Manual de funcionamento da geringonça

     

A história da geringonça não se fez sem sobressaltos. Como qualquer mecanismo complexo, houve alturas nestes seis meses de governação à esquerda em que a engrenagem se engasgou e saltaram alguns parafusos. Até agora, como disse António Costa, “é geringonça mas funciona”. Para a frente, é difícil saber o que acontecerá, mas o seu prazo de validade parece hoje maior do que quando o Governo tomou posse – o que até Passos Coelho já reconheceu. A próxima prova de fogo deverá estar na preparação do Orçamento do Estado para 2017.

Denominador mínimo comum

Os acordos à esquerda são o denominador mínimo comum que serve de cimento à aliança improvável entre PS, BE, PCP e PEV. A regra adotada é simples e tem sido várias vezes enunciada por António Costa: os partidos da esquerda não concordam em tudo, mas respeitam os princípios que ficaram nesses documentos.

Esta argumentação foi essencial na discussão do Programa de Estabilidade, um documento que BE e PCP nunca poderiam apoiar ou subscrever. Bastou que fossem respeitadas as linhas vermelhas definidas nos acordos – nomeadamente, não haver cortes de salários e pensões e não se mexer no IVA dos bens essenciais.

Sobressaltos

Encontrar um ponto comum sólido no acordo não isenta de momentos de tensão uma relação que é feita de negociações contínuas. O episódio que melhor ilustra isso é o da votação do Orçamento Retificativo necessário para a resolução do Banif, em dezembro. BE, PCP e PEV não tinham condições políticas para aprovar o documento que poria em prática uma solução que condenavam e consideravam ter custos para os contribuintes. E foi preciso recorrer à abstenção do PSD para fazer passar o Retificativo.

Até agora, foi a única vez em que o bloco central funcionou. Mas ficou claro que o PS pode-se mover em geometria variável. O problema é que à direita há cada vez menos espaço para estas aproximações, com PSD e CDS a endurecerem a oposição.

Areia na engrenagem

O verão promete ser quente para a geringonça. António Costa já teve de admitir que podem ser necessárias mais medidas de austeridade, se os números da execução orçamental revelarem uma derrapagem. À medida que o ano avança e se os números do crescimento continuarem a estar abaixo das expectativas, aumenta a probabilidade de recorrer a mais cortes. E tudo isso vai fazer da preparação do Orçamento para 2017 um momento tenso. BE e PCP já deixaram claro que gostariam de ver Costa ser mais duro a fazer frente a Bruxelas, mas o primeiro-ministro garante que não vai pôr em causa os compromissos assumidos. Resta saber por quanto tempo vai conseguir esta quadratura do círculo, de manter acordos à esquerda e cumprir as regras europeias.

Válvulas de escape

Se António Costa tivesse um cognome como os reis, seria com certeza ‘o negociador’. O primeiro-ministro tem tido o princípio de nunca começar uma discussão com um ‘não’. Costa está sempre disponível para ouvir e introduziu no acordo com o BE uma fórmula que lhe permite adiar dissabores: a dos grupos de trabalho para estudar medidas concretas. Foi para aí que foi remetida a questão que mais divide o PS dos partidos à sua esquerda, a da renegociação da dívida.

O primeiro-ministro já deixou claro que não quer tomar a iniciativa na Europa de pedir uma renegociação, preferindo esperar pela ‘boleia’ de países com mais peso, como Itália, Espanha ou França. Entretanto, um grupo formado por bloquistas e socialistas dedica-se a estudar soluções possíveis, ganhando tempo para definir uma solução sobre o assunto.

A incógnita

Mesmo que o Orçamento para 2017 seja aprovado sem sobressalto, esse é um ano que não será fácil. A realização de eleições autárquicas vai fazer com que cada um dos partidos da esquerda – particularmente o PCP, por ter no PS o principal rival no poder local – se tenha de demarcar e falar para o seu eleitorado. A juntar a isso, há a ideia – ainda que desmentida por Passos Coelho – de que um mau resultado autárquico do PSD pode trazer mudanças na liderança social-democrata.

A somar a isto, há um Presidente da República que se tem mostrado particularmente ativo e que já deu sinais – sobretudo na Educação, com os exames e os contratos de associação – de estar disponível para ser um agente político ativo como não é costume ver-se em Belém. Tudo isso faz com que haja incógnitas políticas que podem abalar a estabilidade da geringonça.

A máquina oleada

Na moção que vai levar ao Congresso do PS, em junho, António Costa explica que são os acordos escritos que fazem da solução de governação de esquerda algo mais sólido do que anteriores governos minoritários, chegando mesmo a frisar que o seu horizonte é o da legislatura.

Essa solidez tem-se visto nos debates parlamentares, onde muitas vezes parecem coreografadas as intervenções à esquerda. Esta semana, houve um exemplo disso: o PCP reclamou “um tribunal por concelho” e minutos depois a ministra da Justiça anunciou que em breve haverá boas notícias sobre o mapa judiciário.

Não foi a primeira vez. Num debate sobre o Programa Nacional de Reformas, António Costa brincou, numa resposta a Catarina Martins que serviu para anunciar o aumento de investimento público na formação: “A pergunta até parece combinada”.

Esta semana, a crise em torno dos contratos de associação voltou a mostrar uma máquina afinada. No Facebook, socialistas e bloquistas fizeram uma defesa cerrada do Governo. E no Parlamento o PCP juntou-se ao coro de defensores da política do ministro da Educação.