Camões para gente nova. “Um clássico só dá boas lições”

A “Os Lusíadas Para Gente Nova”, adaptados por Vasco Graça Moura, nada falta. Têm arte, engenho, a técnica, que vem render a musa clássica, e até uma “ilha do amor de cinco estrelas”, cheia de ninfas com “maminhas a saltar duas a duas/ Belos rabinhos, bocas de rubi”.

É sabido que a gente nova, pouco disponível para o convívio com obras exigentes, no seu contacto desprevenido com o poema de Camões, experimenta muitas vezes uma espécie de renitência enfadada, quando não a desconfortável sensação do intragável, com a consequente rejeição. Certo é também que a obra maior da literatura portuguesa, no grau de dificuldade que a sua matéria verbal encerra, nos seus pressupostos culturais humanísticos, no complexo significativo que os seus dez cantos perfazem, é tudo menos uma obra fácil, de leitura amena, que amenos não terão sido os lugares que o autor das “Rimas” percorreu, e amenos não são os que destinou aos seus leitores. Tenha-se ainda em conta a extensão do poema, incapaz de prender o fôlego dos jovens de hoje, certamente por lhes faltar o “calo honroso” formado na experiência da leitura.

 “Os Lusíadas Para Gente Nova” (2012) trocam a reverência excessiva pela ousadia, a interdição (‘não se mexe numa obra de génio’) pela oportunidade valiosa, o zelo intelectualista pela reescrita acessível e modernizadora, o conformismo pela Cultura. Num substancial ‘encolhimento’ da malha textual, reduzem a cerca de um terço a extensão total do poema (383 estâncias face às 1102 do original), o que, atendendo à sua inegável qualidade literária e às suas virtudes aliciadoras, não faz dela uma magra epopeia. Se tivermos em conta os comentários, os esclarecimentos, as interpretações e propostas de leitura que nela encontramos, tornados parte do próprio verso, diríamos até que estamos perante uma epopeia (revista e) aumentada.

Escrita em oitava rima, sob os impulsos da vida (à semelhança do original), especialmente destinada a um público jovem (entre 12 e 15 anos), mas susceptível de interessar leitores de todas as idades, esta adaptação de Graça Moura move-se na órbita do desafio. Nela se dispõem a conviver o discurso camoniano (estâncias completas, por vezes em sequência, partes delas, versos, fragmentos de versos, “instantes de Camões”, como diria António Nobre – tudo assinalado em itálico) e o discurso do homo digitalis que era Graça Moura, em redondo, numa linguagem acessível, próxima dos mais novos, pelo uso de um glossário comunicativo onde cabem verbos como “tramar” ou “safar-se”, pelos seus momentos coloquiais, envolvendo homens e deuses que “pintam o bom e o bonito/ Fazendo a história andar para a frente”

Os valores da grandeza, como tudo o mais na vida, também têm o seu estilo de ser – registou Vergílio Ferreira por ocasião das comemorações do Dia de Camões – segundo o estilo do tempo em que são. Assim se entende melhor por que é que o cioso Baco, observador atento da acção grandiosa dos Portugueses “bem pode pintar o sete/ Que não vai conseguir prejudicar/ A gente lusitana que se mete/ Nessa aventura pelo alto mar”.

No que a ousadias respeita, sublinhe-se que a introdução, espécie de Canto Zero ou canto antes do canto, encimada por um título de ambiguidade não resguardada, “Sabemos Muito Pouco de Camões”, não é propriamente silenciosa. Composta por 18 estâncias, esta introdução, espécie de enunciado orgânico de pontos prévios, funciona como abertura em leque da genérica globalidade épica. Aqui se aborda a índole da epopeia, “que era uma forma usada antigamente/ Em que um herói levando a vida cheia/ De combates terríveis segue em frente/ E acaba vencedor”, os planos narrativos, o uso da mitologia e a fábula dos deuses, a influência dos modelos clássicos, o impagável contributo camoniano para o enriquecimento e a modernização da Língua Portuguesa. Enfim, aqui se anuncia o assunto d’ Os Lusíadas e aqui se inicia um processo comunicativo caracterizado por um registo dialogante, discretamente persuasivo.

Esta adaptação – em que se acham as marcas mais reconhecíveis do universo estilístico de Graça Moura, o seu tom, especial e distintivo – introduz, desde o primeiro momento, o jovem leitor numa desejável atmosfera poética, liberta da asfixia de um vocabulário frequentemente alatinado, de que o autor, nas páginas de apresentação, dá prestimosa conta (“Camões introduziu/ Muitos termos tirados do latim:/ Pôs “lenho” em vez de nau, substituiu/ “Véu” por cendal” e mais coisas assim”), das constantes alusões mitológicas, da cornucópia das figuras de estilo, que, como Ninfas, até há bem pouco tempo se caçavam nas nossas Escolas, numa perseguição tão desenfreada quanto infrutífera.

Abandona assim o autor o comentário especializado e o “tim-tim por tim-tim”, os envios constantes à mais exigente cultura erudita, os cálculos complicados da “Divina Proporção” e liberta-se das notas de rodapé em sucessão que indispõem a gente nova, que não apreciará a ideia de ter numa mão sempre o dicionário e na outra um qualquer compêndio especializado. Fica pois liberta do manejo constante de prestáveis armas de leitura para assim poder mergulhar em Camões e fruir do fundamental. Por agora. 

São pois muitas as qualidades que recomendam esta adaptação antológica como via de acesso à epopeia camoniana: um registo narrativo fluído, criteriosamente atento aos momentos essenciais da epopeia e ao seu encadeado, o hábil equilíbrio entre a voz de Camões e a voz moderna do autor em que o texto, na sua versão simplificada, se realiza. Outra das suas forças de sedução é o humor, esse lugar onde sempre pode acolher-se um fraco humano.