JAS: o defensor máximo da liberdade

Eu era estafeta, ele era o diretor do jornal mais importante do país. Ficámos amigos até sempre. Com ele aprendi o que é ser livre e não ir na carneirada, mesmo que isso nos traga muitos inimigos. Sempre me deixou escrever o que pensava, apesar de ele discordar abertamente de mim.

Olá, vi o seu telefonema e amanhã ligarei. Abraço». O relógio marcava 23h42, e no dia seguinte, sábado passado, devolveu-me a chamada. Foi seguramente a nossa conversa mais emotiva, nós que fomos amigos 39 anos, e que nos continuávamos a tratar por você. Quando nos conhecemos, em 1986, nos corredores do terceiro andar do número 37 da Duque de Palmela, em Lisboa, o José António Saraiva era, aparentemente, um homem austero e sisudo e eu um miúdo de 20 anos que me sentava na cadeira do senhor Soares, enquanto esperava por algum serviço de estafeta. Recordo-me que um dia me viu a ler a sua crónica e me perguntou o que eu achava da mesma. A partir dessa data, muitos foram os textos que passaram pelas minhas mãos, para lhe dar a minha opinião, indignando a redação do vetusto Expresso que não percebia como um diretor mostrava a um estafeta a sua crónica antes de a publicar. «Eu gosto de ouvir a opinião de quem não está dentro da política», dizia aos mais próximos.


Depois comecei a ser convidado para os jantares de fecho, à quinta-feira, na cervejaria Trindade, e aos do Snob, às sextas. Depois da breve ‘vida’ de estafeta, passei dois anos, mais coisa, menos coisa, pelo secretariado, tendo deixado o quadro da empresa para me lançar no jornalismo. Penso que terei sido a primeira pessoa a passar por essa situação, mas o Zé António, dizia-me sempre: «Como meu amigo, tem de provar a dobrar para não dizerem que está a ser beneficiado».


Penso que tinha uma confiança total em mim, ao ponto de numa das notícias que tiveram mais jornalistas a recolher informação e a assinar o texto no jornal, na morte do filho de António Champalimaud, me ter perguntado se não tinha nada a acrescentar. Na verdade tinha e expliquei-lhe que, no momento da detenção, o caseiro tinha duas cartas a justificar o seu ato tresloucado. Acreditou em mim e na primeira página lá estava a referência à segunda carta.


Mas no último sábado tratámos de dizer um ao outro o que nunca tínhamos dito: que gostávamos muito um do outro. Depois expliquei-lhe o que ele significava para mim, o maior defensor da liberdade de pensamento. Recordei-lhe quando um seu subdiretor me insultou por ter escrito nas Noites Vagas algo completamente diferente do que ele tinha escrito na semana anterior, a propósito dos festejos da Expo-98. Disse-me então: «O Vítor deve ter ouvido mal, pois no jornal de que sou diretor quem escreve opinião tem toda a liberdade de dizer o que bem entende. Era só o que faltava que assim não fosse. Lembra-se do que o Francisco Belard escreveu sobre um livro meu? Que era o pior do ano». Aqui rimo-nos muito.
Para se ter uma ideia do que era a personalidade do Zé António, quando foi a tribunal por causa do livro Eu e os Políticos perguntou-me se eu queria ser sua testemunha. Expliquei-lhe que sim, embora não tivesse concordado com o que escrevera sobre determinada situação. «Sendo assim, não o vou sujeitar a ir a tribunal se não se sente confortável». Era assim, de uma nobreza incrível, até porque sabia perfeitamente que só havia duas ou três pessoas que podiam confirmar a história dele, e eu era uma delas.
Outro episódio revelador do seu caráter. Um dia perguntei-lhe porque insistia em escrever sobre os gays, ao que ele me respondeu: «Oiça, você não escreve a favor da legalização da droga, do direito a fumar, do aborto e por aí fora? Então por que não poderei escrever o que penso?».


P. S. No final da sua vida, insistia para lhe mandar a capa antes de mandar o jornal para a gráfica. E tinha sempre uma observação pertinente. Vou ter muitas saudades de um dos homens que mais me influenciaram e ajudaram a crescer.