Arlindo Caldeira. ‘Havia senhores que engravidavam as escravas e vendiam os seus próprios filhos’

Natural do Alentejo e investigador do Centro de História de Além-Mar, Arlindo Caldeira tem dedicado os últimos anos ao estudo da escravatura em Portugal. «O meu interesse começou pela ilha de S. Tomé e pelas ilhas do Golfo da Guiné e depois foi-se alargando a Angola. Este interesse levou a que a questão do tráfico…

O comércio negreiro português no Atlântico durante os séculos XV a XIX. Ali descrevia, por exemplo, as condições «apocalípticas» em que os escravos viajavam a bordo dos navios negreiros. Agora acaba de lançar Escravos em Portugal. Das origens ao século XIX (Esfera dos Livros), onde, além de tratar a questão do ponto de vista da História, revela episódios individuais com abundância de pormenores. A propósito deste livro, conversámos com o historiador na Biblioteca Nacional, o seu local de estudo de eleição.

Até onde ia o controlo do senhor sobre o seu escravo? Tinha poder de vida e de morte sobre ele?

Não. Na vida não mandava… legalmente. Aliás, o indivíduo que matasse um escravo deveria ser condenado à morte, ainda que não se conheça nenhum caso. Mas é a única coisa que escapa ao poder dos senhores. Fora isso têm sobre o escravo todos os direitos: impõem-lhe local de residência, impõem-lhe profissão, impõem a religião, permitem ou não permitem que constitua família… São donos do destino, de tudo, e é isso que caracteriza verdadeiramente o escravo, a sua despersonificação. Ele só é considerado uma pessoa quando se torna cristão.

Quando falamos de escravos, vêm-nos ao pensamento imagens de correntes, grilhões, argolas de ferro. Qual era o grau de liberdade que o escravo podia gozar? Ele seguramente não estaria sempre acorrentado…

Não estava sempre nem sequer maioritariamente. Em Portugal a maioria dos escravos são escravos urbanos e muitos escravos urbanos têm uma liberdade de movimentos relativamente grande. A imensa maioria não está presa e tem um quotidiano muito semelhante ao dos criados. A única coisa que não é igual…

É que não recebe salário?

Não recebe salário e é escravo. Só o facto de ter esta condição social é uma marca terrível. Quando falei do poder do senhor não mencionei uma coisa. O escravo pode ser vendido, comprado, herdado e até possuído por várias pessoas. Há o caso de um escravo que, por motivos de herança, tem oito proprietários. Pode ser repartido como uma propriedade qualquer. Essa é a grande diferença em relação ao criado: está completamente à mercê do seu senhor, que em qualquer momento o pode vender. E pode vender até independentemente de ele ter família. Vende-o separadamente. Na forma de tratamento, dos movimentos, etc., aí pode haver muitas semelhanças com os criados.

Havia escravos que eram mais bem tratados que outros?

Os escravos domésticos muitas vezes são considerados quase um elemento da família. No livro conto uma história de uma chinesa que é escrava de uma família de cristãos-novos e é considerada parte da família. Mesmo quando a libertam, isto é, quando lhe é dada carta de alforria, ela continua a viver com eles e vê-se que tem uma relação muito próxima com os filhos dos proprietários, e vice-versa. E quando a família foge para a Holanda ela também vai. A situação varia muito e não é pelas condições de tratamento que podemos caracterizar o escravo. O que o caracteriza é a total falta de autonomia, a despersonalização, e a possibilidade de estar sujeito a todos os abusos.

Além da carta de alforria há alguma forma de o escravo deixar de o ser?

A carta de alforria é o documento que o escravo pode apresentar a dizer ‘eu sou livre’. Como a obtinha é que variava. Não é raro que o escravo a comprasse. Havia os chamados ‘escravos de ganho’ ou ‘de soldo’, que em vez de trabalharem para o senhor eram postos a trabalhar para terceiros, na venda de rua, como pedreiros ou como descarregadores. Quase todas as atividades podiam ser preenchidas por escravos nestas condições, e esses escravos entregavam o produto do seu trabalho ao senhor. No entanto, como o senhor só lhe dava dormida, eles ficavam com uma parte do que ganhavam para a sua alimentação, e é dessa parte que alguns conseguem amealhar e comprar a liberdade. Às vezes até de maneira curiosa… há quem compre um escravo e o troque por si. [risos] É uma situação relativamente frequente, sobretudo nos escravos de ganho que conseguem casar com pessoas livres. Essas pessoas livres podem comprar os seus cônjuges.

O escravo podia ter bens?

Podia ter bens, mas o herdeiro desses bens era o senhor. Até mesmo depois de ele ser liberto, no caso de não ter herdeiros diretos, o senhor poderia ir buscar esses bens caso ele morresse. A designação escravo forro parece contraditória nos termos – ou bem que é escravo ou bem que é forro – mas há algumas nuances. É uma história que vem do direito romano, e nalguns casos a situação podia ser reversível. Algumas cartas de alforria dizem: ‘Se se portar mal, se não respeitar não sei quê, pode voltar à condição de escravo’. Quer dizer, ele continuava com a espada suspensa sobre a cabeça. A situação destes forros estava longe de ser fácil, a não ser quando se casavam e se integravam na sociedade livre. Quando não havia integração, a sobrevivência não era fácil.

Era costume os escravos serem usados para fazer tarefas mais extenuantes ou perigosas?

Tanto quanto podemos saber, a maioria dos escravos são domésticos – embora se deva entender que o trabalho doméstico na sociedade do antigo regime não era o mesmo que hoje. Era preciso ir buscar água, despejar os dejetos e o lixo em geral, acartar lenha – na época não há outro combustível -, tratar de animais, da cozinha ou do vestuário. Depois há os outros trabalhos. As chamadas calhandreiras são escravas que transportam à cabeça uma canastra em que eram metidos os bacios, e iam despejar os dejetos ao Tejo. Era um trabalho que ninguém queria fazer. Mais tarde, quando começam a faltar escravos, já no tempo de Dona Maria I, com o Pina Manique, há galegos que se encarregam desse tipo de tarefa. Mas voltando atrás: o escravo desempenha todas as tarefas. E vemos muitos a trabalhar no porto, a descarregar.

Uma espécie de estivadores?

Nesta altura chamam-lhes ‘mariolas’ – a palavra só ganha o sentido [que lhe damos hoje] posteriormente. A seguir ao terramoto sabemos também de muitos escravos a trabalhar nas obras. E há muitos escravos no campo. Dizia-se que não, que seriam poucos. Não me parece que sejam assim tão poucos. O que acontece, e isto parece-me importante, é que em nenhuma destas atividades são maioritários. Tirando casos muito raros, o número de criados é maior do que o número de escravos. Sintetizando: surgem em todas as atividades e são particularmente direcionados para tarefas mais violentas ou mais desagradáveis.

De resto, trabalham mais ou menos nas mesmas condições que os assalariados?

Tenho ideia de que trabalham mais ou menos nas mesmas condições e têm um tratamento semelhante – que não é bom. O dos criados também não é bom. São sociedades em que a sobrevivência é difícil e as condições dadas pelos patrões são em geral mínimas. E aí é tão mau para escravos como para criados. Mas volto a dizer: os criados, apesar de tudo, estão lá voluntariamente.

Será que se pode falar numa espécie de hierarquia dos escravos na sociedade, desde os mais baixos até aos da corte, que viviam em condições boas?

Não sei se é uma hierarquia, no sentido em que não há uma situação de dependência de uns em relação aos outros, a não ser em algumas atividades, como no campo, em que pode ser um escravo que dirige outros escravos, uma espécie de capataz ou de feitor. Depois há realmente diferenças muito grandes, e os escravos de corte são um exemplo dos mais privilegiados. Há mesmo uma certa proximidade entre os elementos da corte e os seus escravos. Há um escravo que tem um problema de caráter religioso (tinha deixado que o batizassem duas vezes) e falou com um terceiro, que lhe disse que isso era um pecado grave. Em regimes como aqueles, em que existe a Inquisição, o pecado torna-se crime. Então ele ficou muito assustado e foi ao Paço contar isso. A quem? Ao Rei! E o Rei mandou o seu confessor tratar do assunto. Há aqui uma proximidade quase suspeita… Aliás, sabemos que o D. Pedro II tinha uma especial predileção pelas suas escravas negras.

Era comum haver esse tipo de relações entre escravos e senhores?

Num número provavelmente mais elevado do que os pensamos, o escravo, e sobretudo a escrava, é um bem sexual. Muitas vezes, além das tarefas domésticas, é-lhe exigido esse serviço sexual prestado aos senhores – e aos filhos, também. Se nos lembrarmos de aqui há 50, 60 ou 100 anos, as criadas acabaram por manter um pouco essa situação de dependência que é aproveitada pelos senhores sem limites. Isto é uma violência enorme em relação à escrava, que tinha muito poucas hipóteses de recusar.

Não pode também tirar daí algum benefício?

Pode. Se se tornar a preferida, há nitidamente uma melhoria de estatuto, e pelo menos pode garantir que não é vendida e passará a ter outras atenções. Em compensação, muitas destas escravas começam a ser violentamente hostilizadas pelas senhoras, por razões de ciúmes. Há um secretário de D. Manuel, e depois de D. João II – o secretário é uma espécie de primeiro-ministro -, que parece que tinha uma atração pelas suas escravas. Uma delas aparece grávida e a mulher arranjou maneira de a despachar para Espanha. Passados três ou quatro anos, há um espanhol que escreve ao secretário de Estado a dizer: ‘Tenho aqui uma escrava que tem um filho escravo, branco que todos os portugueses que aqui passam dizem que é a cara do senhor secretário de Estado [risos].

Nesses casos em que a escrava engravida, o senhor, que era pai da criança, permite que o seu filho seja escravo?

Há de tudo. Há senhores que vão fazer todos os possíveis para que o filho não nasça. Nascendo, que seja ocultado. Muitas vezes vai ser criado longe, outras vezes é posto na roda dos postos, em que as crianças eram depositadas anonimamente e recolhidas no convento. Pode acontecer ainda pior, que é o senhor vender os seus próprios filhos.

E não há situações em que reconhece o filho?

Alguns senhores aceitam que ele continue a viver em casa e dão-lhe alforria, muitas vezes ainda antes de nascer. Só em casos muito mais raros são legitimados e tornam-se herdeiros. Há um indivíduo de uma família de cristãos-novos, Gomes de Elvas, que teve um filho escravo. Um dos outros filhos, dos legítimos, comprou o irmão e deu-lhe liberdade e eles depois tornaram-se sócios, ele fez uma fortuna e o Filipe II deu-lhe título de nobreza. Estes são os casos felizes. A maioria dos outros, não são tão felizes. Ainda assim há um número relativamente grande de mestiços – o que aparece nos documentos mais vezes é ‘pardo’ – que foram incorporados na família e fizeram a sua vida normal.

Estima-se que entre 5 e 8% da população possuía escravos. Isto corresponde à percentagem da população mais rica ou também podia haver pessoas da classe média que podiam ter escravos?

A não ser em locais restritos, o número de escravos nunca ultrapassou os 10%. Aliás este é sobretudo um fenómeno do Sul do Tejo. Um escravo era caro, daí que quem tinha escravos não podia ser das classes mais baixas. Por vezes diz-se que toda a gente tinha escravos. Não é verdade. É uma percentagem relativamente pequena de famílias. Isto não significa que não possam aparecer, por exemplo, vendedeiras que têm escravos ao seu serviço. Temos também alguns casos de antigos escravos que se tornaram proprietários de outros escravos. Era uma forma de ascensão social.

O homem que pagou o teatro romano de Lisboa era um escravo libertado que ascendeu socialmente e enriqueceu o suficiente para mandar fazer essa grande obra.

Em Roma isso era mais fácil. O escravo não era bem tratado, mas era considerado muito mais próximo de um igual, uma vez que qualquer pessoa podia ser escravo, por causa de dívidas ou de azares. Há uma frase do Cícero em que ele diz: ‘Aquele é tão escravo como nós somos, só teve azar’. Considerava-se que era a sorte que tinha decidido assim.

Os escravos tinham direito a tempos livres? Como os ocupavam?

Tinham. Aí a igreja teve uma importância grande. O escravo não devia trabalhar nem domingos nem dia santos de guarda, para poder cumprir as suas obrigações religiosas. Sabemos que muitos donos não lhes permitiam isso, mas ao não permitirem estavam a incorrer em pecado. Sobretudo em meios urbanos, mais controláveis, a maioria dos escravos descansava efetivamente. E não eram tão poucos dias assim: além dos 52 domingos, eram quase outros tantos feriados religiosos. Tendo tempo livre, os escravos, além de cumprirem as suas obrigações religiosas, dedicavam-se a cantos e danças claramente africanos. É uma tentativa de voltar a ser pessoa, é recuperar um bocadinho a identidade que lhe tinha sido retirada. Juntam-se em grupos, muitas vezes em casas ou na rua, e cantam e dançam à africana.

Isso era tolerado?

Há quem considere que é uma infração grave, porque ao fim e ao cabo eles estão a recuperar força e identidade. Enquanto se mantêm no uniforme que lhes foi posto, não há perigo. Agora quando eles começam a autonomizar-se…

Quando começam a ter vontade própria, não é?

É isso mesmo. O ter vontade própria é o contrário de ser escravo. Até o poder vestir-se ao seu gosto, alindar-se para ir para essas coisas, é um ato subversivo. Portanto não admira que em muitos sítios haja uma reação e muitas vezes foi proibido – ao que parece, sem efeito. A Igreja aproveitou-se disso como forma de chamar para o rebanho uma massa de novos crentes que muitas vezes controlava mal, que temia que caíssem em formas mágicas, etc. E permite que estas festas se façam no adro das igrejas e nalguns casos há grupos que entram no próprio templo cantando e dançando.

Diz-nos no seu livro que havia diversos eclesiásticos que possuíam escravos. O que a Igreja dizia sobre a escravatura foi mudando ao longo dos tempos?

Não foi. A Igreja aceitava a escravatura. Desde o início, quase desde o início do Cristianismo, o papel que a Igreja tem é de humanizar o trato, isto é, acha que os senhores têm obrigação de tratar bem o escravo e de deixá-lo cumprir as obrigações religiosas. A Igreja insistia também que os escravos podiam e deviam casar, até contra a vontade dos donos. Mas nunca põe em causa a instituição [da escravatura] e há muitos eclesiásticos que têm escravos. Muitos sacerdotes, sobretudo de província, tinham escravas que podemos suspeitar que fossem também bens sexuais. Até porque as Ordenações proibiam que tivessem barregãs [amantes] e escravas brancas, mas não diziam nada em relação a escravas negras.

Era quase consentido?

Muitos destes eclesiásticos também têm filhos. Na minha infância no Alentejo quando alguém fazia uma coisa e depois ainda queria aproveitar-se de a ter feito, embora não fosse uma coisa boa, dizia-se: ‘É como os padres das freguesias. Eles os fazem, eles os batizam’. [risos] André de Resende, o grande humanista, era cónego, mas no caso de um filho reconhece a paternidade e para com outro é de uma hostilidade tremenda. Diz que como ele nunca quis fazer bem nenhum à sua casa, quer que o vendam e para longe, para não prejudicar o jovem que ele deixa como seu herdeiro.

As escravas brancas de que falou há pouco eram portuguesas?

A maioria são escravas mouras, ou vindas de Espanha – o reino de Granada só foi conquistado em 1492 e os mouriscos mantiveram-se até à expulsão com Filipe III, em 1509 – ou do Norte de África. Mourisco é o mouro convertido. E alguns desses mouriscos são brancos. Ainda há chineses, indianos e até japoneses. Os japoneses vêm em menor número e começam a ser proibidos. D. Sebastião proíbe mesmo que sejam escravizados japoneses, e nas primeiras décadas do século XVII os portugueses são expulsos do Japão, portanto esse comércio acaba. Mas os chineses mantêm-se até ao século XVIII e os indianos também. Aliás, com os indianos há uma certa confusão, porque eles eram em tempos chamados ‘escravos índios’ e muita gente pensa que eram índios da América – não eram. Esses eram chamados ‘brasis’ e tinham uma mortalidade imensíssima. É importante dizer isto: não há uma cor dos escravos. O escravo pode ter as cores todas. Só depois é que se dá uma coisa grave, no momento em que a cor da pele passou a ser identificada com a condição social e a condição social com a cor da pele. ‘Este fulano é escravo, logo é negro. Este é negro, logo é escravo’. É aquilo a que costumamos chamar a ‘racialização da escravidão’. Quando os escravos passaram a ser quase exclusivamente africanos negros, entrou-se num caminho em que os preconceitos racistas vieram muito ao de cima.

Os negros eram muito vítimas de preconceitos?

Os europeus brancos, além de se lhes dirigirem sempre por tu, usavam aquilo a que chamavam a ‘fala de negro’. Em Elvas, há um escravo que conta que vêm ter com ele a falarem assim. Ele respondeu em ‘língua de negro’ mas quando eles se vão embora, comenta: ‘Vejam lá estes vilões, nem sabem falar e vêm aqui gozar connosco’.

Os escravos japoneses exerciam as mesmas tarefas que os outros escravos, ou eram quase uma espécie de troféus para exibir, dado o seu exotismo?

Essa é já uma ideia preconceituosa, de considerar que há uns para umas coisas e outros para outras. Os japoneses são considerados muito habilidosos. Das poucas referências que temos sobre eles é que são hábeis para qualquer atividade. No caso dos chineses, são considerados grandes cozinheiros. Muitos deles foram para as cozinhas e criaram o gosto pela cozinha chinesa ainda antes de ela se implantar [risos]. Da mesma maneira considera-se que os africanos de certas regiões são mais capazes para trabalhos violentos. Há uma certa especificidade, à partida. No caso das chinesas, todos os sinais levam a crer que muitas são importadas como bem sexual. Eram muito apreciadas e trazidas já com algum destino, muitas vezes para as famílias nobres.

No seu livro relata alguns casos terríveis. Houve algum que lhe deixasse uma impressão mais forte?

Lembro-me sempre do caso de uma Grácia, escrava do despenseiro da Inquisição de Évora. É uma mulher muito frágil, tudo leva a crer que tinha crises de epilepsia e as crises de epilepsia eram vistas apenas como maldade dela, como perrices. Como é que o despenseiro responde? Pela violência. E há uma situação que acompanhamos quase passo a passo. A Inquisição de Évora é onde hoje é a Fundação Eugénio de Almeida, e depois está o templo romano, que nessa altura servia de açougue, onde matavam os animais. Ela sai da sede da Inquisição carregada com um cortiço cheio de queijos e não aguenta. Ele vai-lhe batendo o caminho todo até que ela deixou cair o cortiço com os queijos todos.

Isso é quase um calvário.

Absolutamente. Muitas testemunhas que vêm contar o sucedido. Ele chama-lhe cadela o tempo todo e vai-lhe batendo com uma bengala enorme, e quando vê que não dá mesmo leva-a para casa. Em casa bate-lhe com uma correia com que se prendem os animais aos carros. Ela diz: ‘Eu morro, eu morro’, até que ele saiu. Passados uns minutos, a mulher foi chamá-lo a dizer que ela estava a morrer. Ele foi a correr chamar um padre – era um homem muito religioso… – para lhe dar a extrema-unção. Quando chegou, ela já tinha morrido. Sendo criado da Inquisição, a Inquisição é que lhe levantou um processo. O processo foi correndo, foram ouvidas muitas testemunhas, sobretudo este padre, e o padre disse: ‘Já conheço o que se passa. Isso são os escravos que, quando não querem trabalhar, matam-se. Deixam de respirar. Tivesse eu chegado a tempo, chegava-lhe com um pau com fogo, e veriam se ela não abria a boca’.

Como acaba o processo?

Com o homem a ser considerado inocente e a desgraçada a ser levada para o cemitério. Eu também gosto dos casos em que se recorre à magia. Há muitos escravos que, em desespero, acorrem a uma força exterior. Ainda por cima essas forças eram reconhecidas, porque se considerava que África ainda era um terreno mágico. Havia receio e os africanos podiam pô-lo ao seu serviço. Alguns tentam isso, ou comprando ou fazendo uma coisa que são as bolsas de mandinga. É uma bolsa de cabedal que tem dentro uma série de ingredientes que variam. Chamam-se assim porque vinham de um estado Mandinga, na zona da Guiné Bissau.

Há pouco falou em perrices. Eram os estratagemas ou as manhas dos escravos para não trabalharem?

Supostos!

 

E não havia mesmo?

Havia. Muitas vezes, o escravo responde dizendo imensos sacrilégios, para assustar. ‘Eu sou o Diabo!’. Isto pode paralisar o agressor. Eu conto a história de um escravo mouro, que era um grande artífice de couros e que também devia ser um aventureiro e mulherengo. Esse homem era tratado com a maior violência, apesar de ser um artista. Foi preso e quando o vieram entregar ao dono ele ficou desesperado, e então desatou aos gritos, a dizer que era judeu, para ir para a Inquisição. Eles fizeram-lhe a vontade, puseram-lhe a mão na boca para não continuar a dizer aquelas enormidades e levaram-no.

 

Preferia a Inquisição ao dono?

Sim, apesar de tudo ele considerava que era melhor a Inquisição. A Inquisição dava-lhes umas ensinadelas e voltava a entregá-los aos seus donos. Se a pessoa mostrava arrependimento e renegasse a tudo o que tinha feito, a Igreja recebia-a.

 

Há algum local onde possamos ver aquelas correntes e coleiras que eram aplicadas aos escravos?

Quando o museu de arqueologia e o de etnologia ainda estavam juntos, havia pelo menos uma vitrina com algemas e grilhões expostos. Vi recentemente num semanário [Expresso] que duas coleiras de escravos que tinham desaparecido voltaram agora a aparecer. São coleiras curiosas, aparentemente objetos com algum cuidado, alguma delicadeza. Quase parecem objetos decorativos.

Uma espécie de colar?

Uma coleira ou um colar… Quando se procura estas coisas na internet o que se vai dar é a outras coleiras e a outras escravas ligadas a práticas sadomasoquistas. É curioso que essas práticas venham ressuscitar, inclusive nos seus instrumentos, essa relação de violência.