Rimbaud. O milagre diabólico

Tudo o que de significativo nos deixou foi composto entre os quinze e os vinte anos. Depois renunciou à poesia, um gesto que continua a desconcertar os seus admiradores. A obra poética de Arthur Rimbaud surge agora numa nova edição da Assírio & Alvim, com tradução de João Moita

Na véspera da sua morte, a 9 de Novembro de 1891, sentindo-se sufocar, Rimbaud aproveitou a aberta do delírio febril que o dominava para ditar à irmã Isabelle uma carta ao director de uma companhia marítima imaginária, solicitando urgentemente uma passagem para Suez. “Estou inteiramente paralisado e por isso desejo embarcar imediatamente. Tenham por bem informar-me da hora a que poderei entrar a bordo.”

Foi a sua derradeira tentativa de se evadir, sendo que a carta, se chegou às mãos de alguém, terá sido às de Caronte. Sucumbiu a um cancro na perna, aos 37 anos, o que parece pouco, mas foi o suficiente para deixar um definitivo testemunho de sinal contrário ao que fez dele uma lenda viva, não tendo nunca mais registado uma só palavra cujo fulgor denunciasse a audácia fulminante dos seus melhores versos. Essa rejeição terminante do seu passado viria a revelar-se uma espécie de enigma inultrapassável, uma denúncia algo indigesta para os admiradores da sua obra, tendo manifestado por mais de uma vez a absoluta repugnância que lhe causavam os devaneios literários que fizeram da sua adolescência um dos mitos fundamentais da moderna poesia europeia. Quando estava já bastante enfermo, houve mais alguém que lhe veio falar de literatura, do que ele escrevera, e este cortou logo o assunto, deixando claro quanto tudo aquilo o embaraçava: “Que interessa isso? Merda para a poesia.” Mas ainda aqui estamos, a rondar, esmagados não apenas pelo vicioso dom como pelo desdém e frieza com que virou costas aos enlevos que o levaram a um grau de dissolução e desregramento inigualáveis, prosseguindo depois um registo quase nómada, mas aferrando-se a uma existência frugal, austera, poupando tudo o que amealhava para investir em empreendimentos arriscados e que, em muitos casos, lhe requeriam um enorme esforço, para conhecer repetidas vezes o fracasso, sendo enganado nuns casos, noutros apiedando-se daqueles que se veriam degradados e explorados se levasse o plano por diante, o certo é que perdeu sempre tudo, para voltar ao mesmo, a poupar e a dedicar-se a lentos projectos. De exportador de café a capataz, de colono a expedicionário, de traficante de armas e, provavelmente, de escravos, nos seus anos abissínios tentou todas as vias, sendo que só queria livrar-se de apertos, estabelecendo-se ali, longe do mundo, e de quaisquer ecos dos arrebatamentos da sua anterior vida. Em torno do seu nome, nos círculos literários de Paris, ganhava força aquele rumor embriagado da abertura e da estupenda fanfarra dos versos de um génio truculento que, por essa altura, muitos julgavam morto. Rimbaud ainda teve o desgosto de o ouvir, o seu próprio nome, entoado com o estranho fascínio que ainda hoje nos causa. Ele só queria casar-se, deixar descendência. Numa carta que enviou à mãe, inquiria: “Será que poderei casar-me em tua casa na próxima Primavera?” Ao mesmo tempo confessava que não tinha ainda uma candidata firme: “Achas que encontrarei uma mulher disposta a regressar comigo a este lugar?” Uns tempos antes, numa outra carta à família, reconhecia como a sua situação não era a melhor, e como a desolação já se ocupava dele. “Tenho o cabelo completamente branco e a sensação de que a minha vida caminha para o fim… Estou terrivelmente cansado. Não tenho trabalho e aterra-me perder o pouco que me resta.” Um dia teve uma inflamação num joelho, e não lhe terá dado demasiada importância até não poder ignorar as dores, sendo que o carcinoma foi fazendo o seu trabalho, obrigando-o a peregrinar pela última vez, sofrendo dores terríveis, do deserto até um hospital de Marselha. Foi-lhe amputada a perna, passou a andar de muletas, e se chegou a ansiar por uma perna ortopédica, desejando retomar a sua vida, a doença progrediu depressa, acabando por imobilizar-lhe os restantes membros.

Como explicar nos nossos dias, sobretudo diante de eventuais novos leitores, muitos dos quais têm dificuldade em levar realmente à letra, penetrar na fibra das palavras, sentir esse deflagrar de um ânimo aventuroso, revoltoso, sublimemente agreste, perverso, a perturbação e o vício que Rimbaud provoca desde há século e meio. Não se trata apenas de ter sido o mais insolente e canalha dos nossos precoces prodígios, mas também aquele seu abandono da poesia aos 20 anos, nessa recusa igualmente apaixonante de não gastar nem mais um segundo a fazer crescer a sombra caligráfica, de tal modo que, depois dele, todos esses escritores que tanto se prometeram ao silêncio e flertaram com a ideia de romper com esse prestígio algo patético sentiram que o seu gesto mais comprometido e imoderado ainda pecava por tardio, pois essa repulsa de Rimbaud furtou-se a qualquer cálculo, e não passou por enredar-se numa qualquer revelação de ordem mística, mas foi simplesmente isso, ter-se dado conta de que não era isto, não era por aqui. “A verdadeira vida está ausente. Nós não estamos no mundo.”

O mistério subsistiu e adensou a sua aura, como uma denúncia feita àqueles que buscam respostas. E não lhe faltaram intérpretes, mas outros poetas há que simplesmente celebram essa figura inquietante que só vemos crescer de costas, e cada vez mais distante. “Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud!”, saudava-o René Char. “Os teus dezoito anos refractários à amizade, à malevolência, à estupidez dos poetas de Paris bem como ao ronronar da abelha estéril da tua família um pouco louca das Ardenas, fizeste bem em espalhá-los ao vento do largo, em atirá-los para debaixo da lâmina da tua precoce guilhotina. Tiveste razão em abandonar o boulevard dos preguiçosos, os estaminés dos ‘fala-barato’, trocando-os pelo inferno dos animais, pelo comércio dos habilidosos e o bom-dia dos simples. Esse absurdo impulso do corpo e da alma, essa bala de canhão que atinge o alvo fazendo-o rebentar, sim, é isso a vida de um homem! Não se pode, ao sair da infância, estrangular constantemente o próximo. Se os vulcões pouco mudam de lugar, a sua lava percorre o grande vazio do mundo trazendo-lhes virtudes que cantam nas suas feridas.”

De qualquer modo, e antes de chegarmos aí, podemos apreciar o elemento de feroz fantasia e romance que se desprende dos seus versos. Em ruptura com o geral engonhanço, a pasmaceira e aquela baba de caracol que caracteriza a poesia anterior e posterior, aqui vigora o lado assanhado da existência, o sobressalto, há pouca candura, mas, em seu lugar, vem um rasgo afrontoso, uma lei que prefere à paixão o gozo e mesmo a devassidão. Deveríamos todos chegar ao ponto de trazer algo de ameaçador a este mundo a partir dessas efabulações que nos ocupam. Ele fê-lo, e que altanaria, que capacidade de fixar vertigens, ritmos instintivos, e que frescura insultuosa, que impudor nos seus gracejos. Estava cheio de melíflua graciosidade, e são justíssimas as maldades que impõe, pois, no fim de contas, que atenção a dele, que densidade nos pormenores. As suas subtilezas escarnecem desse modo cabisbaixo, dessa severidade deselegante, desse rigor tão molesto que é próprio dos que se dizem poetas. “A moral é um defeito dos miolos”, clama ele às tantas. Noutra altura diz-nos que “os mortos sonham mal”, e como as nações só inventam venenos. Noutro momento, dá-nos conta do alto grau da sua ambição, e como não soube depois renunciar-lhe senão acatando inteiramente a queda, desenvolvendo um profundo ódio diante da estéril condição reservada a artistas e poetas: “Procurei inventar novas flores, novos astros, novas carnes, novas línguas. Julguei ter adquirido poderes sobrenaturais. Pois bem! Urge enterrar a minha imaginação e as minhas lembranças. Abolida, uma bela glória de artista e de contador de histórias!”

Seja como for, enquanto reuniu em si as mais selvagens aspirações humanas, antes de sentir o seu carácter azedar, lançava esses “olhares cheios de peregrinações”, tinha a inteligência de um dilúvio, a força e desenvoltura de um bruto, que não regateia com moral de espécie nenhuma, mas produz um canto semelhante ao desse pássaro com que se deparou nalgum bosque, notando: “o seu canto detém-vos e faz-vos corar”. Arrancava de si visões que iam muito para lá do pasmo, e, por isso, admitia: “Acabei a ter por sagrada a desordem do meu espírito.”

Só desferem esses versos ao mesmo tempo sumptuosos e dilacerantes aqueles que estão comprometidos até ao limite com o seu sentido. E uma desilusão implica necessariamente uma retirada. Rimbaud demonstrou esta capacidade de rachar todos os pactos, todas as conveniências, e se monta as convenções é apenas para as extenuar debaixo do seu peso e intensidade e, logo, as abater, rindo-se ao alimentar-se da sua carne sentado sobre a carcaça arfante destas. Pressente-se o particular gozo que retira de ir “litigando com as aparências do mundo”, contando-se entre aqueles poetas que quiseram romper com os quadros lógicos da nossa inaceitável realidade, recriar o mundo para se descobrirem inteiramente nele. Revela, assim, a insolência de um anjo que gere algum esquema de contrabando a partir dos armazéns celestes, siderais. À sua passagem, o idioma ficou todo remexido, aos pedaços, num enredo estrepitoso do ponto de vista vocabular; as sílabas eriçadas, crepitando, uma semântica musculada, tensa, cheia de contrastes fenomenais, soltando-se dela odores insinuantes. E tudo é lesto, tudo provoca, numa sucessão absurda de estímulos, de todos os lados, variando o ângulo, sacudindo-nos. Não é para se ficar vulgarmente deslumbrado, mas há neste afã algo mais matreiro, esse ânimo de quem engendra tropelias. Tudo é combustível para sensações, sugestões, para produzir estados alterados, para nos espiçar, pôr em acção as glândulas, afinar o aparelho. Lêem-se coisas raras, que ao invés de nos mergulharem naquele embalo pastoso das emoções, dão para ir à frente de si mesmo, tocado por uma ansiedade como seria apropriada nas vésperas de uma batalha. Ouve-se galhos que se quebram, há uma concatenação de efeitos para gerar no organismo um estado de alerta, antecipando a refrega… “Um astro nos vossos rins mancos/ Girai os flancos!// E pensar que andei a rimar/ Para estes lombos!/ Queria partir-vos as ancas/ Por ter amado!// Monte insosso de astros ratados,/ Foçai nos cantos!/ — Morrereis em Deus, albardadas/ A ignóbeis zelos!”

A liberdade não é algo que se alcança, mas é uma exigência, esse clamor de um espírito capaz de desejo, e que se reflecte e vibra contra todos os elementos na superfície da terra, trabalhando para a “extinção de intermediários entre o homem e as coisas, entre o mundo e os mundos”, pois, como reconhece Cesariny, “a questão é de ter olhos de poder olhá-las, descer a missa cátedra, correr o oceano”, e ainda perceber como o céu e o inferno são dois cárceres, e o decisivo é saber articular, fazer de si um eixo para a rotação do universo ao redor. Ora, naquelas páginas vemos sucederem umas às outras estações mais descomprometidas, intrigantes, e luas peculiares, vemos um desses que “somam a coragem de quebrar amarras à de partir sozinhos”, porque antes como depois de Harar, Rimbaud foi a criança que a esse elemento criminoso que é existir clamorosamente, sem pedir licença, sem cultivar uma rede, relações, facilidades, partiu realmente, com aquele ímpeto de quem sabe “arriscar, em grandeza e miséria, a sua vida inteira, todos os dias”, como vinca Cesariny. Este que soube espelhar e perder-se naquela obra, soube fazer a viagem a que esta obriga e dar-nos versões talismânicas de uma poesia que se entende a si mesma como uma alta magia… “viajaremos, faremos caçadas no deserto, dormiremos no chão de cidades desconhecidas, sem cuidados, sem mágoas”. É uma questão de se dar ao frenesi, aos prazeres que mais fundo nos ferem. E neste ensejo, a Rimbaud “quase lhe não bastou o mundo”, pois, como anota Aníbal Fernandes, “corria através dele com ‘solas de vento’, imparável até ao exílio de Harar”. E não se sai ileso da tarefa de o verter para qualquer língua que seja, uma vez que aquele que escolhe encerrar-se com um espectro tão tumultuoso, não deixará de experimentar os mesmos reflexos, sentir o apelo daquela forma de reintegração do mundo enquanto esplendorosa paranóia. Qualquer poeta que o seja elabora algum precipício no seu idioma, e transferi-lo tem um custo, o de se sentir o acosso de uma presença insatisfeita. Isto explica porque João Moita terá regressado à cena de um crime imperfeito. Depois da tão decepcionante edição da sua obra completa na Relógio D’Água, em 2018, tendo a tarefa sido confiada por Francisco Vale a dois tradutores, Miguel Serras Pereira e João Moita, este último ficou com contas por ajustar, desposou o fracasso da primeira tentativa (diga-se, contudo, e em abono da verdade, que fora Serras Pereira a assinar as tão intragáveis versões da lírica de Rimbaud) e resolveu confrontar-se agora com esta poesia como um todo, buscando “uma redenção”. Se o verdadeiro idioma da poesia é a tradução, ninguém como Javier Marías, romancista que começou por adquirir calo enquanto tradutor, explicou esse estranho paradoxo, reconhecendo como uma desgraça menor da grande literatura o facto de não poder modernizar-se no idioma em que foi escrita. Assim, por mais que queiramos percorrer de cabo a rabo algum colosso literário, tentando absorver os mais ínfimos pormenores da arquitectura desta ou daquela obra, e mesmo que, com os séculos, algumas comecem a ter passagens de difícil decifração, havendo a tendência para aclarar certas zonas que ameaçam tornar-se impenetráveis, seria sempre um despropósito querer renovar as suas páginas. Restam essas acções beneméritas dos que explicam ou adaptam um autor às criancinhas, além dos que sempre gostam de se servir de intermediários, mastigando-os, servindo numa espécie de puré e, normalmente, à boleia de alguma efeméride que permite torrar grandes verbas com o empratamento. A par disso, embora de forma insuficiente, vão surgindo edições críticas competentes, mas quase sempre incapazes de nos fornecer obras dirigidas ao público generalizado, pouco interessado em picuinhices, e, não raras vezes, esses esforços acabam por encarecer os cartapácios e sufocar os autores em jactanciosos enredos e debates à volta de bagatelas. Por outro lado, são os clássicos de outros idiomas que por vezes aportam à nossa tradição gozando de verdadeiras honras, com tradutores fervorosos que lhes dispensam uma atenção desmedida, sendo que, de tantos em tantos anos, beneficiam do sopro refrescante de um novo olhar. Deste modo, um autor como Shakespeare pode ir-se metamorfoseando de acordo com a sensibilidade das épocas, e aquele que nos chegou no século xix irá diferir de um outro do início ou de meados do século xx, ou daquele que apareceu nos últimos anos. Isto leva-nos a supor que os ingleses poderão beneficiar de um Camões futuro, tal como os alemães beneficiarão de um Cervantes futuro, e esse é o imenso privilégio de que gozam os autores capazes de se impor, e que à medida que vão atravessando o tempo, vão mudando de pele noutros idiomas. No caso de Rimbaud, além da malograda reunião já referida, tivemos as Iluminações e Uma Cerveja no Inferno de Mário Cesariny, O Barco Bêbado, por Pedro José Leal, e O Rapaz Raro, de Maria Gabriela Llansol, também na Relógio D’Água. Não se pode dizer que esta cobra tão enredante e influente tivesse já mudado de pele um número de vezes apreciável de tal modo que lhe sentíssemos o aperto. Felizmente, as versões que João Moita vinha publicando dos poemas em prosa (Uma Temporada no Inferno, no final de 2022, e Iluminações no ano seguinte, ambas com selo da Guerra & Paz), e que reúne agora aos versos, servem como uma estupenda indemnização depois de uma tão longa espera. Temos enfim a visão deste “mar que segue/ o sol ao cair”, temos, num canhenho que não pesa, todo o Rimbaud, num português que se mostra capaz de esboçar todos os esgares imagináveis, e, assim, a Assírio & Alvim poupa-nos a termos de arrastar aqueles cadáveres que, só com catapultas poderiam ser lançados mais longe. Ganhamos a possibilidade de andar por aí discretamente armados, como vinha sendo de regra em qualquer outra língua, em que o coração azedo do poeta saía de qualquer saco como uma peça de fruta toda mordida, pulsando e fazendo escorrer sumo pelo braço de quem o envergava, e que assim se dava a esse ritual de se lamber em público. Nos transportes públicos, é agora mais provável ver-se alguém sentar a Beleza no colo, achá-la amarga e cobri-la de injúrias. Rimbaud lembra-nos como os versos alimentam uma certa apetência daqueles que precisam de se agarrar a uma linha de forma a se porem a uivar no meio da rua. No fundo, se se quer ler poesia em voz alta, de que serve convocar uma audiência e tê-la ali de castigo, como uma confraria humilhada? Se ele nos diz que o ar do inferno não suporta hinos, as nossas ruas estão no ponto para que alguém o leia por aí, de madrugada, como um galo tresvariado, perturbando o sono de meio mundo até acabar preso. No fundo, para lhe estarmos à altura seria de bom tom assumir algum risco. Deveríamos colocar-nos em apuros, fazendo o sangue borbulhar nas veias. “O meu deus foi a desgraça. Espojei-me na lama. Pus-me a secar ao ar do crime. E preguei belas partidas à loucura.”

É notório como Rimbaud era impelido por uma energia selvagem, irreprimível, arrastando atrás de si um lastro de imundície, de estrépito, uma herança corrosiva. Tudo o que falta à poesia, que se transformou em mais outro enredo cerimonial, com os poetas a serem celebrados em tudo o que sejam acções de campanha ou paradas para se mostrarem os nossos biltres bem-apessoadas, estendendo essa forma de luxo repugnante com que o poder vai caçando aduladores. Hoje, não se explica que os poetas, em vez de uma enorme desconfiança de toda essa marcha cruel dos ouropéis, se espojem e procurem gozar das honrarias, distinções, favores, posições. Também é nesse sentido que Rimbaud não se deixou apanhar. “Sou de raça distante”, clamava ele. Tinha um esgar raivoso, morderia a mão que tentasse festejá-lo. Devemos ser cuidadosos, como os verdadeiros monstros.

Tudo isso coincide, vemos nele um embalo que só de fora parece caótico, sempre num tom de invectiva, misturando “factos minuciosos, banais e, de resto, adequados a quem tivesse sido violentamente devastado pela literatura”, como assinala Mallarmé, “o pior desarranjo, depois das lentas horas de estudo nas bibliotecas, nos bancos de escola, desta vez senhor de uma certa expressão prematura, intensa, que o excitava a temas inauditos, — logo em busca de ‘novas sensações’, insistia ele, ‘desconhecidas’, e lisonjeava-se de as encontrar no bazar de ilusões das cidades, depressa vulgar; mas que, a um adolescente demónio, entrega, certa noite, como um relâmpago nupcial, alguma visão grandiosa e fictícia, continuada, subsequentemente, apenas pela embriaguez”.

A distância foi o seu maior ganho, aquela repulsa por tudo o que possa significar um acordo de vontades, essa religião conformista que vai bulindo no sentido de neutralizar qualquer voz que se incline para esses elementos de expansão dos sentidos que raiam sempre a selvajaria. Em Rimbaud, tais paisagens feéricas provocam vertigens pela forma como dão uso aos materiais mais desluzidos, ele serve-se do que quer que seja — “erros que me sopram, sortilégios, falsos perfumes, músicas pueris” —, mas transmite-lhes uma confiança soberba, aquela força ofensiva, e talvez isso explique a irrenunciável deserção, quando esgotara os caminhos que a poesia lhe abria, uma vez que não podia arrastar com ele cada leitor. Assim o entende Mallarmé: “Aqui está a data misteriosa, e todavia natural, se admitirmos que aquele que rejeita os sonhos, por culpa sua ou deles, e opera, vivo, a partir da poesia, mais tarde só poderá encontrar, longe, muito longe, um novo estado. O esquecimento compreende o espaço do deserto ou do mar. Assim, menos talvez por fuga ao maravilhoso ou à encenação tropical, do que pela simples necessidade de destino: foi, como soldado alistado, em 1876, no mercado holandês, para Sumatra, desertor ao fim de algumas semanas, reembarcado ao preço da sua fiança, por um navio inglês, antes de se tornar, audaciosamente, mercador de homens, por sua vez, amealhando um pecúlio perdido depois na Dinamarca e na Suécia, de onde a repatriação; — chefe das pedreiras de mármore, na ilha de Chipre, em 1879, após uma passagem pelo Egipto, em Alexandria e, o resto dos dias, entregue ao comércio. A despedida total da Europa, do clima e dos costumes insuportáveis, é também esta viagem a Harar, junto à Abissínia, onde, como as areias, se estende o silêncio em relação a qualquer gesto exterior do exilado.

Traficava, na costa e do outro lado, em Aden; mas eis que, nesse ponto extremo, alguém o encontrou, magicamente, ainda em objectos preciosos, como quem tivera outrora as mãos acariciando páginas: marfim, pó de ouro ou incenso. Sensível à rara qualidade da sua mercadoria, talvez não tanto, como se manchada de orientalismo das Mil e Uma Noites ou de colorido local, mas sim às paisagens embriagadas da sede de vastidão e de independência! E, se alguém renuncia ao instinto dos vermes, tudo se torna inferior por dele prescindir, até viver, pelo menos brutalmente, selvaticamente, não sobrevivendo a civilização, no indivíduo, senão como um sinal supremo.”

Através desta leitura de alguém que uma vez ainda chegou a cruzar-se com ele, sem poder suspeitar o tumulto que carregava no seu íntimo, notando apenas como havia nele um não sei quê de altivamente forçado, fosse orgulho ou malícia, Mallarmé achou que seria herança de uma rapariga do campo, que, na sua condição de lavadeira, tinha umas grandes mãos, gretadas pelo vaivém do quente ao frio, vermelhas de frieiras, e que pareciam destinadas a ofícios mais duros. Surpreendeu-o por isso ouvir dizer que estas tinham escrito versos refulgentes, ainda por publicar. Com esta nota somos levados a reconhecer o que separa a graça da mera técnica, e isso explica também como, já depois da morte de Rimbaud, quando ficou a saber-se quão longe viveu o resto da sua vida, a imaginação de muitos se deixou encantar pela promessa de tesouros abandonados ou fabulosos, e “inflamou-se com a maravilha de que pudessem restar poemas inéditos, talvez, compostos por lá”. Mallarmé reconhecia nessa figura que marcava uma poderosa antítese face a si mesmo, face à forma como a sua obra absorvera o melhor dos seus esforços, e era obrigado a reconhecer o escândalo e essa forma mortífera de denúncia que provocava o abandono da poesia por parte de Rimbaud. Dada “a sua amplitude de inspiração, o acento virgem”, era natural que os leitores ficassem ansiosos por composições que lhes houvessem sido sonegadas, podendo agora reclamar enfim esse pecúlio. “Pensa-se neles como em algo que poderia ter sido; e com razão, porque nunca se deve negligenciar, enquanto ideia, nenhuma das possibilidades que voam em torno de uma figura: pertencem ao insólito, mesmo contra a verosimilhança, estabelecendo um fundo lendário momentâneo, antes que tudo se dissipe por completo. Creio, todavia, que prolongar a esperança de uma obra de maturidade prejudica, neste caso, a interpretação exacta de uma aventura única na história do espírito: a de uma criança demasiado precoce e impetuosamente tocada pela asa literária que, quase antes de existir, exauriu fatalidades tempestuosas e magistrais, sem recorrer a um futuro.”

Rimbaud nunca foi uma promessa, e isso distingue-o de forma infalível dessa infecunda relação que se estabelece actualmente com o escritor. Num golpe bem assestado por João Moita, diz-nos ele como “todo o escritor é um místico cobarde — em pleno êxtase, põe-se a tergiversar”. Por sua vez, aquele que se impôs como o arquétipo do enfant terrible, pressentiu o seu emudecimento, como se o pacto com a poesia estivesse ligado à necessidade de expandir os pulmões e exprimir pelo canto a urgência de um modo de fazer sentido do mundo, e depois disso só restasse calar-se de vez. “Ora, tendo-me visto recentemente na iminência de soltar o último pio, lembrei-me de procurar a chave do velho festim, na esperança de recuperar o apetite.”

O que Rimbaud deixa não é uma obra, mas algo mais tempestuoso. Cesariny fala-nos da crueza e da clareza, “de um dos mais veementes protestos interiores à orgulhosa poesia moderna”.  Não bastava por isso dizer tudo, mas era importante também partir cedo, livrar-se o quanto antes deste reino solenizado. Assim, ateou um clarão que ainda nos envolve e atiça, nos faz roçar o infinito, e logo depois zomba dessa tremenda impostura que passa por abdicar do esforço de tocar no fundo do mundo para se deixar consumir à margem de uma obra, pretendendo assim furtar-se à lei da morte. Era deste reino de vida hermética que ele entendia ser urgente escapar, da miséria desse apego à vida como algo vago e abstracto. Tudo o que de significativo nos deixou foi composto entre 1870, quando não tinha ainda completado dezasseis anos, e 1874, quando fez vinte. Mas aqueles mesmos textos não seriam lidos da mesma forma sem a determinação daquele repúdio da poesia.

Cesariny admira nele o ascetismo, a sensualidade, a vidência, a sua imaginação subvertedora está animada dessa mesma resolução fabulosa, das violentas contradições que parecem ter marcado o seu percurso. Tendo sido um aluno dócil, que espantava os professores do liceu com as suas extraordinárias capacidade, laureado em concursos escolares, mas que escreveu “Merda para Deus” nas paredes da sua terra natal, toda aquela revolta que se exprimiu pela repugnância da convencionalidade provinciana, levando-o a desertar uma e outra vez, apenas para regressar à casa da mãe ao fim de crises cada vez mais profundas, este aspirante a anarquista que celebrou o assalto da Bastilha e a Comuna de Paris… “Poucas-vergonhas dessas era antigamente!/ Oh, já não somos a tua puta! Três passos/ E a tua Bastilha ficou desfeita em pó./ A besta suava sangue de cada pedra./ Metia nojo ver a Bastilha de pé,/ Os seus muros leprosos, a lembrar-nos tudo,/ E que nos enclausuravam na sua sombra! (…) E desde esse dia, andamos como possessos!/ A chusma dos operários foi para a rua,/ E os malditos visam, horda sempre acrescida/ De fantasmas sombrios, as casas dos ricos./ E eu junto-me à festa à caça de delatores:/ Palmilho Paris, farrusco, martelo ao ombro,/ Feroz, a varrer patifes em cada esquina,/ E se te risses na minha cara, matava-te”. Foi este miúdo que, já adulto, se foi instalar na África colonial, e despendeu todos os esforços buscando oportunidades de investimento para enriquecer. Estas contradições são insanáveis, por mais que se queira pintar dele uma imagem de herói clássico. Na melhor das hipóteses, podemos reconhecer como qualquer ambição de verdadeira liberdade arrasta consigo algum pesadelo num mundo que se especializou na “distribuição de morte ao domicílio” (Cesariny). O certo é que teve um papel fundamental para afastar o verso francês das engomadorias do simbolismo, das formas enfaixadas do século xix— da “linguagem do bom senso”, como Paul Valéry caracterizava o tom lírico de então. Mas se o fez, não foi impondo alguma outra ordem de afectação, pois como já notámos tinha uma predilecção por motivos banais. “Gostava de pinturas idiotas, sobreportas, cenários, telas de saltimbancos, letreiros, iluminuras populares; literatura fora de moda, latim de igreja, livros eróticos sem ortografia, romances das nossas avós, contos de fadas, livrinhos para crianças, óperas antigas, refrões parolos, ritmos pueris.”

Nascido em Outubro de 1854, na cidade de Charleville, perto da fronteira belga, Arthur cresceu sustentando-se da visão romântica que guardava do pai, Frédéric, um capitão do Exército que combatera na Argélia e que não passava mais do que curtas temporadas em casa, sendo que cada um dos cinco filhos que fez a Vitalie Cuif nasceu nove meses após uma das suas breves licenças. A mãe de Arthur, uma filha de lavradores abastados que fora submetida a uma rígida educação católica, não sai bem dos testemunhos que mais tarde se recolheram, sendo que ninguém se lembrava de alguma vez lhe ter visto um sorriso no rosto. Quando Arthur tinha cinco anos, o pai partiu para se juntar ao regimento e não deu mais notícias. Este abandono deixou marcas que se lhe lêem nos versos, alguns dos quais evocam uma alegria perdida na infância, enquanto outros dão conta daquela mulher de negro a quem ele e os irmãos ficaram condenados, essa mulher devota que passou a referir-se a si mesma como “Viúva Rimbaud”, aplicando-se, com sombria determinação, em transmitir os seus valores aos filhos. Os biógrafos entendem que Arthur terá procurado esquivar-se, preenchendo os contornos do pai a partir dos poucos sinais e memórias que lhe ficaram, herdando o seu instinto e ambição intelectual. Frédéric deixara para trás uma tradução anotada do Corão e uma colectânea de anedotas árabes que havia redigido enquanto servia no Norte de África e, muitos anos mais tarde, Arthur mandou vir esses textos quando se mudou para esse continente. Ali, já sem o menor interesse pela literatura, distinguiu-se como um notável linguista, tornou-se fluente em árabe, bem como em vários dialectos locais, e chegou a dar lições do Corão a rapazes da região. Como assinalava Daniel Mendelsohn no excelente perfil que lhe dedicou em 2011 nas páginas da revista The New Yorker, “é tentador ver na divergência radical entre as naturezas dos pais a origem do excentricismo de Rimbaud, oscilando entre literatura e comércio”.

A primeira das fugas de Rimbaud deu-se no final do Verão de 1870, não tinha ainda 16 anos. Meteu-se num comboio para Paris, e como não lhe chegava o dinheiro para a totalidade da viagem, foi preso à chegada e encarcerado. “Passa uma noite na cela, comparece perante um juiz de instrução que ele desconcerta e desagrada com respostas altivas, é mandado para Mazas e ali permanece alguns dias pedindo por carta a Izambard, nessa altura em Douai, na casa da sua família, que vá buscá-lo”, de acordo com o seu amigo Delahaye. Tinha prometido ao seu professor estimado em Charleville, Georges Izambard que não faria o que tantas vezes se prometera, mas acabou por não resistir. Por fim, foi resgatado sob fiança e regressou cabisbaixo a casa. O que mais o irritava era ir acompanhando por cochichos nervosos toda aquela agitação na capital, e não poder tomar parte, sendo que apenas dois dias após a sua chegada, a França fora derrotada pela Prússia e o Segundo Império ruiu. E dias após ter sido forçado a regressar a casa, fora proclamada a Comuna de Paris. Ali estava ele retido, nessa Charleville onde nunca nada de importante se dava (“Morro, decomponho-me sob o peso da platitude”), e lá fora acontecimentos extraordinários sucediam-se a um ritmo enlouquecedor. A este título é bem ilustrativa da sua frustração uma das cartas que enviara a Izambard a 25 de Agosto: “Estou aqui deslocado, doente, furioso, parvo, arrasado; esperava banhos de sol, passeios infinitos, repouso, viagens, aventuras, boemices enfim; esperava sobretudo jornais, livros… Nada! Nada! O correio já não manda mais nada aos livreiros; Paris troça que se farta de nós; nem um livro novo! É a morte! À míngua de jornais, eis-me reduzido ao digno Courrier des Ardennes — proprietário, gerente, director, chefe de redacção e redactor único: A. Pouillard! Este jornal resume as aspirações, os votos e as opiniões da população: julgai assim! Pode lá aceitar-se!… Estarmos exilados na nossa pátria!!!” A época deu-lhe a volta, o outrora aluno cheio de brio com as suas façanhas e distinções deixou crescer o cabelo, já não tinha mais gozos senão o de troçar da beata população de que se via cercado, andando para todo o lado com o seu cachimbo de barro, com ganas de sentir a alma encardida enquanto este mesmo anseio de ruptura se impunha nos poemas que então escrevia. A incapacidade de se conter levou-o a fazer apreciações cada vez mais drásticas das obras e dos textos que não aspirassem ao mesmo estado de frenesi, e aplicou-se numa sorte de vandalismo literário, dominando as convenções para melhor as ridicularizar. Assim, é em verso elegantemente métrico que, logo depois da sua primeira fuga, num poema como “Accroupissements” (“Agachamentos”), descreve os laboriosos movimentos intestinais de um padre, ao passo que logo num dos seus primeiros poemas, dá à deusa Vénus uma úlcera no ânus. As traduções que João Moita nos oferece resultam por serem leais a esse gozo da profanidade, a esse ardor blasfemo que gosta de arrastar para a lama as coisas lustrosas, servindo-se daqueles requebros da métrica, e fazendo bem em mandar às malvas as rimas, que na nossa língua se impõem excessivamente e nos ulceram o ouvido a um ponto tal que, normalmente, levam a que tudo nos desgoste. Leia-se agora a sua Vénus Anadiómena, e isso chega para nos elucidar sobre o sórdido enlevo que aqueles versos nos produzem e nos dão a sensação de, mesmo em português, estarmos na verdade a experimentar o mais calejado e sinuoso francês: “Como de um verde caixão de lata, a cabeça/ De uma mulher, cabelo castanho e pastoso,/ lenta e estulta, emerge de uma velha banheira,/ Cheia de deformidades mal disfarçadas;// Depois a farta nuca, as grandes omoplatas/ Saídas; as costas cheias de reentrâncias;/ E os bolbos dos rins, que parecem descolar;/ Sob a pele, a banha surge em lisas camadas;// Um tanto vermelha, a espinha, e o todo liberta,/ Que estranho, um cheiro horrível; vê-se sobretudo/ Singularidades que requerem a lupa…// Nas nalgas, dois nomes gravados: Clara Venus; — E toda em requebros alça a larga garupa/ E expõe, bela e medonha, uma chaga no ânus.” Isto tudo não pode deixar de soar sublimemente porco. Este entrelaçar de sílabas que se conjugam num efeito perversamente sugestivo, como brincar com a língua sobre um ponto erógeno raramente acessível. E o certo é que, ainda que persista uma certa tentação em ter Rimbaud como essa figura que nos impôs o seu genial ímpeto dionisíaco, uivando estes versos descarados, a verdade é que o seu dom absurdo está na fome com que devorou a biblioteca de Charleville ou a de Izambard, que ao ausentar-se naquele Verão lhe deixou a chave do seu quarto, como traçou uma trajectória nitidamente apolínea, e esse elemento de desacato que traz à poesia vem de um profundo e aturado estudo da sua história. Nenhum dos seus muitos versos tão memoráveis é outra coisa senão uma espécie de fórmula química, e pressentimos como tudo está em processo, a fermentar ainda, por cada elemento ter sido escrupulosamente pesado e medido, de forma a ruborizar certas zonas do cérebro do leitor, gerando esse prazer de pronunciar um verbo proibido. Uma prodigiosa blasfémia atrás de outra, é esse o gozo que ele nos promete.

A precocidade é um elemento essencial do seu génio, essa ânsia e o instinto que mais tarde se perde, esse faro com que os miúdos se aferram às expressões cuja doçura está ligada a uma certa imundície, essa especiaria única e tão estimulante quanto ofensiva que certas combinações de palavras libertam, relembrando-nos essa inclinação diabólica para desgostar e desmoralizar todos esses que impõem a linguagem como o último dos conventos.

Romper com as velhas formas é também um modo de reclamar uma sordidez inaudita, medindo a urgência da voz do poeta pela quantidade do desconhecido que faz o seu tempo experimentar, despertando nele essa fome de tudo quanto lhe escapa. O desregramento de todos os sentidos é um modo de mergulhar na desordem para libertar outras forças, novos impulsos, e uma linguagem que possa forçar o olhar a abrir-se, a captar esse pó que as outras dimensões fazem cair sobre aquelas poucas em que vivemos encerrados. Aquela carta dirigida por Rimbaud a Paul Demeny, também ele poeta, é esclarecedora quanto a este ensejo, a esse estado de vidência que a poesia alcança nos seus momentos mais extravagantemente inspirados. Outro impulso decisivo é esse passo que significa um profundo rasgão na consciência, rompendo com a conversa do Eu, que é a pior das camisas-de-forças, esse teatrinho que nos obriga a passar pela vida representando sempre o mesmo papel, cada vez mais ingrato, mais sem saída nem soluções. A sua célebre injunção numa outra carta, dirigida a Izambard, em que o rapaz de 16 anos se dava conta dessa degradante impostura, desse enredo comezinho a que todos nos obrigamos para produzirmos uma narrativa constante e coerente, cooperante e tão infeliz, esse “Je est un autre”,  no sentido que ele lhe dá, é uma abertura radical, e em relação à qual preservamos a nossa timidez, essa virgindade extenuante, quando do outro lado está a mais perfeita noção de liberdade que se pode imaginar. E um dos seus biógrafos, Graham Robb, não hesitou mesmo em designá-la como o “E=mc² poético”. Este Eu que não está como uma obsessão carcerária, continua a impulsionar numa direcção que muito poucos, depois da adolescência, ousam explorar. Rimbaud parece ter deduzido do facto de a mente poder observar-se a si mesma em funcionamento que a consciência, longe de ser linear, se organizava em múltiplas camadas. (“Estou presente no eclodir do meu pensamento.”) De súbito, viu que o verdadeiro sujeito de uma nova poesia não podia ser o que sempre fora — as mesmas velhas comichões, desde as paisagens, os poentes, as flores, a beleza do outro sexo — mas, antes, o modo como essas coisas se refractam através da mente única de cada um. “O primeiro estudo do homem que deseja ser poeta é o conhecimento completo de si mesmo”, escreveu ele na carta a Demeny. “Ele perscruta o seu espírito, examina-o, põe-no à prova e aprende a usá-lo.” Mas isto serve apenas para afinar o instrumento, e quão triste é reconhecer que a maioria dos poetas nos nossos dias se ficam por isso mesmo, um confessionalismo exacerbado, o espreguiçar da pose, essa ficção retardada e quase clínica a que chamamos o eu biográfico. Para superar as categorias conceptuais que começam por fazer desabrochar os nossos juízos e depois acabam por paralisá-los, ele compreendeu como o seu projecto exigia uma nova linguagem poética, em que um sentido se tornasse indistinguível de outro, a visão do tacto, a audição do olfacto: “resumindo tudo, perfumes, sons e cores, um pensamento agarrando-se a outro e impulsionando-se”. Este regime sinestésico que ele vai buscar a Baudelaire, permite-lhe produzir um dos maiores feitos poéticos de qualquer época, e tão mais desconcertante pelas circunstâncias em que surge.

Le bateau ivre (O Barco Ébrio) é escrito por um rapaz que teve de inventar o mar alimentando a inteligência da sua imaginação, fornecendo-se, a partir de um maelstrom de impressões e descrições, passagens de inúmeros textos dando conta de aventuras marinhas, socorrendo-se de Baudelaire e Poe, Michelet e até de banais revistas, e isto porque nunca até então estivera diante do mar, sendo que só mais tarde, na companhia de Verlaine, fez uma viagem até à costa. Ao longo de vinte e cinco quartetos rimados em alexandrinos, a impecável factura formal serve de âncora a uma desbordada fantasia, exprimindo um anseio e libertação ferocíssimos. “O ‘Bateau ivre’ é a cerimónia inaugural da literatura que se libertou das amarras”, diz-nos Roberto Calasso. “Anúncio e demonstração em acto. ‘Au fond de l’Inconnu pour trouver du nouveau!’: o desejo com que Baudelaire encerrara as Fleurs du mal é agora anotação num diário de bordo. O barco navega sem tripulação porque a solidão monologante e o frio delírio bastam para o guiar.” O que o poema nos descreve parece ser a descida de um rio como se fosse uma viagem ao fim de todas essas exorbitâncias imaginárias, é o precipitar de uma embarcação que perdeu os remadores, o leme, a âncora, errando de um lado para o outro enquanto é sacudida por visões bizarras e segue adiante sem qualquer rumo. Mas, como nota Mendelsohn, “à medida que se percorre o poema, cada estrofe parece ao mesmo tempo ligar-se firmemente à anterior e mergulhar mais fundo no espaço imaginativo, e assim esta composição expande-se numa parábola sobre a vida e a arte, em que a perda de controlo — do barco, do próprio poema, do que pensamos ser o ‘sentido’ deste — se torna a chave para uma espécie de redenção espiritual e estética”. Eis alguns versos: “Os Rios conduziram-me aonde eu queria.// Ao marulhar enfurecido das marés,/ Surdo como uma criança, o Inverno passado,/ Me lancei! E as Penínsulas desatracadas/ Não tinham visto ainda caos tão triunfante.// A tormenta benzeu meu despertar marinho./ Mais leve que uma rolha dancei sobre as vagas,/ Ditas eternas embaladoras de vítimas;/ Dez noites, sem ver a luz néscia dos fanais!// Mais doce que às crianças as maçãs azedas,/ A água verde inundou o meu casco de abeto,/ E das nódoas dos vinhos azuis e dos vómitos/ Me lavou, levando consigo leme e arpéu./ Desde então, banho-me no Poema da Mar,/ Lactescente, infuso de astros, sorvendo o verde/ Dos céus; onde, flutuação lívida e extática,/ Um afogado absorto por vezes assoma; (…) // Vi fermentar os enormes pântanos, nassas/ Nos juncos onde apodrece um Leviatã!/ Desabamentos de águas em plena bonança,/ E as lonjuras cataratando nos abismos!// Gelos, sóis de prata, ondas de nácar, céus rúbidos!/ Horríveis encalhações nos golfos sombrios,/ Onde as cobras titãs, pasto dos percevejos,/ Caem com negros perfumes dos ramos torsos!// Às crianças quisera mostrar as douradas/ Da vaga azul, peixes de ouro, peixes cantantes./ — A espuma em flor embalou as minhas derivas/ E inefáveis ventos fizeram-me voar.// Por vezes, mártir farto de pólos e zonas,/ O mar, cujo soluço me adoçava o balanço,/ Trazia-me flores de sombra com ventosas/ Fulvas, e eu, mulher de joelhos, entregava-me…// Quase ilha, a sacudir dos bordos as querelas/ E os dejectos de aves trocistas de olhos louros./ Vogava, enquanto, às arrecuas, afogados/ Desciam pelos cabos para ir dormir.”

É um estrondoso festim, um desabalado e torrencial enredo de contrastes espantosos, forcejando o idioma, sovando-nos com o atropelo de imagens inesperadas, de variações drásticas, levando a pulsão onírica para um campo de espasmos, com aquele peso de uma imparável sucessão de ondas que se erguem para nos esmagar. E a tradução aguenta-se, treme “ao sentir gemer a muitas léguas/ O cio dos Behemots e os Maelstroms espessos”, dá-nos deste idioma que, mesmo trabalhado pelos poetas, nos surge cansado, anquilosado, estéril, e raspa-lhe as camadas de salsugem, liberta-o para exprimir um fulgor rejubilante, rejuvenescedor, capaz de acompanhar este “Eterno urdido das azuis monotonias”, enquanto Rimbaud nos diz como deplora “a Europa dos parapeitos antigos”. Esta visão de tão ousada beleza tem-nos sido poupada por gerações de escribas que, diante destes fervores, se sentem compelidos a observar rigores austeros. Vimos de décadas de exercícios em que a vigilância vai sempre no sentido de negar a expansão exaltada da linguagem, servindo-nos sempre a mesma de dieta, como se nos devêssemos contentar enquanto tripulação de um submarino, fazendo de tudo para não ser notado. Eis esse arrancar de teias que quase nos cicatrizam a boca. Mas isto só poderia vir da pena de uma dessas crianças que fogem realmente de casa.

Em Setembro de 1871, Rimbaud fez nova tentativa de escapar a Charleville. Escreveu uma carta a Paul Verlaine, que, como Baudelaire, estava entre os raríssimos poetas que tinham sobre ele algum ascendente, e tendo Rimbaud juntado algumas das suas melhores composições de modo a impressioná-lo, imagine-se os transtornos a que o poeta 10 anos mais velho se submeteu para não desmerecer a furiosa vitalidade com que aquele tão raro rapaz se propunha abalar o cenáculo parisiense. Convidou Rimbaud a vir à grande cidade, e esboçou-o como um desafio, em palavras que soavam a uma perigosa invocação: “Vem, querida grande alma. Esperamos por ti; desejamos-te.”

O resto não cabe bem sequer na lenda arrogante que ainda é cultivada por tantas adolescências que se deixaram esvair sem levarem ao extremo os seus impulsos, mas os anos que se seguiram foram realmente um ensaio infernal, pois o miúdo não chegou à capital dominado tão-só de uma ânsia de virar do avesso a poesia, mas quis estrefegar com as mãos rudes de lavadeira todo o bom-senso, e pelo caminho dar cabo de bibelôs, louças e móveis nas várias casas onde foi acolhido, de tal modo que as suas constantes grosserias o levaram tantas vezes a ser corrido. Consagrado como estava a demolir as normas da pacata existência burguesa, não descansou enquanto não desfez o casamento de Verlaine. Tornaram-se amantes pouco depois da chegada de Rimbaud, mantendo uma relação que em boa parte se alimentava do escândalo que produziu em Paris e nos outros lugares por onde passaram. Na crónica que lhe dedica em Vidas Escritas, Javier Marías não hesita em colocar-se do lado daqueles companheiros deste “casal ventoso” que deles se afastaram como da peste, preferindo, em troca, ler comodamente os poemas anos depois de se cruzarem com eles, assumindo a postura muito cómoda que nos oferece a posteridade — “a posteridade conta sempre com a vantagem de fruir as obras dos escritores sem o incómodo de os suportar a eles”. Marías adianta que, “segundo as descrições da época, Rimbaud nunca mudava de roupa e portanto cheirava mal, deixava as camas por onde passava cheias de piolhos, bebia sem parar (de preferência absinto) e não oferecia aos seus conhecidos senão um tratamento impertinente e afrontoso”. O cunhado de Verlaine, por exemplo, nunca se deixou enganar pelo rosto angélico e pelos olhos azuis-claros impressionantes, tendo descartado de imediato aquele “fedelho vil, vicioso, repugnante e porcalhão por quem todos se mostram em êxtase”. Houve cenas realmente deploráveis, excessos descontrolados e que só um espírito romantizado até ao estupor e à imbecilidade ousa tomar como um ideal. Prova disso mesmo é a própria repugnância que levou Rimbaud a querer raspar da pele as antigas sombras, esquecer tudo e manter-se o mais longe possível dos ecos desse período a que se entregou como um possesso.

Entre o Outono de 1871 e Julho de 1873, o casal vagueou de Paris à Bélgica, passando depois uma temporada em Londres e, por fim, rumando de novo a Bruxelas, um alimentando a sede de aniquilação do outro, sempre municiados de absinto e haxixe para estarem em condições de solver a última inocência e a última timidez, entregando-se a escandalosas demonstrações públicas de afecto (um jornal referia-se maldosamente ao mais novo como “Mlle Rimbaud”), e logo discutiam, engalfinhavam-se, descendo numa forma de sadismo grotesco, seviciando-se mutuamente, e supondo que esse convívio tormentoso pudesse reservar-lhes inspirações e aberturas igualmente tenebrosas. Temos provas de que sim, que tudo aquilo produziu um concerto momentoso, que aqueles dois corações sensíveis consumiram todo o veneno que puderam congeminar, e derrubaram com estrondo as portadas da cena literária, sendo que dali já nenhum senhorio poderá expulsá-los. Não faltam sequer aqueles que saúdam esta união como aquilo a que um crítico chamou “o Adão e Eva da homossexualidade moderna”, mas, como sublinha Mendelsohn, na sua existência pós-literária, e na medida em que Rimbaud deu provas de se interessar por mais alguém além de si próprio, a sua preferência era claramente por mulheres. O que significa que se submeteu àquilo num esforço para se degradar o mais possível e reinventar-se. “É difícil escapar à sensação de que Verlaine — um homem feio, cuja aparência Rimbaud ridicularizava cruelmente — foi para o poeta uma espécie de experiência científica, parte do seu programa de deliquência racional, aviltando todos os sentidos, e um sinal da sua estridente ambição adolescente de ‘reinventar’ o amor, a sociedade, a poesia”, refere Mendelsohn. “A verdade é que, para alguém que usa tão frequentemente a palavra ‘amor’ na sua obra, Rimbaud aparece como um ser inapelavelmente calculista e frio; as emoções ternas parecem-lhe sempre hipotéticas.”

É inegável, contudo, como o período pelo qual se arrastou esta relação significou uma evolução tremenda e quase inigualável na história literária, beneficiando claramente Rimbaud, que ficou a dever a essa temporada, a esses dias em que quis passear-se com ar de crime, as experiências que infundem o seu fascínio e terror nas páginas do primeiro dos seus dois livros derradeiros e que, de um certo modo, não apenas prenunciou todo o modernismo, sendo que, em grande medida, o arrastou até ao seu desfecho, fechando a porta atrás de si. A certa altura, já exaurido de se ver arrancado de baixo a cima, de todo aquele tumulto, parece ter pousado a cabeça nos braços, deixando-se tomar pelas melodias encantadoramente simples das óperas do século xviii, tendo escrito vários poemas tão delicadamente rarefeitos, tão despojados do elemento descritivo, da fanfarra das imagens justapostas e em estado de delírio, que produzem em nós uma delicado deslumbramento, enquanto essas composições apontam já para outra coisa. “Ei-la que me invade./ Quem? — A Eternidade./ É o mar que segue/ o sol ao cair.// Alma sentinela,/ Ensina-me o jogo/ Da noite que gela/ E do dia em fogo.// Das lides humanas,/ Das palmas e vaias,/ Já te desenganas/ E no mar te espraias.” (colando-nos aqui à versão de Augusto Campos).

Assim, num período de tão grande suplício, ele arranca também estes versos, como um descanso, uma espécie de favor ou alívio no inferno, tendo as coisas chegado a um estado de tal desespero, de miséria quotidiana que, a certa altura, os dois chegaram a publicar anúncios oferecendo-se como professores de francês. A relação estava já no seu estertor, e foi então, como quem suplicasse um fim, que ocorre a tal cena catastrófica em que Verlaine dispara três vezes sobre Rimbaud e uma das balas lhe acerta no pulso. Isto deu-se na Bélgica, a 10 de julho de 1873, então o poeta mais velho estava já completamente fora de si, há dias que ameaçava o suicídio, mas depois, no meio de outra discussão, virou o revólver que destinara a si próprio sobre o amante. É suficientemente esclarecedor do ponto a que as coisas chegaram, dos cumes do desespero a que os dois se levaram, o facto de Rimbaud, que se tinha na conta de um indómito anarquista, ter sentido necessidade de chamar a polícia. Após um inquérito oficial, no decorrer do qual Verlaine foi submetido a um humilhante exame médico, acabou condenado a dois anos de prisão. Rimbaud ainda procurou retirar as queixas, mas era tarde, e não lhe restou outra opção senão voltar para casa da mãe. Nenhum ímpeto de desordem e êxtase sobreviveria àquilo. De volta aos muros da sua infância, o rapaz viu-se restituído à posse das suas faculdades lúcidas, e passou esse Verão de 1873 a trabalhar a versão final do texto que esboçara no início desse ano. Essa pequena recolha de “histórias atrozes” em prosa, como a descreveu numa carta a um amigo, viria a tornar-se Uma Temporada no Inferno, que persiste até aos nossos dias como a sua obra mais célebre e influente, uma resma pouco impressionante em volume, mas que mordeu o tendão da época e teve um papel decisivo na fundação do modernismo europeu.

Que continuemos a insistir no mistério do seu posterior abandono da poesia, e até o ódio que lhe devotou, é um sinal de que, de facto, continua a não se levar a sério aquilo que é expresso neste género, como se tudo fosse uma mera exacerbação narcotizante do sentido apenas para seduzir o leitor. Neste texto, Rimbaud entrega-se a uma evocação caleidoscópica daquele período em que procurou ir ao fundo do fundo, confrontando-se com os limites do eu. Paira sobre tudo aquilo um dilacerante reconhecimento do fracasso, de caminhos errados. Mesmo as fantasias desmedidas e narcisistas de transcendência artística (“Tornei-me uma ópera fabulosa”), como assinala Mendelsohn, parecem no fim, reconduzi-lo de volta à realidade, a um voto de sobriedade: “Eu que me tomei por anjo ou vidente, isento de toda a moralidade, regresso à terra com o dever de procurar a rude realidade e abraçá-la!” E, num certo sentido, acaba por ser esta noção que funda o modernismo, uma vez que Rimbaud acaba por reconhecer que toda a fantasia e o romantismo apenas nos lançam em equívocos delirantes, e devem, por isso, ser rejeitados. Acaba por virar as costas a toda essa “dilacerante desdita”, sem deixar de reconhecer como lhe foi útil, por devolvê-lo ao mundo em si mesmo e à vida. Eis o passo que conduz à célebre frase de fecho — “É preciso ser absolutamente moderno.” “Sim, a hora nova é pelo menos bastante severa./ Porque posso dizer que a vitória me foi concedida: os rangeres de dentes, os silvos do fogo, os suspiros empestados moderam-se. Todas as lembranças imundas se desvanecem. Os meus derradeiros remorsos debandam — a minha inveja dos mendigos, dos facínoras, dos amigos da morte, dos retardados de toda a espécie.” E depois disso a tarefa mais dolorosa é ainda essa contracção dos dentes de Álvaro de Campos: “Merda! Sou lúcido.” “Nada de cânticos: não arredar pé”, diz-nos Rimbaud. A tarefa é o mundo, transformá-lo para que venha a corresponder às nossas melhores aspirações.

O livro final, apesar da sua irradiante beleza, é já um post-scriptum, não tem o mesmo apelo, não está submetido à mesma vertigem, angustiada e dialógica, mas adopta um tom de “repouso iluminado”. Já sem febre nem langor, vemos um Rimbaud despedir-se, assumindo uma espécie de tranquila autoridade, uma voz límpida… “o sonho arrefeceu”. Se André Breton celebrou Rimbaud como “um verdadeiro deus da puberdade”, nestas páginas a voz que nos fala está longe dessa condição. Revê o seu passado já com alguma distância, e esta parece a escrita de alguém apaziguado, que se perdoou a si mesmo os excessos a que se entregou. Rimbaud e Verlaine encontraram-se uma última vez, em 1875, quando aquele vivia na Alemanha. Entregou então ao antigo amante esse maço de folhas para levar de volta a França. Faltava um título. Iluminações é o nome sob o qual Verlaine acabou por publicá-las, num gesto de generosidade que viria a ser reforçado com o passar dos anos, mantendo-se comprometido com o génio do ingrato ex-amante. Ao escolher este título, Verlaine procurou evocar as minúsculas ilustrações dos antigos manuscritos, ressaltando a estranha sabedoria que se recolhe no pormenor com que estes delicadíssimos poemas em prosa foram cultivados, havendo neles uma certa pureza, em quadros intensamente visuais, oferecendo descanso a um corpo já “curado das velhas fanfarras do heroísmo”, e que prefere repousar os olhos nessas imagens fugazes, dotadas de uma beleza reparadora, e que resgatou algo de toda aquela intensidade e subterrâneo fulgor dos sonhos. Desde então os exegetas nunca se cansaram de discutir qual dos dois livros terá sido escrito primeiro, mas parece evidente que as Iluminações estão tocadas de uma evanescência e de uma qualidade quase póstuma, e parece evidente que o primeiro dos textos (“Depois do Dilúvio”) faz menção aos antecedentes descritos em Uma Temporada no Inferno.

Assim, não parece haver grande mistério no abandono, no virar de costas de Rimbaud. Houve, sim, uma razão muito simples. Tudo aquilo que o empurrava para a poesia desapareceu. O rapaz cresceu, tornou-se homem. Perdeu a paciência para as enfatuações e largou os raios e o trovão, toda aquela tempestade à qual, por fim, abandonamos a tripulação imaginária dos imoderados sonhos que um dia nos fizeram companhia. Não é que não restasse mais nada a dizer. Simplesmente, esse Rimbaud que tanto nos fascina é a voz de alguém que nunca chegou à idade adulta.