O voo da águia

Na semana passada o Benfica ganhou o 34.º título nacional, repetindo o êxito da última época. Foi uma data histórica para o clube, por todas as razões e mais duas. Primeiro, porque nos últimos 30 anos nunca fora bicampeão. Depois, porque marca simbolicamente o fim de três décadas de hegemonia do futebol português por parte…

Essa hegemonia portista teve um responsável óbvio: Jorge Nuno Pinto da Costa. Foi este o homem que levou o Porto aos píncaros do futebol português e europeu. E isso fez dele um herói, tudo lhe sendo perdoado. Conquistou uma espécie de 'estatuto de impunidade'. Foi absolvido no Apito Dourado, apesar das provas concludentes que o juiz não aceitou. E os seus devaneios amorosos nunca foram objecto de reprovação nem de escárnio, mesmo depois do que disse a mulher com quem casou duas vezes – Filomena Morais – que o acusou de ordenar agressões. E do que sobre ele afirmou Carolina Salgado. Por muito menos do que isto, qualquer dirigente ou homem político cairia na desgraça. Mas os sucessos de Pinto da Costa dentro dos relvados apagavam tudo.

 Agora, esse reinado parece estar a chegar ao fim. Com 77 anos, Pinto da Costa vai ter dificuldade em recuperar a liderança do futebol português. Até porque nesta época jogou tudo por tudo – e perdeu. Arranjou um treinador novo a quem deu plenos poderes (inclusive, mandar construir uma torre para ver melhor os treinos). Fez loucuras, contratou jogadores pagos como príncipes, juntou no Dragão um plantel de luxo que ele próprio classificou como “o melhor dos últimos 30 anos”. O objectivo era claro: impedir por todos os meios que o Benfica voltasse a ser campeão. Mostrar que quem continuava a dar cartas era ele, o Rei do Norte.

E até parecia fácil. Na verdade, enquanto o Dragão se reforçava, a águia enfraquecia-se. Da Luz saíram de uma assentada sete dos seus melhores jogadores, porque era preciso arranjar dinheiro. A equipa do Benfica ficou esfacelada. Para tapar alguns buracos mais notórios, foi buscar dois futebolistas à beira da reforma, que já ninguém queria: Júlio César e Jonas.

Só que, na Luz, morava também um homem que dava pelo nome de Jesus. E que já tinha feito alguns milagres. Com esforço e talento, conseguiu transformar esses dois velhinhos em estrelas do campeonato. E fazer com um conjunto de jogadores relativamente banal uma equipa temível.

Com esta nova derrota no campeonato, anuncia-se o ocaso de Pinto da Costa. E, simultaneamente, parece ter chegado a hora de Luís Filipe Vieira. Há dois anos, depois de o Benfica ter perdido tudo em quinze dias, eu dizia a um jornalista da Benfica TV: “O Benfica só tem de aguentar. Tem-se vindo a aproximar do Porto. Se mantiver este rumo, vai ultrapassá-lo, mais dia menos dia. E Luís Filipe Vieira vai suceder naturalmente a Pinto da Costa”. Mas acrescentava: “Se Vieira ou Jesus saírem, o Benfica voltará à estaca zero”.

Deve dizer-se que, nesse Verão de 2013, Vieira foi firme como o aço. Contra os cantos de sereia, contra a opinião dos intelectuais e dos fanáticos – que fervem em pouca água e põem tudo em causa à primeira derrota -, manteve o treinador. Hoje todos lhe dão razão. Mas quantos apoiaram na altura a sua decisão? Eu (que nem sou benfiquista) e meia dúzia de maduros. Os jornalistas afectos ao Benfica, como o subdirector de A Bola, Fernando Guerra, zurziam diariamente forte e feio em Jesus, menorizavam as suas qualidades e pediam a sua cabeça. E agora: pedirão desculpa aos leitores pelo erro das suas avaliações?

Tem vindo a dizer-se que Luís Filipe Vieira quer diminuir o ordenado do treinador – e opina-se que “faz muito bem”. Porque o Benfica precisa de reduzir as despesas. Será que esta gente sabe o que é gestão? Será que sabe que as contas dos clubes resultam da diferença entre as receitas e as despesas?

Ora, quantos milhões já deu Jorge Jesus a ganhar ao Benfica? Ele estará a ganhar de mais ou de menos em função das receitas que atrai? Suponhamos que Jesus sai por não querer baixar o salário. O Benfica pode ter a sorte de arranjar um treinador com mais sucesso. Mas o mais natural é suceder o contrário, até porque depois de um líder forte segue-se normalmente um período de transição.

E se o Benfica começar a engasgar-se, começar a não ganhar jogos, o que sucederá? Certamente muitos sócios desfiliar-se-ão. O número de espectadores no Estádio da Luz diminuirá. A Benfica TV perderá assinantes. As receitas comerciais e os patrocínios cairão. A venda de camisolas também. As receitas de participações em provas internacionais reduzir-se-ão, bem como os cachets para jogos no estrangeiro. Os jogadores valorizar-se-ão menos. Ora, quanto é que tudo isto poderá valer? 100 milhões de euros? 150 milhões de euros? E quanto é que o Benfica poupará se tiver um treinador mais barato? Dois milhões de euros por ano? Valerá a pena correr esse risco? Valerá a pena correr o risco de perder 100 ou 150 milhões para poupar dois?

Recordo que na assinatura do contrato com o Benfica, que valerá oito milhões por época, o presidente da Emirates disse textualmente: “A liderança do clube e da equipa, por parte de Vieira e Jesus, também nos levaram a assinar esta parceria”. Ora, depois de o patrocinador dizer isto, na primeira época em que há patrocínio o treinador já lá não está?

Os patrocinadores – e a chamada 'nação benfiquista' – sabem que, sem Vieira e sem Jesus, o Benfica não será o mesmo. Vieira sem Jesus só foi campeão uma vez (com Trapattoni, num campeonato sem brilho) e com Jesus já foi três vezes. E Jesus, sem Vieira e sem o Benfica, nunca tinha sido campeão.

O valor do Benfica actual está nesta dupla. Quem fala no 'milionário' ordenado de Jorge Jesus não sabe fazer contas: se ele sair, o Benfica não vai ficar a ganhar – vai ficar a perder, e muito. O buraco no orçamento não vai diminuir – vai crescer assustadoramente. E a equipa voltará à apagada e vil tristeza dos tempos anteriores à sua chegada à Luz.

Escrevia há oito dias o professor de economia Ferreira Machado: “Estou seguro que se inaugurou [no futebol português] um ciclo de predomínio encarnado. É por isto que acredito ser fundamental renovar com Jorge Jesus, custe o que custar”.

Quando um clube encontra um treinador que consegue uma reviravolta tão grande como aquela que Jesus operou no Benfica, deve conservá-lo a todo o custo. Como disse com graça Ricardo Araújo Pereira, o Benfica devia assinar com Jesus um contrato por… 20 anos – até ele fazer 80.

Escrevi uma vez que Jesus tinha todas as características para ser 'o Ferguson do Benfica'. E este esteve 26 anos no cargo.

jas@sol.pt

Esta crónica foi escrita antes da transferência de Jorge Jesus para o Sporting