Cavaco e Marcelo. Duas faces de moedas diferentes

Casaram aos 24 e têm ambos dois filhos. Também partilharam o PSD. De resto, as sagas são bem distintas. Pelos vistos, as Presidências também o serão

Não seria exato fazer um contraste entre o percurso de Aníbal Cavaco Silva e Marcelo Rebelo de Sousa. A biografia política é distinta e de coincidência só contemporânea. A biografia das personalidades é mesmo quase oposta. Na biografia profissional encontram-se a meio caminho: um professor universitário de Economia, o outro professor universitário de Direito.

O que importa procurar distinguir são os mandatos de ambos à frente da Presidência da República e como se podem influenciar daqui por diante.

Marcelo celebrou recentemente o primeiro aniversário depois de uma maioria absoluta à primeira volta. Cavaco Silva lança hoje as suas memórias de uma década como chefe de Estado. Um está no começo da estadia em Belém, o outro está no começo de uma pós-Presidência. Se há alguma dúvida de que o estilo interventivo de Marcelo Rebelo de Sousa dure cinco anos – ou mesmo os dez –, não há grandes hesitações em afirmar que a postura reservada de Aníbal Cavaco Silva se manterá.

Oficialmente, aproxima-se e até se compara. Passos Coelho, que foi primeiro-ministro sempre sob a magistratura de Cavaco Silva, considerou em dezembro que Marcelo, “no essencial, faz o mesmo” que Cavaco, recordando os tempos de cooperação estratégica entre o executivo de José Sócrates e o Palácio de Belém. Mas, já aí, Passos referia estilos “diferentes”.

Se esses estilos podem levar a Presidências diferentes, Nuno Morais Sarmento, veterano do Partido Social Democrata, de que ambos os presidentes são membros de longa data, afirmou ao i: “Personalidades tão diferentes resultarão, naturalmente, num exercício de mandatos presidenciais diferentes.”

Marcelo, o soarista ou o anti-cavaquista?

Um barão do Partido Socialista, que preferiu reservar-se ao anonimato, apontou ao i que “Marcelo quis seguir uma linha próxima da de Mário Soares, com os poderes presidenciais sempre ao lado do povo, com a popularidade como autoridade. Mas não pode esquecer que Soares tinha algo que ele não tem: uma influência enorme dentro do PS”. Sobre o aparente apadrinhamento de Marcelo ao governo socialista liderado por António Costa, a mesma fonte conclui que “eles podem beneficiar da mesma popularidade, mas não partilham os mesmos méritos porque o Presidente não se pode apropriar dos resultados do primeiro-ministro”.

Arons de Carvalho, histórico dirigente do PS e também escutado pelo i, não segue a tese de que Marcelo esteja a desenvolver uma presidência “soarista”.

“O dr. Mário Soares não era tão ativo nem tão permanentemente objeto de notícia. Não surgia tantas vezes no espaço público. Nessa matéria, [Marcelo Rebelo de Sousa] é incomparável”, esclarece Arons, também ele professor universitário.

Centeno nas mãos do presidente?

Um experiente parlamentar social-democrata disse também ao i que “não veríamos tanto envolvimento numa questão como a dos sms de um ministro das Finanças [Mário Centeno] com Cavaco, que estaria mais resguardado simplesmente pelo facto de que teria falado menos vezes sobre o assunto”. “É óbvio que isso tem reflexos na capacidade de influência a prazo…”, adverte o deputado do PSD.

Na polémica das mensagens telefónicas entre Centeno e António Domingues, Marcelo não conseguiu agradar a todos, pelo menos a todos os partidos.

Ao escrever, após receber o ministro, que aceitava a posição de confiança que Costa nele depositava, “atendendo ao interesse nacional, em termos de estabilidade financeira”, o Presidente poderá ter mantido os mercados estáticos, mas o executivo de Costa em rebuliço.

Ontem, em reação a esse desconforto já público dos socialistas, Marcelo afirmou: “O Presidente da República tem de definir a sua posição a pensar em Portugal e nos portugueses. E, portanto, umas vezes desagrada a um partido, outras vezes desagrada a outro partido, mas o fundamental é que não desagrade aos portugueses naquilo que é fundamental para eles, e é essa a função do Presidente da República.” Povo primeiro, partidos depois.

“Também não sei se isso aconteceria com Cavaco. Marcelo está a pôr o destino de Centeno nas suas mãos e Cavaco, como Presidente, deixou sempre essa gestão para os primeiros-ministros, talvez por já ter sido primeiro-ministro durante dez anos”, termina o mesmo dirigente social-democrata ao i.

O filho do regime e o filho do sr. Teodoro

Partilham o mesmo partido, o PPD/PSD, a idade com que celebraram matrimónio – com 24 anos de idade – e o número de filhos, dois. No entanto, as sagas e os berços divergem. E logo em data.

Cavaco, mais velho, nasceu no ano em que despontou a ii Guerra Mundial, em 1939. Marcelo, já em ‘48, no ano em que começou outra guerra, a Fria.

Aníbal Cavaco Silva é algarvio, – de Boliqueime, mais precisamente – e de origens humildes. O percurso é académico, com doutoramento em Economia na Universidade de York, mas a pulso. O pai, Teodoro, era comerciante.

Marcelo é da capital e filho de um político do Estado Novo.

Marcello Caetano não é, contrariamente ao muito dito, seu padrinho, mas foi o mais tarde sucessor de Oliveira Salazar que deu boleia à mãe de Marcelo até à maternidade. Este estudou Direito na Clássica, onde viria a consagrar-se também como professor.

Depois do 25 de Abril é eleito deputado à Assembleia Constituinte e também jornalista, chegando a diretor do “Expresso”. Cavaco vai para o Banco de Portugal. Ambos continuam a dar aulas; um nas contas, outro nas leis.

Como governantes, Cavaco Silva foi ministro das Finanças de Francisco Sá Carneiro e Marcelo Rebelo de Sousa foi secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros de Pinto Balsemão.

Cavaco viria a liderar de seguida, a partir de 85, o Partido Social Democrata, sendo autor de duas maiorias absolutas consecutivas como primeiro-ministro – um feito por igualar na iii República.

Marcelo foi líder, mas mais tarde, na segunda metade dos anos 90, e nunca governou. Foi líder da oposição aos governos minoritários do eng.o António Guterres, de quem era (e é) amigo, criando pontes e viabilizando Orçamentos do Estado. Acabou por sair da São Caetano à Lapa depois de uma quezília com o CDS de Paulo Portas. Veio Durão Barroso, que ainda perdeu umas eleições legislativas para Guterres antes de rumar a São Bento.

Cavaco teve o “Cavaquistão”, que lhe deu maiorias com que qualquer partido do centrão hoje só sonha. Marcelo conquistou o país, mas já como Presidente, depois de dez anos de televisão semanal com os portugueses.

Em Belém, as divergências já foram citadas.

O capital… E ideologicamente? No final da década de Abril, um Marcelo mais revolucionário escrevia: “Este período é marcado pela jogada do grande capital português (e estrangeiro) de apostar numa democracia burguesa do tipo ocidental.” Depois, durante o bloco central, fez pressão para a direita com a corrente Nova Esperança, da qual também eram membros Durão Barroso, José Miguel Júdice e Santana Lopes. Hoje está um apoiante da “economia social de mercado”.

Cavaco, que de críticos a amigos tem a teimosia como supremo adjetivo, foi menos camaleónico. Governou keynesiano e pode dizer-se que keynesiano presidiu.