Dinu Flamand. O poeta romeno que Lobo Antunes teve refugiado em sua casa

A amizade com Lobo Antunes mudou-lhe a vida. Viveu em casa do romancista que ainda fez uso dos seus conhecimentos de psiquiatria e ajudou Flamand a lidar com as feridas enquanto “prisioneiro de Ceausescu”. Agora, tem pela segunda vez um livro de poemas editado em Portugal, o seu melhor, diz Lobo Antunes

A poesia algumas vezes obriga a uma denúncia da própria língua em que é escrita, falando contra ela, contra a “preguiça acobardada,/ e uma medida rasa de incertezas/ onde a ilusão com tédio vai procurar migalhas”. Os versos citados são do catalão Pere Quart, mas vem à cabeça o poeta de origem romena Paul Celan, que arrastou a língua alemã para o pesadelo, forçando-a a engolir o negativo da paixão que serviu os discursos inflamados, uma retórica que se desfez de toda a razão para justificar o crime do século.

Nascido numa aldeia da Transilvânia, dois anos após o fim da guerra, em 1947, numa altura em que a Roménia resvalava para a alçada soviética, com os comunistas a tomarem o poder, Dinu Flamand atingiu a maioridade quando Nicolae Ceausescu assumiu o poder, e a opressão deste regime totalitário, mais do que ter deixado marcas na sua poesia, formou-a, respirando-se nela “uma atmosfera saturada de irrisório e grotesco”. Nos seus poemas vive uma beleza gémea da tristeza, e muitas vezes sente-se até frio lendo-os. Há o silêncio, mas este não é feito da ausência do verbo, como diz num poema, é antes a “obstinação do vazio que transborda/ sussurra”.

Flamand é tido como uma das vozes mais representativas de um país que, nas últimas gerações, tem produzido, não pelos melhores motivos, algumas dessas furiosas excepções que criam na literatura o campo de uma “paixão negativa”, a partir do qual atravessam o seu olhar pelo mundo com uma “lucidez criminosa”, para citar Cioran, outro romeno que buscou exílio em França. 

A fuga à ditadura deu-se em fevereiro de 1989, depois de Flamand ter recebido um convite para participar num congresso de escritores em Lisboa. As primeiras semanas ficou em casa de António Lobo Antunes. Tinham-se conhecido anos antes, em Lahti, na Finlândia. O romeno diz que assaltou o português com o seu entusiasmo pelos escritores da sua língua, e que este, então um principiante, ao invés de enxotá-lo, lhe deu toda a sua atenção. Lobo Antunes confirma: “ficámos amigos de infância para a vida”. Adianta que deviam ser os dois mais novos no congresso em que compareceram escritores de todo o mundo, naquele “sítio maravilhoso” onde o sol não ia deitar-se nunca, havendo luz a qualquer hora para se discutir literatura.

A amizade entre os dois ficou, passaram mais de 30 anos e, desde então, Lobo Antunes não só acolheu e apresentou Flamand a outros amigos escritores, como, pela segunda vez, tornou possível uma edição dos seus poemas nesta língua. “Sombras e Falésias”, com tradução de Corneliu Popa, é, na opinião do romancista português, o melhor livro do amigo. Antes desta edição da Guerra & Paz, vale a pena destacar a excelente antologia “Haverá Vida Antes da Morte?”, com tradução de Teresa Leitão, publicada em 2007 pelas Edições Quasi, que reunia poemas de 1983 a 2005.

Vários encontros com portugueses foram decisivos na vida de Flamand. Depois de Lobo Antunes ter tomado a iniciativa de recomendá-lo para uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, em 1985, o romeno contou numa entrevista ao “Observador” que, além de o acolher em sua casa, ainda o ajudou na adaptação à vida no exílio e à sociedade ocidental, tendo também beneficiado do seu treino enquanto psiquiatra, ajudando-o a curar as “feridas de prisioneiro de Ceausescu”. Flamand conta, na mesma entrevista, que ficou gratuitamente alojado durante meses na Casa de Portugal, na Cidade Universitária, e que foi graças às recomendações de alguns amigos lisboetas que foi acolhido no seio de um grupo de expatriados portugueses em Paris e aceite para um doutoramento na Sorbonne, apesar de não ter mais do que uma fotocópia do diploma de licenciatura – em Filologia pela Universidade Babes-Bolyai, em Cluj -, depois do documento lhe ter sido confiscado quando outro amigo português o tentava trazer de Bucareste.

Ao obter asilo político em França,  fosse enquanto jornalista fosse como poeta, Flamand vingou-se do regime que o tinha feito perder o respeito por si mesmo, e com risco para a sua família, e os filhos ainda menores, que continuavam em Bucareste e que foram alvo de ameaças, falou, transformou o medo em ódio e atacou duramente a ditadura, com a sua denúncia a ter eco em diversos países. Já enquanto tradutor, passou boa parte da vida em convívio com alguns dos principais poetas portugueses e brasileiros contemporâneos, vertendo-os para o romeno. Entre outros, Fernando Pessoa, Herberto Helder, Miguel Torga, Sophia de Mello Breyner Andresen, Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes. Mas traduziu mais autores de outras línguas; nomes como Antonio Gamoneda, Pablo Neruda, Umberto Saba, Mario Luzi, Samuel Beckett, e esses cuidados, a companhia feita a estas vozes no cruzamento de fronteiras deixou na sua própria poesia uma mágica contenção, e esse pudor que Lobo Antunes também destaca no prefácio a “Sombras e Falésias”.

Originalmente publicado em 2010, este livro constrói uma densa névoa através de imagens que avançam sobre nós e nos cercam com a sua força alusiva. É atravessado pelo luto do poeta depois da morte da mãe, não só pela sua ausência, as lembranças assaltando-o, os gestos que agora existem apenas nessa intimidade que rememora, mas igualmente porque a mãe era um anteparo contra a velhice, essa que tem agora o filho como presa, alguém que encara a eternidade “como uma imensa/ diversidade do impossível”, alguém que olha o corpo da mãe e vê como deste “já só cresce/ a sombra/ estendida ao longo da falésia/ sinal de que o teu sol se põe// e da tua alma já só cresce/ o medo// o pavor vital”.

Sendo claramente um título que se destaca na obra de Flamand, um em que sentimos o poeta “afogar a sua alma num oceano de desconsolo” (Cioran), convém avisar que a antologia publicada pela Quasi oferece uma perspectiva não só mais ampla mas menos angustiada, menos dolorosa da obra deste poeta. Sem se deter nas anotações quotidianas da morte, para as quais, de resto, a poesia contemporânea portuguesa tem feito muito por nos anestesiar, este é um livro em que mais do que encarar a morte, esta se pressente: “e tal como os surdos podem ouvir a música/ através dos seus ossos/ também nós com a escuridão sentimos/ as sombras// tornadas frio do passado”.

Mesmo se dá gosto contrariar a empáfia com que Lobo Antunes se dirige aos meros mortais, neste caso, há que reconhecer-lhe não só o ter feito muito para salvar um amigo, como um tradutor tão dedicado à poesia portuguesa, e acima de tudo um poeta que se despede assim da mãe: “o esquecimento coze nos fornos do indeciso Verão/ as primeiras ameixas/ e nas lamas jaz a sanguessuga// em redor do nevoeiro dos recém-chegados/ saem os gestos de palavras que não se deixam/ puxar para fora// os seus rostos fundem-se na luz interior/ não percebes nada e viras-te para mim/ como se o fizesses de costas// eu preparando-me para enganar o indizível/ leio ao contrário as tuas perguntas/ e ao acordar// digo:// «não te preocupes/ que eu traduzo-te/ mãe»”.