Francisco. O peregrino da esperança

Nos passeios de Fátima, no caminho por onde passou Francisco até ser recebido num santuário lotado, era impossível caminhar. Na oração na Capelinha das Aparições, as primeiras palavras que dirigiu ao país, o Papa deixou claro o sentido da visita como peregrino da paz e da esperança. «Venceremos todas as fronteiras, saindo em direção a…

Francisco. O peregrino da esperança

O Papa está quase a chegar e não dá para andar nos passeios de Fátima. De todos os lados apareceu gente, colam-se às barreiras para ver passar Francisco, empoleiram-se nos muros e nas árvores que é possível escalar. Alguns, menos, esperam nas traseiras da Casa da Senhora do Carmo, de onde saiu pouco antes o papamóvel e onde se espera que Francisco chegue antes de entrar no santuário. Há carrinhas da GNR, um forte aparato, vê-se pouco, mas é uma hipótese e isso é quanto baste. Ali está Tahani, de véu na cabeça. Destaca-se facilmente: é muçulmana entre religiosas e peregrinos com as t-shirts de grupo e coletes refletores. Aos 27 anos, já conheceu pessoalmente Francisco e tornará a ser recebida pelo Papa estes dias. 

É um dos pontos da visita que não aparece no programa. A família de seis, refugiados do Iraque hoje a viver na zona da Batalha, foi convidada pelo Vaticano para virem agora, já a viver numa casa e não num campo de acolhimento como estiveram até abril de 2016, a uma segunda audiência. Estão em Portugal há pouco mais de um ano e Tahani já vai dominando o português. «Papa uma vez, bom. Papa duas vezes, muito bom».

Para trás deixaram o muito mau da guerra, numa fuga que durou quatro anos, passou pelo Egipto e pela Libéria depois de se meterem, ela e o marido, e dois filhos pequenos, num barco com 530 pessoas. É ele que tira o telemóvel para mostrar as fotografias. Primeiro o bom: as imagens de quando foram recebidos por Francisco em Roma, eram os dois rapazes, hoje de penteado à Cristiano Ronaldo, mais pequenos. E não havia ainda o terceiro, que já nasceu cá e agora também irá conhecer Francisco. Depois o mau, a imagem do barco. O barco onde fugiram dos tiros e do medo e não um barco em abstrato. «Aqui, muito feliz», diz Tahani. E voltar um dia? «Voltar, não», continua, decidida. Com eles estão hoje os pais dela, todos a começar de novo.

Enquanto conversamos, Francisco entrará no santuário com apenas alguns minutos de atraso face ao que estava no programa, que tem sido cumprido escrupulosamente. Enquanto não chegou, a organização pediu que se treinasse o acolhimento em uníssono: «Bem-vindo peregrino da paz, bem-vindo peregrino da esperança». Foi recebido dessa forma, inclinando-se diante da imagem de Nossa Senhora de Fátima, no local onde há 100 anos havia a pequena azinheira das aparições aos pastorinhos. Quem estava diz que o silêncio foi impressionante. Só se ouviam os helicópteros. Cá fora, ficaram muitos, a ouvir ao longe ou a ver nos telemóveis – a certa altura, com tanta gente, as entradas no recinto foram fechadas. Outros já estavam decididos a ir descansar um pouco para a noite de procissão das velas e oração, quase sempre passada em branco pelos que optam por ficar até ao nascer do dia.

As primeiras palavras pensadas para dirigir aos peregrinos de Fátima vieram na forma de oração e não faltaram as referências à devoção de Fátima, aos bem-aventurados Francisco e Jacinta mas também ao tempo de hoje. «Percorreremos, assim, todas as rotas, seremos peregrinos de todos os caminhos, derrubaremos todos os muros e venceremos todas as fronteiras saindo em direção a todas as periferias, aí revelando a justiça e a paz de Deus», rezou. «Seremos, na alegria do Evangelho, a Igreja vestida de branco, da alvura branqueada no sangue o Cordeiro derramado ainda em todas as guerras que destroem o mundo em que vivemos», que facilmente pode ser interpretado com a transposição da terceira parte do segredo de Fátima – a profecia do bispo de branco assassinado depois de atravessar  uma grande cidade meia em ruínas – para as ameaças nos dias de hoje.

Francisco e Fátima: a fé global

Se a mensagem trazida por Francisco só ficará completa hoje, durante a missa e canonização dos pastorinhos, a expectativa de poder ver apenas o Papa era ontem, para muitos peregrinos, o motivo para se acotovelarem nas bermas das ruas, uns mais tranquilos do que outros.

Edward, de 79 anos, veio com a família da Irlanda. Há 15 anos que cumpre a devoção dos primeiros sábados do mês, ensinada por Lúcia depois de uma visão em Pontevedra. Durante os primeiros sábados de cinco meses seguidos, há que rezar o terço, meditar nos mistérios do rosário e ainda «fazer companhia a Nossa Senhora». E tem funcionado?, perguntamos. «Já funcionou aqui», atira o irlandês. A neta de 13 anos, que também está em Fátima, sofre de epilepsia. Já cá, teve um ataque e foi levada para o Hospital de Leiria. Teve alta a tempo de ver o Papa e conseguiram-lhe um lugar à frente. Enquanto conversamos, encontrões vindos de quem teima em continuar a passar geram o protesto de quem está à nossa frente. Levamos por tabela. «A culpa é do Papa», diz alguém com graça, para acalmar os ânimos. As histórias nunca dariam todas para contar aqui. Um grupo do Porto está divertido: são dez mulheres «e eu o caminho todo a aturá-las», diz Nelson, que já faz a peregrinação com o grupo devoto de Nossa Senhora há quatro anos e também acredita. Não vem a rezar o terço na camioneta, mas ouve. 

Regina, mulher grande do Congo, sobressai no meio da multidão pelas vestes tradicionais. É diretora do sistema de Administração Fiscal da República do Congo e veio, com amigos, só estes dias para ver o Papa e para celebrar os 100 anos das aparições, que lá também se aprendem na catequese. Brincamos com ela que por cá andamos fartos de impostos e ela sorri, mas qual seria a alternativa? Desafiamo-la a marcar encontro com o ministro das Finanças mas o assunto do momento é Francisco e o porquê de tanta gente a chamar-lhe Papa do povo e a dizer que gosta dele de forma diferente. «É como João Paulo II. Ele é especial pela proximidade, porque toca».

Veem-se passar os helicópteros do séquito papal ainda a caminho do estádio de Fátima e a multidão começa a saudar o Papa lá em cima com lenços brancos. Mais arredada da confusão está Delphine, de 59 anos, voluntária do Serviço Hospitaleiro da Ordem de Malta da Suíça, que nos últimos dias esteve a apoiar os peregrinos. Conhece santuários de todo o mundo, mas acha a devoção de Fátima e o jeito dos portugueses especiais. «A mensagem foi compreendida por crianças pequenas e foi amadurecida por Lúcia, que viveu até aos 97 anos. Isto quer dizer que é uma mensagem simples, chega a todos. E a peregrinação também é simples: vemos pessoas que não pensam muito, nem têm sítio para dormir mas simplesmente vão. Chegam exaustas, encharcadas em suor mas com o coração a ferver». Por isso, vê em Fátima uma mensagem de ‘globalização da fé’. Que é um pouco o que parece fazer Francisco. E é isso que, para lá do privilégio de ver o Papa duas vezes, faz Tahani gostar dele. «Papa de todos. Não há problema».