‘Salazar não interferiu nas obras da ponte’

         

Inaugurada a 6 de agosto de 1966, a Ponte Salazar foi a grande obra do regime. Oito anos depois, com a revolução de Abril, mudaria de nome, como o próprio presidente do Conselho havia previsto.

O sonho de uma travessia do Tejo vinha de longe. O primeiro projeto de uma ponte remonta a 1876 e houve até quem tivesse a ideia de se fazer um túnel ou um teleférico.

A história da Ponte 25 de Abril está contada no livro A Ponte Inevitável (ed. Guerra & Paz), de Luís F. Rodrigues, que tentou fazer “uma biografia” daquela estrutura. O SOL conversou com o autor nas Docas de Alcântara, com o zumbido da ponte em ruído de fundo.

Começaria pela ‘pré-história da ponte’. Como era feita a travessia?

Vamos remontar a quando?

Por exemplo, a quando o Rei D. Carlos ia caçar a Vila Viçosa.

A travessia fazia-se essencialmente de barco. O Tejo é um rio de pontes tardias. As primeiras pontes sobre o rio – em território português – só começaram a aparecer em meados do século XIX, através da ferrovia. Aliás, a ferrovia foi o grande motor do aparecimento de pontes no Tejo.

E antes, nunca houve nada?

Temos a ideia de que havia alguma coisa, que os cavaleiros medievais atravessavam o rio através de pontes rudimentares, mas não. De facto não havia pontes no Tejo. Era sobretudo a margem Norte do Tejo que concentrava a população, portanto não havia uma grande necessidade de fazer a ligação.

O Porto recebe a sua primeira grande ponte em 1877, a Maria Pia. O que explica este atraso de 90 anos da capital? O tamanho do vão a cobrir ou houve outros fatores?

Essencialmente, a distância entre as margens. Curiosamente, a primeira ponte suspensa foi no Porto, a D. Maria II. Mas era uma ponte rudimentar e não resistiu muito às vicissitudes, de deterioração dos materiais, da técnica construtiva. Não vingou. No Tejo, a distância mais curta entre as margens é esta – 2 km. Ora, só o sucesso da ponte Golden Gate permite sonhar com uma ponte deste género em Lisboa.

Não era possível fazer uma ponte tradicional?

Com as técnicas rudimentares de construção de pontes em arco não era possível equacionar distâncias tão grandes sem haver interrupções que comprometessem a circulação fluvial. Veja-se o caso de uma ponte ferroviária entre o Barreiro e o Seixal: a distância entre os pilares da ponte era curta e a ponte também era muito baixa, o que fez com que um barco batesse na estrutura e a ponte caísse.

Quando  é  que  a  necessidade  de fazer  a  travessia  do Tejo  através de  uma  ponte  se  tornou  mais  premente?

A pressão urbanística na Margem Sul aumentou a partir da Segunda Guerra. A ponte acentuou o fenómeno da explosão urbanística, mas ele já tinha começado muito antes. A ponte de Vila Franca de Xira, que tinha sido inaugurada em 1951, não correspondia às necessidades que a área metropolitana de Lisboa começava a impor.

Já havia projetos anteriores?

Sim. O primeiro projeto, de 1876, previa a ligação entre o Montijo e o Beato e tinha uma vocação essencialmente ferroviária. Previa uma ligação entre Portugal e Espanha e que se pretendia articular com o porto de Lisboa: serviria essencialmente para o fluxo de mercadorias, através do barco e da ferrovia. A partir de finais dos anos 40, princípio dos 50, a área metropolitana de Lisboa começou a densificar e aquilo que era uma necessidade essencial de cariz ferroviário e nacional passou a ser uma necessidade rodoviária e metropolitana, para corresponder a fluxos pendulares casa-trabalho entre os habitantes das duas margens.

Nessa altura uso de carro já era generalizado?

Sim. Quando foi a inauguração da ponte até houve um congestionamento às tantas da madrugada, portanto já havia milhares de automóveis. Em 1966, existiam cerca de 400.000 automóveis em Portugal.

Temos a ideia de que esta ponte é uma cópia da Golden Gate, o que parece retirar-lhe algum valor. Até que ponto isso é verdade?

São ambas pontes suspensas, são ambas vermelhas e cobrem praticamente a mesma distância. Mas tudo o resto é diverso. Os problemas construtivos, as proporções e distâncias entre as torres, os cabos principais e a viga de rigidez, etc. Por exemplo, a Golden Gate tem as torres principais muito mais marcantes, mais pesadas. A ponte 25 de Abril é mais harmoniosa e elegante. Não temos de ter complexos de inferioridade nenhuns. Aliás, o próprio presidente da U.S. Steel disse qualquer coisa como: ‘Vocês têm uma ponte que pode marcar a cidade de Lisboa como a Torre Eiffel marcou Paris e a Estátua da Liberdade marcou Nova Iorque’.

Quais são as especificidades da ponte 25 de Abril?

A ponte 25 de Abril tem características técnicas únicas. O pilar sul vai a uma distância de quase 85 metros abaixo do nível médio do rio. O tabuleiro central tem aquela grelha que deixa passar o vento, que é um antecedente que vem da ponte de Mackinac [Michigan, EUA], para evitar movimentos de torção. Os desafios que se colocaram na construção também foram outros e o próprio facto de se equacionar que esta viria a ser uma ponte ferroviária introduziu alterações significativas em relação à Golden Gate.

O consórcio foi o mesmo?

Não. O da Golden Gate foi a Bethlehem Steel.

Quando se optou por este modelo, havia outras hipóteses em cima da mesa?

Abriu-se um concurso e concorreram mais três projetos. Um deles previa um modelo exclusivamente rodoviário e, se a escolha fosse estritamente rodoviária, teria vencido. Mas como a intenção era fazer uma ponte mista, optou-se por esta solução.

Por que é a ponte vermelha? Quem tomou essa decisão?

Foram consultadas várias personalidades ligadas à área da arquitetura, da engenharia, da estética. Mas o certo é que todas se deixaram influenciar pelo antece- dente mais emblemático, que era a ponte Golden Gate. E pelas semelhanças entre ambas essa cor surgiu de uma forma quase natural. Mas, inicialmente, a cor ‘laranja internacional’ da Golden Gate foi muito contestada. A Marinha norte-americana, por exemplo, queria que ela fosse preta e amarela, como as abelhas.

A estrutura metálica foi produzida em Portugal?

O aço veio dos Estados Unidos, em barcos, mas as estruturas foram montadas na Sorefame.

Qual o maior desafio que se colocou durante a construção?

Ao nível técnico foram as fundações. O procedimento foi o seguinte. Montou-se um caixão metálico que se transportou para o rio. Esse caixão metálico era composto por vários módulos, várias cápsulas, que funcionavam de forma pneumática. Construía-se o módulo em betão e ia-se afundando. Quando o módulo chegava ao fundo, então os guindastes começavam a escavar.

Para ele se enterrar.

Isto tinha água, areia, lodos, e era preciso chegar à rocha, onde se pudesse assentar as fundações. Quando os módulos em betão estivessem assentes, então iniciava-se o processo de limpeza. Isto é quase como um processo de desvitalização dentária: tudo tem de ficar oco e seco. Há uma fotografia muito gira onde se vê o diretor do Gabinete da Ponte, o eng.º Canto Moniz, ao pé de uma mangueira da qual está a sair água suja.

Que estava a bombar água do fundo?

Exatamente. Se a água viesse suja, é porque ainda havia lodo lá em baixo. Quando a água viesse limpa, era porque já se podia assentar definitivamente os módulos, betonar e criar uma estrutura sólida onde depois se começariam a erigir as torres. O que é interessante é que este processo se fez sem ninguém ir lá abaixo.

Na ponte de Brooklyn mandaram homens para escavar o leito, numa espécie de cápsula de ar.

E não podiam estar lá em baixo muito tempo porque a pressão começava a provocar hemorragias. Mas, antes de se saber o mal que isso fazia, havia excursões turísticas lá abaixo! O método utilizado aqui também permitiu poupar vidas humanas.

Quantas pessoas morreram na construção da ponte sobre o Tejo?

Não morreram tantas como às vezes se pensa. Os regulamentos de segurança eram os norte-americanos. Construímos uma estrutura baseada nas técnicas mais modernas que se utilizavam à época. Curiosamente, não foi na construção das fundações que morreram mais pessoas, nem na própria ponte, mas nas margens. Por exemplo, em acidentes de automóvel ou com gruas, ou pessoas que foram atropeladas por comboios. Aquilo que eu contabilizei foram onze vítimas.

Muito menos do que as esperadas, não é?

O próprio diretor do Gabinete da Ponte previa que morressem 60 pessoas nesta construção. Era uma por cada 30 mil contos de obra. Portanto as tais 11 mortes foram um sucesso para a época. Nós temos a ideia de que o regime escondia o número de mortos para não criar descontentamento ou preocupação. Na realidade, o regime não quis esconder nada, porque até colocou o nome das pessoas que tinham morrido numa lápide comemorativa na amarração norte.

É verdade que a ponte foi paga a pronto?

Não. A ponte foi financiada com um empréstimo essencialmente norte-americano e seria paga ao fim de 20 anos, se não me engano. Essa foi uma ideia de Marcello Caetano. Quando incluiu a verba para a ponte no II Plano de Fomento, foi confrontado com a objeção do Ministério das Finanças: ‘Não há possibilidade de incluir a ponte no Plano de Fomento, corte lá isso’. Então o Marcello Caetano sugeriu recorrer a um empréstimo e pagar a prestações. Se assim não fosse, não sei até que ponto a ponte teria sido construída.

Em Portugal temos a tradição de as obras públicas derraparem. Também foi o caso da ponte?

Não. Havia muito rigor, não só da parte dos americanos como do próprio Ministério das Obras Públicas, liderado pelo eng.º Arantes e Oliveira, e do Gabinete da Ponte Sobre o Tejo, liderado pelo eng.º Canto Moniz. Canto Moniz era um técnico muito rigoroso, extremamente focado neste empreendimento e não permitia veleidades. Os engenheiros norte-americanos alinhavam pelo mesmo diapasão. Temos a ideia da ponte como um empreendimento essencialmente político…

Como uma obra do regime.

Foi uma grande obra do regime, é verdade, mas foi deixada ao cuidado dos engenheiros, não houve interferências políticas. E o sucesso da obra deve-se muito a isso. Salazar foi uma figura ausente na construção da ponte, deixou os técnicos trabalhar. E isso é mérito dele. Ao contrário do que se possa pensar, ele não andava sempre a vigiar.

Dizemos que a ponte foi feita pela United States Steel. Não existe uma figura a quem possamos atribuir a autoria?

Uma obra desta complexidade tem sempre vários técnicos a trabalhar nela. Neste caso, o autor do projeto é uma empresa americana, a Steinman, Boynton, Gronquist & London. Foram eles que idealizaram o design estrutural da ponte. Mas podemos dizer que o engenheiro responsável pela condução do projeto da ponte a nível de engenharia foi Ray Boynton. A ponte 25 de Abril foi essencialmente uma obra de Ray Boynton.

Temos alguma ideia de até quando a ponte vai durar?

A ponte de Brooklyn [inaugurada em 1883] ainda está a funcionar. Se a ponte 25 de Abril for bem mantida, também terá uma grande longevidade. Mas para isso é preciso que sejam substituídos os elementos que estiverem degradados. É como aquela história do barco de Teseu, que quando chega ao fim da viagem já não é o mesmo porque foram-se mudando as peças à medida que o barco ia sendo reparado no caminho.

Que tipo de manutenção tem de se fazer?

A pintura tem de ser constante para a proteger da corrosão, que é o principal inimigo. E há outros procedimentos. Ainda há dias uma pessoa que trabalha na ponte me disse que iam substituir uns quantos parafusos. Provavelmente vão fora, o que é uma pena, porque podiam ser vendidos como recordações. Infelizmente não sabemos fazer esse marketing.

Salazar opôs-se a que se desse o seu nome à ponte e disse mesmo “o meu nome ainda há de ser retirado”, o que acabou por acontecer. A mudança para ponte 25 de Abril pode ser considerada uma ironia da História?

A História está cheia de ironias. Mas funcionam para os dois lados. Se for ao Cais das Colunas, na Praça do Comércio, vai ver que Salazar e Carmona têm os seus nomes gravados nas colunas, que são uma obra do Marquês de Pombal! Ou seja, temos a ideia de que o 25 de Abril se apropriou indevidamente de uma obra do regime de Salazar mas essa apropriação tem antecedentes no próprio regime. Podemos dizer que todo o esforço, todo o empenho para a ponte veio do regime de Salazar. Mas o próprio Salazar achava que atribuir o nome de uma personalidade a uma obra pública era demagogia e populismo. As pessoas concentram-se demasiado em questões de ideologia política, quando deviam procurar conhecer melhor a história, a engenharia, a economia ou a estética da ponte. Como se o facto de se chamar Ponte Salazar ou Ponte 25 de Abril retirasse ou aumentasse o mérito de uma estrutura destas.

Sei que nunca subiu às torres. Ainda tem a ambição de ver a ponte lá de cima?

Pelo que as pessoas que estiveram lá em cima me contaram, é uma sensação única. Provavelmente hei-de experimentá-la, mas só quando a curiosidade for maior do que as vertigens.

jose.c.saraiva@sol.pt

Fotografia de Diana Tinoco