“Alguém disparou-me. Fez-se um vácuo na parte estática da minha consciência de mim. Tive a vaga impressão de ser uma emoção, uma reacção e um choque no fim. E corria sangue no auge”. Fernando Pessoa datou de 22 de Setembro de 1917 estas linhas de A Trincheira, uma das narrativas agora reunidas pela Assírio & Alvim sob o título A Estrada do Esquecimento e Outros Contos: 16 inéditas, quatro refixadas, e, em anexo, dois inéditos, uma variante e um conjunto de esquemas. Ana Maria Freitas, investigadora do Instituto de Estudos sobre o Modernismo (UNL), editora deste volume e do primeiro de contos do poeta (O Mendigo e Outros Contos, 2012), explica em nota introdutória que se trata de textos não finalizados, organizados a partir de autógrafos do espólio. Pedaços soltos de projectos em desenvolvimento, sinais característicos da “fragmentaridade e incompletude” pessoanas, mas reveladores de um laboratório preciso de obra a publicar.

A alguns o autor chamou “contos intelectuais”, à generalidade a investigadora atribuiu o adjectivo “estáticos”, porque servem uma teoria e neles “toda a acção é mental” – acrescento: toda a acção é trabalhada como peripécia mental. O conto titular (A Estrada do Esquecimento) é emblemático. Um soldado, integrado num grupo (é o chefe? está afinal sozinho?), rompe a noite a cavalo.

Enquanto nas narrativas policiárias se deduzem factos, nestas Pessoa investiga a imaterialidade das coisas (“uma chuva miúda, incerta, como que sem pingos, gotas, que parecia pairar no ar, andar nele, não cair”), a dificuldade de fixação do mundo externo (“Não soava vento, e o vento que não havia entrava-nos pela espinha abaixo num arrepio”). Procede a operações de focagem e desfocagem de perspectiva e contexto. Pesquisa a lucidez e a memória, a sensação individual (“Toda a minha alma era um som de água calcada e que se ouvia saltar”), desdobrada em eu ou testemunha de si mesmo ou colectiva (“O que eu pensava sabia que o pensavam os outros. Quem sabe se havia os outros. Eu sabia pensar-me colectivamente”), toda tornada drama e intelecto. Eis contos-fragmentos da impessoalidade impregnados de Pessoa, do humor à angústia transcendental; merecem ser lidos.

A Estrada do Esquecimento e Outros Contos

Fernando Pessoa

Assírio & Alvim

256 págs.

15.50 euros