O susto com a hérnia encarcerada do Presidente

Médico de todos os Presidentes desde Mário Soares, Daniel de Matos desdramatizou o que Eduardo Barroso classificou como mais um ‘badagaio’ de Marcelo Rebelo de Sousa. E frisou que ‘não faz qualquer sentido’ falar-se na hipótese de suspensão de funções do PR.

Daniel de Matos cumpre o oitavo ‘mandato’ como médico oficial da Presidência da República. Isto significa que foi o médico dos Presidentes Mário Soares, Jorge Sampaio, Aníbal Cavaco Silva e Marcelo Rebelo de Sousa. Em 40 anos, só numa ocasião teve necessidade de elaborar um relatório clínico para o Tribunal Constitucional, relativo a um impedimento temporário do exercício de funções por parte do Presidente da República. Isso ocorreu durante o primeiro mandato de Jorge Sampaio.

O Nascer do SOL falou com o médico, que conhece Marcelo Rebelo de Sousa desde os 10 anos, na manhã de terça-feira, 2 de dezembro, a primeira após a intervenção cirúrgica do Presidente da República. Tranquilo e bem-disposto, Daniel de Matos contou que se deslocou de Lisboa ao Porto «só para dar mimos» ao paciente que é também Presidente, reconhecendo desde cedo que este estava entregue a excelentes cirurgiões no Hospital de São João.

De acordo com a Constituição, se o Presidente da República ficar temporariamente incapaz de exercer o cargo, por hospitalização prolongada, incapacidade médica comprovada ou coma, as funções passam interinamente para o Presidente da Assembleia da República, que assume todas as competências com uma exceção, não pode dissolver o Parlamento, ato reservado a um Presidente eleito.

José Pedro Aguiar-Branco visitou Marcelo Rebelo de Sousa no São João, ainda na tarde de terça-feira. A visita foi de cortesia e preocupação e, à saída, fez questão de afirmar que os portugueses «podem ficar descansados que não vão ter o presidente da Assembleia da República como Presidente», garantindo que Marcelo manterá funções até ao fim do mandato, que termina, concretamente, em março de 2026.

Para Daniel de Matos, falar da eventual suspensão de funções do Presidente «não faz qualquer sentido», Marcelo esteve sob o efeito de anestesia por menos de duas horas, numa cirurgia que poderia até ter sido feita com ele acordado.

Sabemos o que aconteceu: durante a viagem de regresso de Amarante para Lisboa, o Presidente sentiu mal-estar e vómitos, que associou a uma indisposição após um almoço apressado. Uma conversa com um dos médicos da Presidência, Afonso de Oliveira, impediu que Marcelo embarcasse no avião sem antes passar pelo hospital público do Porto. Aí, o mal-estar revelou-se uma hérnia encarcerada.

‘badagaios’, segundo Eduardo Barroso

Também já todos sabemos o que é uma hérnia encarcerada, embora seja pouco frequente. O corpo de Marcelo está habituado, há anos, a hérnias umbilicais e inguinais, mas esta foi «uma situação mais inopinada e rara» e «mais danosa», como nos explicou Daniel de Matos. Foi decisiva a intervenção da equipa clínica do São João, que realizou a cirurgia essencial no momento certo.

Não foi a primeira vez que deu um «badagaio», expressão usada pelo médico e amigo Eduardo Barroso, ao Presidente da República. Em julho de 2023, um copo de Moscatel com o estômago vazio levou Marcelo ao Hospital de Santa Cruz, por precaução, depois de ter desmaiado numa cerimónia da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova, na Caparica. No essencial, as idas ao hospital relacionam-se com duas questões de saúde concretas: hérnias e coração, sem grandes sobressaltos.

Daniel de Matos descreve o homem que trata por tu em privado como um «médico frustrado» ou «¼ médico», um curioso, muito interessado em Medicina, e discorda de quem o considera hipocondríaco. Marcelo, admite, talvez tivesse sido médico, mas quando eram pequenos perguntaram-lhes o que queriam ser quando crescessem: Daniel respondeu «médico» e Marcelo respondeu «primeiro-ministro», numa altura em que o país era governado por um presidente do Conselho.

Recordou ainda uma viagem a Cabo Verde em que acompanhava o Presidente. A certa altura, um deputado sentiu-se mal; o médico acudiu, mas o parlamentar explicou que o Presidente português já o tinha «medicado». Restou a Daniel de Matos perguntar: «E posso saber o que é que o senhor Presidente lhe prescreveu?». É que Marcelo anda sempre com um pequeno kit de bolso para eventualidades, as suas e as dos outros. É esse traço, a sua extrema preocupação com os outros e o despojamento, que Daniel de Matos destaca quando fala do atual Presidente.

É evidente que Marcelo é um paciente capaz de deixar qualquer médico impaciente. Mas, há meia dúzia de anos, Daniel de Matos conseguiu levá-lo a fazer exames de rotina – insistência que acabou por conduzir a um cateterismo cardíaco, em outubro de 2019. Recuperou em poucos dias. Desde então, o coração do irrequieto Presidente tem dois stents implantados. Caso a intervenção não tivesse sido feita, a possibilidade de enfarte seria seriíssima.

Não foi por acaso que, para o segundo mandato, e já algo cansado – quarenta anos, quatro Presidentes e oito mandatos, um caso único no mundo – Daniel de Matos escolheu para a equipa médica da Presidência um cardiologista do Hospital de Santa Cruz, o mesmo que impediu agora que Marcelo embarcasse num avião com dores abdominais e vómitos.

Falou-nos também de um outro caso, esse sim mais consequente, envolvendo Jorge Sampaio (1996-2006). Sampaio foi operado ao coração no Hospital de Santa Cruz logo no primeiro ano de mandato – primeiro em abril, depois em julho. A segunda intervenção obrigou à suspensão temporária das funções presidenciais, assumidas por António Almeida Santos, então Presidente da Assembleia da República. Sampaio enfrentou problemas de saúde recorrentes. Em 2000, Daniel de Matos acompanhou-o numa viagem a Macau; daí seguiram para a Tailândia e depois seguiriam para Timor-Leste, em plena fase de transição da segunda independência do território. Sampaio estava com pneumonia e febres altíssimas, e o médico impediu-o de prosseguir viagem, para desgosto de Sampaio, mas «não havia descontos para presidentes» em questões de saúde.

Daniel de Matos tinha sido antes médico de Mário Soares (1986-1996). Soares passou por Belém sem registo clínico relevante. «Um homem cultíssimo, que não percebia nada de duas coisas: medicina e música», disse-nos, o que tinha a vantagem de o ouvir atentamente, sendo muito interessado em novas formas de diagnóstico como a TAC. Mas tinha a desvantagem de se expor, e expor o médico, a riscos.

Graças a Mário Soares, o médico visitou sítios onde de outra forma nunca iria. No Congo Democrático, voaram num pequeno avião durante uma tempestade; a asa ficou a centímetros do solo na aterragem. Na Guiné-Bissau, todos recusaram viajar no avião do então Presidente Nino Vieira para os Bijagós, menos Soares; o médico, aí, não foi. «Soares bebia a vida por uma palhinha, até à última gota», muitas vezes para embaraço do médico «autodisciplinado».

De Aníbal Cavaco Silva (2006-2016), diz que é, sem surpresa, «a pessoa mais disciplinada que conheço». Tudo é feito com rigor, o que contribui para a excelente forma física que Cavaco mantém aos 86 anos. «Enquanto foi Presidente, não faltou um dia em Belém», afirmou o médico. Ainda assim, em 2014, durante as cerimónias do 10 de Junho, na Guarda, Cavaco desmaiou enquanto discursava. Nunca perdeu totalmente a consciência, e os médicos atribuíram o episódio a uma «reação vagal» (queda súbita da pressão arterial e da frequência cardíaca). Concluiu o discurso meia hora depois.

Quanto ao restabelecimento completo do atual Presidente, tudo depende, como muito na vida de Marcelo, da interpretação que ele fizer das indicações médicas. Daniel de Matos contou ao Nascer do SOL que, após uma intervenção no Hospital Militar, em dezembro de 2021, cuja alta estava marcada para as 14h00, Marcelo saiu às 13h00. O médico deixou o almoço e acompanhou-o ao Palácio de Belém, integrando a comitiva presidencial quando percebeu que o destino era o paredão da linha de Cascais, para um passeio. Não o acompanhou e ficou-se por uma fúria contida, reconhecendo que para lidar com o paciente Marcelo Rebelo de Sousa é precisa uma «paciência de Jó».

E Jó, ou a fé inabalável no médico, é algo que atravessa a relação de Daniel de Matos com os quatro Presidentes. Uma carreira e uma vida moldadas por um destino partilhado, ele que é bisneto de um médico da família real e que viveu a Presidência, literalmente, de corpo e alma.