Miguel Costa Gomes. ‘Sócrates foi um grande primeiro-ministro. Foi trucidado de uma forma injusta’

O presidente recandidato à Câmara Municipal lembra “a maior arruada de todas” com Sócrates em Barcelos.

Depois destes oito anos como presidente da Câmara de Barcelos, o que o levou a apostar como prioridade nas juntas de freguesia?

A primeira prioridade tinha a ver com a dignificação do cargo de presidente de junta. Na minha perspetiva, é um cargo com papel fundamental porque possui uma relação de proximidade: se está próximo dos problemas das pessoas, também estará próximo das soluções para elas. O modelo de gestão autárquica que existia no passado era um modelo que implicava custos elevadíssimos em termos de deslocação. Um vidro partido, uma fechadura avariada numa escola, a limpeza de uma valeta, coisas pequenas, num concelho com 400 quilómetros quadrados – da sede de conselho à freguesia mais distante são cerca de 22 quilómetros – trazia-nos problemas graves do ponto de vista da gestão autárquica.

E que soluções trouxe?

O modelo que se arranjou foi, precisamente, delegar competências nos presidentes de freguesia, dotando-os de capacidade financeira para resolverem problemas. Decidimos algo que era inédito em Portugal em 2009: o protocolo dos 200%. As freguesias recebem da administração central o fundo de financiamento de freguesias e a câmara dá duas vezes esse valor. Isto permitiu dignificar o papel do autarca e resolver uma série de problemas.

Não receou que essa solidariedade com os presidentes de junta retirasse protagonismo e margem de manobra ao seu próprio mandato, como presidente de câmara?

É muito simples: primeiro, fizemos isto de forma transversal, isto é, todos os autarcas têm este protocolo e todos os autarcas têm que produzir relatórios trimestrais daquilo que executam nas suas freguesias. A libertação do que recebem no mês seguinte é feita sempre condicionada por esse relatório. Há um gabinete, aqui na câmara, que o recebe e analisa onde é investido o dinheiro público.

Está a dizer que há um escrutínio.

Sim, é uma forma de escrutínio porque, repare, mandato a mandato prestamos contas aos cidadãos. Freguesia a freguesia. Informámos agora que investimento foi feito porque os cidadãos têm direito a essa prestação de contas. Enquanto presidente de câmara faço-o, naturalmente, com a solidariedade dos presidentes de câmara. 

Também o vê como forma de descentralização?

Sim. Quando me apresentei a eleições pela primeira vez, a convite do Partido Socialista, de que agora sou militante sendo na altura independente, o meu slogan foi sempre que Barcelos é dos cidadãos. É preciso olhar a política como para servir as necessidades dos cidadãos. E o melhor modelo de resolvermos problemas dos cidadãos é chamarmos também os autarcas de freguesia para esse processo. Não perdi protagonismo, penso que antes pelo contrário… A relação institucional é forte e de respeito. Isto foi reconhecido pelos cidadãos e é possível vê-lo de uma forma muito simples. Em 2009, entrei aqui com 972 votos a mais do que o outro partido da oposição, tinha uma maioria no executivo municipal, mas tinha uma minoria enorme na assembleia municipal e na de freguesias: só tínhamos 22 das 89 freguesias. Em 2013, conquistámos a maioria nos três órgãos e isso mostrou reconhecimento dos cidadãos.

Reconhecimento do trabalho com as freguesias.

Não só. Lançámos um modelo de abertura total aos cidadãos. Não fazia sentido ser um autarca fechado nos Paços do Concelho. Fazia sentido abrir o município aos cidadãos e foi isso que fizemos desprendidamente. A relação entre câmara, freguesias e cidadãos é, hoje, totalmente diferente.

O sucesso eleitoral que teve em 2013 não poderá ser colocado em causa com a rutura que se deu dentro do seu executivo camarário [o vice-presidente corre como independente] e com o facto de a direita, ao contrário de 2013, correr coligada este ano?

Não, não, feitas as análises e sondagens acredito no contrário. Com o trabalho que foi feito ao longo deste mandato, creio que se vai manter o reconhecimento dos cidadãos. Estamos a falar de um projeto de continuidade numa tentativa de ver a política de forma diferente. Nós aqui não trabalhamos com os cidadãos ou com os presidentes de junta olhando para a sua cor partidária. Olhámos para os cidadãos como cidadãos.

Mas foi uma diferente perspetiva sobre a relação com os cidadãos que causou a rutura com o seu vice-presidente? Foi aí que nasceu a discórdia sobre quem deveria ser o candidato?

A rutura que existe entre mim e o meu antigo vice-presidente de Câmara [Domingos Pereira] tem a ver com uma espécie de ambição que ele desenvolveu – que eu costumo chamar ‘ganância’, porque foi uma ambição que se transformou em ganância – e que fez com que ele quisesse seguir um caminho sozinho. Nunca percebi totalmente por que o fez, embora seja capaz de perceber parte do que o motivou. Se ele tivesse manifestado a responsabilidade e a serenidade suficientes para lidar com um processo político, teria sido diferente. Repare que vou para o meu último mandato, se ele tinha esta ambição era uma questão de esperar. Faríamos uma transição pacífica…

E porque acha que não se deu essa espera?

Quando conversei com ele no sentido de prepararmos o mandado a partir de 2017, fiz-lhe uma proposta em que manteríamos a configuração política como tínhamos. Eu a candidato e ele a vice. Mas cometi um pecado capital: foi pedir-lhe uma reconfiguração do partido [socialista] a nível concelhio.

Porque a pediu?

Há pessoas aqui que fazem mal ao partido. Temos que parar com o pensamento que na política vale tudo. Isso não é sério. Os partidos fazem muita falta à democracia portuguesa e são as pessoas dos próprios partidos que muitas vezes fazem mal à democracia e levam os cidadãos a não acreditarem nos partidos.

Quando diz que não são sérios, quer dizer o quê exatamente?

O primeiro-ministro [António Costa] diz uma coisa fundamental: a política só faz sentido se for exercida em benefício dos cidadãos. Eu comungo inteiramente disto.

Sentiu o apoio dele nesta polémica? Afinal, Domingos Pereira era deputado do PS.

Senti, claramente. Tanto do secretário-geral [Costa] como da secretária-geral adjunta [Ana Catarina Mendes], que é com quem lido mais diretamente. Tenho em absoluto o apoio do secretariado desde a primeira hora. Repare que o meu vice-presidente na altura votou a moção do congresso [que defendia a recandidatura de incumbentes] e no dia a seguir apresentou-se como candidato contrariando a moção do próprio partido… Uma organização tem que ser exigente com as suas decisões e foi isso que aconteceu. Desde muito cedo que o secretário-geral e a secretária-geral adjunta me disseram que eu seria o candidato do Partido Socialista, como aliás determinava a tal moção do congresso [que defendia a recandidatura de incumbentes como Miguel Costa Gomes].

Não sente, então, que a dissidência do seu vice-presidente seja uma ameaça eleitoral para si?

Não. O meu vice-presidente candidatou-se nas legislativas, fez parte do grupo de deputados à Assembleia e fez uma campanha pessoal – eu não intervim em nada embora me disponibilizasse para isso –, e até fiquei um bocadinho surpreendido quando percebi que ele não era o cabeça-de-lista… Mas a verdade é que das 37 freguesias que o Partido Socialista tem ele perdeu em 35… Das 61 freguesias que Barcelos tem, ele perdeu em 59… Tivemos a pior votação do partido em legislativas. Pode haver uma bondade em dizer que as legislativas são diferentes, mas há factos aqui concretos.

Além desses?

Ele era vice-presidente de câmara com o pelouro das Finanças, presidente do partido local, presidente da mesa da federação distrital e membro da comissão política nacional. São estatutos a mais para ter uma votação tão fraca. Ele tentou aferir-se junto dos cidadãos e não correu bem…

Quando Domingos Pereira diz que foi destituído dos seus pelouros “sem saber porquê”, o que lhe responde?

Ele sabe muito bem porque fiz o que fiz. Há uma coisa que não admito: deslealdades. E apercebi-me que havia aqui uma série de atos de deslealdade. Deleguei poderes nos vereadores normalmente, mas faz parte de uma relação sã que os vereadores não tomem decisões sem estarem em sintonia com quem lidera o projeto, ou seja, o presidente da câmara. Em várias coisas, ele [Domingos Pereira] não fazia isso. Quando ele me diz que “em política não há amizade” – e eu não concordo com isso – e que em política “não se justifica, age-se”, eu respondi-lhe exatamente isso depois: “Foste tu que me ensinaste”. Por mais que ele pergunte porque tomei a atitude que tomei, ele sabe muito bem… Depois das eleições, falarei mais à vontade, mas não tenho dúvida que as pessoas compreenderão. Não tolero quem está na política para trabalhar para clientelas e amiguismos. Não vim para a política para isso. Estou na política para fazer parte das soluções e não do problema.

Falando em resolver problemas… Depois do trabalho árduo de redução do passivo, não sente que os processos que foram judicializados nas águas, com a quantia elevada que saiu para pagar dos tribunais, possam pôr em causa essa consolidação orçamental?

É evidente que há o risco de pôr em causa. Temos uma sentença que é real e está definida, tendo já chegado ao limite de instâncias recorridas, que é o Tribunal Constitucional. Lá está, é um problema que tenho. Mas na política nós não podemos colocar um problema em cima de outro. O que se tentou fazer foi arranjar uma solução. É um facto que herdámos um contrato muito penoso para os barcelenses, um contrato com características, no mínimo, estranhas. Uma delas é que a instância jurídica para dirimir o conflito era um tribunal arbitral, e eu creio que os tribunais arbitrais são interessantes mas não para processos com esta dimensão. E, depois, o meu antecessor pôs uma cláusula no contrato que abdica do direito de recurso. Acho isso uma coisa muito violenta… Um presidente da câmara não tem o direito, na minha ótica, de abdicar de um direito dos cidadãos. A verdade é que, por isso, fomos condenados e não tivemos direito a recurso nenhum. O que fizemos foi reclamar incidentes jurídicos em todo o processo.

Mas a opção política de judicializar em vez de procurar um acordo foi sua.

Não, porque o acordo não era viável e eu vou dizer-lhe porquê. Quando fui eleito uma das coisas que fiz foi falar com os acionistas das águas. O que me estavam a exigir para o reequilíbrio da empresa eram 25 milhões de euros, um aumento do preço da água em 38% e mais dez anos de concessão. A verdade é que nós ao fim de sete anos entendemos que isto tem a ver também com os atores que estão neste processo. O presidente da administração com que estou a falar agora é o quarto desde que eu iniciei mandato. E sempre que havia uma evolução nas negociações era mudado o presidente do conselho de administração…

Esse acordo, mesmo que punitivo, não seria menos mau que o que acabou por ser decidido em tribunal?

Percebo essa questão, mas não podíamos deixar de lutar por aquilo que consideramos ser um direito dos barcelenses. O tribunal decidiu baseado em pressupostos desequilibrados de um contrato. A lei já dizia que as concessões devem ser contratualizadas com base no princípio de responsabilidade partilhada e este contrato não refletia isso. Os 11 milhões que o executivo anterior ao meu já tinha dado para o reequilíbrio da empresa nem foram considerados em tribunal.

Porquê?

Porque o tribunal foi objetivo. Olhou para o contrato. Repare que a sentença é o resultado de um reequilíbrio – ou da tentativa de reequilibrar – a empresa desde dia 1 de 2005, quando ela começou, até ao final da concessão. Eu não consigo perceber como é que uma empresa necessita de ser reequilibrada desde o seu primeiro dia! Os 172 milhões de euros [a sentença] é o resultado de tudo o que foi feito desde esse dia.

Mas oito anos não foi demasiado tempo para o seu executivo tentar encontrar uma solução? A vereação não poderia ter sido mais flexível?

(pausa) O que lhe posso dizer é que em sete anos não consegui arranjar uma solução porque fui condicionado politicamente.

Por quem?

Pelo próprio partido [Socialista]. Quer dizer, pelas pessoas que estavam no partido, pelo meu vice-presidente [Domingos Pereira].

Quando diz que foi condicionado pelo próprio partido refere-se às pessoas que romperam com a sua candidatura e se candidatam contra si este ano?

Exatamente. Aliás, o estranho é que a partir do momento em que eles saíram eu consegui um acordo que, dadas as circunstâncias, é um acordo bom.

Não é paradoxal ter falhado em conseguir um acordo com maioria na câmara e agora consegui-lo só com dois vereadores?

Teve a ver com uma coisa: respeito. Quando estamos numa mesa de negociações, é fundamental. Quando estou a negociar, tenho que ver que há dois acionistas com os seus interesses e eles têm que olhar para mim, que represento um bem público que também tem o seu interesse.

Antes, quem estava do outro lado não conseguia respeitar?

O conflito era permanente.

Porquê?

É o que lhe digo: não posso estar refém de arranjar uma solução e estar condicionado porque quem controla o partido diz “se levares isto a reunião de câmara nós não vamos aprovar isto”. A minha dificuldade foi que não estava ligado ao partido; não faço parte do órgão, nem do secretariado nem da comissão política. A minha ponte com o aparelho local era feita pelo presidente [do PS local] que era meu vice-presidente [de câmara]. Do ponto de vista político, estava condicionado.

E não é complicado segurar uma Câmara apenas com dois vereadores?

Foi uma opção pessoal que tomei. Só tínhamos outras três opções: ou fazíamos um acordo com a oposição – porque para mim era inviável o regresso de quem tinha saído ou suspendido o mandato –, ou eles abdicavam e deixavam-se substituir – o que não aconteceu –, ou ia-me embora, o que nunca me passou pela cabeça.

No programa do Partido Socialista constava a redução substancial do custo da água. Quanto conseguiu reduzir até hoje?

Não se conseguiu reduzir nada porque houve a inviabilidade da negociação com os acionistas. Nós, na altura, tínhamos das águas mais caras do país. Como é que podia estar a aumentar a água se tinha prometido reduzi-la? Não fazia sentido absolutamente nenhum. De facto, o maior problema foi esse: os 25 milhões, os dez anos de concessão e o aumento dos 38% da água. Era violento demais.

Sente que estas eleições locais são um exame à solução de governo atual, liderada por António Costa?

Não lhe quero dar uma certeza absoluta. Há votações muito diferentes. A única vez que aqui estivemos muito próximos do PSD [em legislativas] foi em 2009. Perdemos por 232 votos quando normalmente perdemos por 13 mil, 15 mil… Acredito que haja uma influência da gestão nacional que o partido está a fazer. Há quem me compare a António Costa por arranjar soluções. Ele também foi autarca, e isso é uma grande vantagem. Disse várias vezes que ele daria um bom primeiro-ministro precisamente por estar educado na base do poder local. Anda-se na rua todos os dias, ouvem-se as pessoas, ganha-se experiência e é-se um político muito mais aberto que o tradicional.

Mas António Costa depois de ter sido autarca em Loures foi para eurodeputado… Não descarta sair da política autárquica, um dia?

Não sou um carreirista em termos políticos. Estou, naturalmente, aberto a avançar para outro tipo de projeto. Mas a minha perspetiva é a do próximo mandato como presidente de câmara. Já fizemos muito desde 2009 e ainda há mais para fazer.

Não dizia que não a ir para Bruxelas, pois não?

Provavelmente não. Acredito que era uma posição que era capaz de me seduzir.

António Costa estará presente na campanha?

Vem, vem. Dia 9 [amanhã] cá estará. Ele vem como secretário-geral, mas dificilmente as pessoas não o olham como primeiro-ministro. Os barcelenses recebem sempre muito bem. A maior arruada de todas, em 2009, foi quando José Sócrates veio a Barcelos.

Também tinha com José Sócrates a relação de proximidade que tem com António Costa?

Tinha uma relação muito próxima com José Sócrates.

Foi uma perda política para o Partido Socialista?

Foi. Ainda hoje na notícia que dizia que se adiou o prazo da decisão [do processo que investiga Sócrates]… É lamentável que a Justiça esteja a cozer uma pessoa em lume brando. Era bom que a justiça demonstrasse muita coisa ou ficará muito mal… A sensação que se tem é que a montanha pariu um rato.

Acha que será esse o desfecho final?

Tudo indica que sim. Não me surpreenderia.

O partido portou-se bem com José Sócrates nos últimos três anos?

Cada um tem a sua própria forma de encarar as coisas… Eu fico triste… José Sócrates foi um grande primeiro-ministro e foi trucidado de uma forma injusta. Ouvem-se alguns comentários, que o atual secretário-geral poderia ser um pouco mais solidário…

Não concorda com isso?

Se ele [Costa] deveria ser mais solidário? Ele será solidário do ponto de vista pessoal, não tenho dúvidas. Do ponto de vista político, é difícil… Mas se a Justiça tem razões para fazer o que está a fazer, que o demonstre.