Viver para Contar: Burrocracia

Regressei à Loja do Cidadão, palmilhando de novo o caminho à chuva, e lá chegado dirigi-me ao guichet onde fora atendido. Mas um novo contratempo me esperava.

A burrocracia é necessária: sem ela, a sociedade não poderia funcionar. E a burocracia tem de ser exigente – para evitar fraudes e outros atropelos à lei. O problema é que, a partir de certa altura, a burocracia deixa de ser um meio para se tornar um fim em si própria. É dela que os burocratas se alimentam. O seu poder passa exatamente por fazerem a vida negra aos cidadãos. Sem isso, a sua importância seria nula.

Bem sei que nem todos os burocratas são assim. Mas muitos, mesmo sem terem consciência disso, são como grãos de areia no funcionamento da máquina administrativa, complicando a resolução dos problemas e contribuindo para o atraso do país.

Recentemente tive de tratar de um assunto na Câmara de Cascais. Era a construção de um muro limítrofe de um terreno urbano. Um muro exatamente igual ao que já existia num terreno contíguo, pelo que não levantava qualquer problema. Mesmo assim, o projeto teve de ser assinado por um arquiteto.

Fui então entregar na Loja do Cidadão de Cascais, há cerca de um mês, o projeto do muro e os demais elementos exigidos.

Os processos estão muito modernizados, e toda a documentação encontrava-se numa minúscula pen. Depois da espera normal, fui atendido por uma funcionária prestável e simpática, que meteu a pen no seu computador e confirmou que estava tudo correto.

As coisas pareciam correr no melhor dos mundos. A seguir, a senhora pediu-me o Cartão de Cidadão, ao mesmo tempo que me ia informando que, às vezes, o mesmo bloqueava e era necessário um código para resolver o problema. «Um código?», estranhei. «Sim, um código que consta da carta que lhe foi enviada para levantar o cartão». «Mas eu não faço ideia de onde pára essa carta. Devo tê-la deitado fora. E agora?». «Se assim foi, terá de tirar outro Cartão de Cidadão…».

Fiquei para morrer! Mas a senhora meteu o cartão num aparelho e concluiu: «Estamos com sorte! Parece que está desbloqueado». Sosseguei.

Quando terminou o preenchimento dos documentos no computador, a funcionária pediu-me de novo o Cartão de Cidadão para concluir o processo. «Olha, agora já não dá. Está mesmo bloqueado!», lamentou. Pedi-lhe para insistir, mas era inútil. Telefonei então à minha mulher, perguntando-lhe se por acaso se lembrava da dita carta. E, para minha surpresa, lembrava-se! Mais: sabia onde a carta estava! Lá me deu então o código.

«E agora?» – perguntei à diligente funcionária. «Agora, tem de ir à Conservatória, que fica no edifício do Tribunal, e com o código pede para desbloquearem o cartão». «Pode ir-se a pé?» – perguntei, para não ter de tirar o carro que estava bem arrumado. «Pode, o problema é o bebé…». Disse isto apontando para o carrinho de bebé onde estava um filho do meu filho mais novo, que me acompanhava nesta diligência. Adiantei que o bebé ficaria com o pai, que eu iria sozinho, e a senhora explicou-me o trajeto que devia seguir.

Meti pés ao caminho. A meio do percurso, porém, estive quase a desistir: percebi que o Tribunal ficava bastante mais longe do que eu supunha, e ainda por cima começou a chover. ‘Continuo a pé ou volto para trás e vou buscar o carro?’ – interroguei-me. Decidi continuar.

Finalmente cheguei à Conservatória. Na porta de uma sala estava um papel que dizia «Cartão de Cidadão» – e entrei. Tirei uma senha, esperei, mas verifiquei que os números constantes de um placard preso à parede não avançavam. Perguntei então a uma das funcionárias se era ali que se tratava do meu assunto. «Não, aqui é por marcação. Tem de ir à sala ao lado». Lá fui. Tirei outra senha. Quando chegou a minha vez, expus o problema, dei o cartão e o código, e expliquei: «Na Loja do Cidadão disseram-me que está bloqueado». «E qual é o código de desbloqueio?». «Código de desbloqueio? Não sei. Só tenho o código do cartão…». «Mas nós precisamos do código de desbloqueio. Senão, nada feito». Desesperado, voltei a telefonar à minha mulher, que já não estava em casa. ‘E agora?’ – pensei. Mas por sorte ela tinha levado consigo o papel, prevendo esta possibilidade…

Como não percebia bem o que a funcionária pretendia, passei-lhe o telemóvel e pu-la a falar diretamente com a minha mulher. A senhora podia muito bem ter recusado, mas não: acedeu simpaticamente. E o código de desbloqueio lá apareceu. Só que, uns segundos depois, ouço a senhora dizer: «Afinal, o cartão não está bloqueado. A assinatura é que está inválida». ‘Meus Deus! Que mais me irá acontecer?’, foi a minha reação silenciosa. Mas a senhora rematou, depois de uma pausa: «Mas nós resolvemos o problema». Uff!

Regressei então à Loja do Cidadão, palmilhando de novo o caminho à chuva, e lá chegado dirigi-me ao guichet onde estava a funcionária que me atendera. Mas um novo contratempo me esperava: a senhora estava de pé e já tinha fechado o computador! Explicou-se: «Estou no fim do meu horário de trabalho e já encerrei tudo». «E agora?», perguntei-lhe desanimado. «Agora, não sei…». Mas nesta altura uma colega saiu em meu auxílio – e apontando para outro guichet disse à primeira: «Vai pedir à Deolinda [nome suposto]». Ela dirigiu-se à Deolinda, explicou-lhe o meu caso, a outra recuperou os dados no seu computador, meteu o meu Cartão de Cidadão (com a assinatura já válida) numa ranhura e concluiu o processo!

Isto é tão complicado. Supostamente, toda esta tecnologia, a começar pelo Cartão de Cidadão, fez-se para simplificar as coisas. Mas às vezes ainda as complica mais», comentei eu por fim. «Pois é, a nós parece-nos o mesmo…», respondeu a funcionária.

No meio da burocracia e do arsenal tecnológico, acabou por ser a boa vontade das funcionárias, quer na Loja quer na Conservatória, que permitiu resolver as coisas. Como no passado…