94 anos não cabem aqui

Lembro-me bem de a ver escrever a sua assinatura interminável numa caligrafia miúda e ligeiramente trémula: Maria Isabel da Silva Granate Lopes de Paula Saraiva. Recebi a triste notícia da sua morte na tarde de 4 de Dezembro. Tivera a oportunidade de me despedir no dia anterior, no Hospital de Egas Moniz, embora ela já…

A minha avó era uma pessoa única. Todos o somos, dir-me-ão, mas vou tentar explicar por que insisto naquilo que à primeira vista parece um lugar-comum ou uma evidência. Nasceu a 4 de Setembro de 1920 por cima da Casa dos Pastéis de Belém, bem perto do prédio onde, um ano antes (a 23 de Setembro de 1919), o seu pai fundara o Clube de Futebol Os Belenenses. O pai, Virgílio Paula, era médico da Presidência (mas também dos pobres de Belém, que tratava gratuitamente) e dirigente da Federação Portuguesa de Futebol. Nessa qualidade, assistiu aos Jogos Olímpicos de Berlim de 1936 – e um dos grandes desgostos da minha avó foi não ter podido acompanhá-lo nessa viagem.

Naqueles tempos, grande parte da educação era feita em casa, e a minha avó e as suas duas irmãs tiveram uma preceptora francesa, razão pela qual carregava nos R e falava francês na perfeição. Mais tarde, quando já frequentava a escola, uma doença obrigou-a a passar meses presa à cama, impedindo-a de assistir às aulas, o que não a impediu de passar nos exames com distinção.

Queria seguir Medicina, mas o pai achava que não era carreira para uma senhora, por isso aconselhou-a a ir para Letras, uma ocupação menos exigente – “letras são tretas”, dizia ele. Como aluna excepcional que era, acabou por atrair a atenção dos professores. Um deles foi Vitorino Nemésio, com quem conviveu até à sua morte. Outro era António José Saraiva, o meu avô. Casaram-se de rompante e tiveram três filhos mas, dados os seus feitios incompatíveis, a separação tornou-se inevitável.

Enquanto o meu avô era aéreo e desprendido, a minha avó era extremamente cuidadosa, nomeadamente com os seus pertences. Tinha em sua casa muitas antiguidades impecavelmente conservadas e cuja limpeza não confiava a mãos alheias. Essa preocupação também se estendia a objectos mais prosaicos, como presentes que não chegava a tirar do embrulho, para poder preservá-los tal e qual como os tinha recebido.

Ao contrário de muitos que aguardam ansiosamente pela reforma, a minha avó teve sempre um enorme desgosto por não poder continuar a trabalhar como professora. Orgulhava-se de nunca ter mandado um aluno para a rua e gostava de contar que, numa época de maior contestação à autoridade, houve um que baixou as calças, deixando à vista as partes íntimas. “Eu tive três filhos, por isso já vi homens nus. Não me choca nada”, disse-lhe. Ele não teve outro remédio se não voltar a vestir as calças. Nas suas aulas de português na escola secundária de Linda-a-Velha recitava de cor estrofes inteiras d'Os Lusíadas. De facto, teve até muito tarde uma memória prodigiosa e, volta e meia, surpreendia-me com versos ou passagens inteiras de livros que tinha lido muitos anos ou até décadas antes e que eu depois verificava terem sido reproduzidas com exactidão.

Creio que existe um ditado africano que diz qualquer coisa como 'Um ancião moribundo é como uma biblioteca em chamas'. No caso da minha avó, isso adquiria um significado quase literal. A biblioteca ardeu, mas felizmente sobreviveram alguns livros. Um deles é uma autobiografia de que me falou algumas vezes. Tenho muita vontade de ler esse livro, porque a minha avó teve uma vida muito rica, mas sobretudo porque, depois de a ter perdido, seria uma bela forma de a reencontrar.

jose.c.saraiva@sol.pt