido deixado ao acaso (leia-se ‘à deriva’ ou ‘por pensar’)”. Mas se, como se disse antes, as soluções aqui são geralmente competentes do ponto de vista literal, ainda que com algumas elisões questionáveis pelo caminho, algumas expansões algo explicativas, o que acaba por sair frustrado é esse enlevo enigmático em que o ritmo impera e organiza o fulgor imagético. Contudo, estas opções logo se viram secundadas por um crítico-tribuno que mal terá tido tempo de se recompor do abalo estrondoso que lhe terá provocado a estreia romanesca de Henrique Raposo – que veio saudar também com aquele ar efervescente de quem traz a caneta habituada ao bulício das sentenças irrespiráveis com que se encadeia os nervosos leitores de jornal… Ora, este crítico vinha munido das cinco estrelas, falando de “som e fúria”, na medida em que convinha vender o gato por lebre, em tratando-se de um cá dos nossos…

“Ah, o ofício de guarda campestre literário do crítico”, exclamava Musil. E não deixa de nos provocar uma certa ternura ver como, assim, se constroem reputações e há alguns que não saem destas comissões fabriqueiras, exaltando e vindo com as maiores distinções sempre que lhes dá jeito, numa só aparente contradição com o derrotismo que depois descrevem. Mas, no íntimo, já se sabe como afinal tudo isto entra em consonância. E, para este efeito, o crítico não fez outra coisa além de deter-se pontualmente na tradução deste verso, daquele fragmento, louvando a eficácia das soluções, mas sem avaliar o balanço e a tensão sintáctica de uma série de hipóteses que anda cada uma para seu lado, no meio de um temporal.

Não é que o trabalho de Pedreira seja inútil, na verdade, estas parecem sobretudo versões de trabalho, como se alguém se focasse em decompor noutra língua os textos originais de modo a averiguar os elementos de significado, e isto em detrimento da forma, que, salvo essa melodia do acaso que se aproveita entre os sinais de um trânsito fortuito entre os dois idiomas, leva a que os poemas em português andem por ali com bastante dificuldade em respirar, aleijados, como quem corrige uns tropeções nos outros. Retemos o ruidoso mar, mas largamos os seus pássaros, para recorrer a uma imagem do poeta.

Não quer isto dizer que a leitura se torne desprazerosa, e que não sobreviva aquela noite ou o ressoar dos seus sinos de línguas negras. Mas se há acuidade na transposição de uma língua a outra, o que falta é uma compreensão viva da beleza e do carácter desta poesia, que sobrevive mais enquanto monturo imagético. Apesar da correcção gramatical, está toda estropiada em termos prosódicos, e é muito difícil lê-la em voz alta. É claro que isto não ocorre sempre, antes fica dependente da sorte da transposição literal. Quando esta, por acaso, funciona, o poema capta bem essa “força que impele a água por entre as pedras”. Noutros momentos, já a meteorologia não é tão favorável de um clima ao outro, e soa algo mortiça a expressão, perdendo-se aquela “força que pelo verde fuso impele a flor”.

Ou seja, andamos por ali num regime consoante. São muito raros os momentos em que sentimos que o tradutor foi compelido a abrir um caminho próprio, evitando aqueles batidos pela tradução convencional. É nesse aspecto que uma tradução que consegue ser competente, e às vezes fazer a melhor escolha entre sinónimos, depois raramente se comporta com originalidade em relação à palavra original de Thomas. Falta esse coração cheio de entusiasmo e guiado por um grande instinto, faltam os frutos intuitivos, falta o risco, faltam os passos afoitos que, se nalguns momentos destroem alguma coisa, conseguem indicar-nos o caminho para as descobertas. Mais valia uma tradução menos fiel, que se permitisse erros criativos, uma sintonia com aquela peculiar visão verbal que nos deixa muitas vezes aturdidos bem para lá da compreensão comum.

Poderíamos elencar um sem número de versões em que a dicção se mostra bastante lassa, mas talvez seja melhor ilustrar a coisa com uns versos só meio estropiados, sobrevivendo neste acaso babélico para traçar um retrato do quadro que temos diante de nós: “O fotograma amantizou-se com a visão,/ Impinge à sua noiva as peles parciais da verdade;/ Do sonhador o sonho sugou a fé/ De homens amortalhados almejando o âmago em voo.” No original era: “The photograph is married in the eye,/ Grafts on its bride one-sided skins of truth;/ The dream has sucked the sleeper of his faith/ That shroudedmen might marrow as they fly.”

Não é que seja de exigir a Pedreira um resultado esplendente, mas desde logo que recusasse a simplificação, esse apoio imediato e literal, permitindo que o seu esforço se realizasse naquele regime de tradução litúrgica, transubstanciando a linguagem do original na linguagem da tradução, mesmo se num estado imperfeito, mas capaz de se confrontar com o significado novo desse abalo telúrico.

Pior ainda é a relação que estabelece com esta tradução o crítico, que veio atestar que se alcançou o melhor dos resultados possíveis, e isto só não surpreende por ser o género de figura que se reconhece entre aqueles que vêm para a cultura e depois de cumularem todos os títulos, todos os confrontos, a título de confissão, reconhecem: “Fomos, portanto, muitas coisas e não nos modificámos, vimos muito e nada percebemos.”

Nesta tradução não há nada que se pareça com um rito sagrado, nem há qualquer escolha particularmente arriscada, raiando esse regime de profanação instrutiva que caracterizou Dylan Thomas enquanto um magnífico canibal, reinventando e recompondo a tradição como bem lhe apetecia. Mas, como se sabe, nestes tempos já só existem génios, e como isto aqui tudo se passa nesta pequena escala, da qual ninguém parece ter a pretensão de escapar, entre textos dos quais ninguém pretende evadir-se, está bom e basta. Ou então tanto faz.

No fim de contas: “O mundo é isto: a mentirosa parecença/ Dos nossos farrapos de matéria que se desfazem/ Enquanto amamos entre ossos e escombros;/ O sonho que arranca os sepultados ao repouso/ E deixa que o seu lixo seja elevado à honra dos vivos./ Soframos este mundo em rotação.”