A humanidade, em 100 pessoas

A ideia de dar rostos às estatísticas – e estas já eram fortes o suficiente – surgiu numa troca de emails entre duas amigas em 2003. A Fundação 100 People acredita no poder da inspiração pelo real para mudar o mundo, a começar pelas bases do futuro, os mais novos

Se houvesse apenas 100 pessoas no mundo, metade seriam homens, a outra metade mulheres. Acaba aqui a igualdade mundial, que por ironia foi sempre muito subjetiva no que toca ao género. Vinte e cinco seriam crianças e jovens até aos 14 anos, 66 teriam entre 15 e 64 e nove seriam idosos de 65 ou mais anos. A maioria, 60 pessoas, seriam naturais da Ásia. Haveria depois 16 africanos, 10 europeus, nove da América Latina e Caraíbas, cinco da América do Norte e do Canadá. Seis falariam espanhol, cinco inglês, quatro hindi, três português – tantas como as que falariam árabe ou bengali. Duas falariam chinês, outras duas japonês e outras duas russo. Sessenta pessoas falariam outras línguas. 

Um terço, 31 pessoas, seriam cristãs, 23 muçulmanas, 15 hindus e sete budistas. Oito acreditariam noutras religiões, 16 não se identificariam com nenhuma ou com a religião de todo. Só sete teriam um curso superior. 

Um pouco mais de metade, 54, viveriam na cidade, os restantes no campo. Oitenta e duas teriam eletricidade, as restantes não. Noventa e um teriam água potável para beber, os outros nove beberiam a água que houvesse. Onze seriam subnutridos, assim como onze viveriam na pobreza extrema, com menos de 1,50 euros por dia. Uma morreria de fome. Vinte e duas seriam obesas. Sessenta e cinco teriam telemóvel, 47 usariam regularmente a internet. Catorze não teriam acesso a casa de banho.

O exercício, que mete a humanidade em perspetiva, é da Fundação 100 People, sediada nos Estados Unidos. Os números foram atualizados em 2016, para refletir uma população mundial que atingiu um recorde de 7,5 mil milhões de habitantes mas também alguns avanços, que ainda não chegam a todos. Em 2006, quando nasceu o projeto, só uma pessoa entre as 100 teria um curso superior. 

A ideia de pensar o mundo, as suas desigualdades, injustiças e diversidade, como se tratasse de uma pequena aldeia de habitantes, surgiu numa troca de emails em 2003, daquelas correntes de mensagens em que nem se questiona se é assim ou não: acha-se interessante, carrega-se no forward e pronto. 

Duas amigas pensaram que podia ser o pontapé de saída para algo diferente, relembra a história no sítio do projeto www.100people.org. Longe dos grandes holofotes mediáticos, Isabel Sadurni, realizadora, e Carolyn Jones, fotógrafa, reuniram uma equipa, alguns patrocínios e começaram o seu caminho. 

Ao início, quiseram perceber a origem da metáfora que lhes chegara numa mensagem com o carimbo da Universidade Stanford e assinada por um Dr. Philip Harter. Harter viria a explicar que apenas achara interessante as estatísticas e as tinha encaminhado, nascendo assim o mito. 

Isabel e Carolyn continuaram à procura e chegaram à primeira referência a este lugar que resumiria a humanidade, um artigo publicado em 1990 num conjunto de jornais de New Hampshire. A autora era Donella Meadows (1941-2001), professora e cientista ambiental com uma coluna de opinião sobre o cidadão global. Na altura, Meadows, cuja maneira direta de expor os problemas e riqueza da humidade viria a ser uma das bandeiras da cimeira da ONU sobre Ambiente em 1992, no Rio de Janeiro, usava uma vila de mil habitantes para refletir as estatícas mundiais, que assim ganhavam uma nova força. Na altura, um terço dos habitantes, mais do que hoje, não teriam acesso a água potável. Metade dos adultos seriam analfabetos. Cinco seriam soldados, sete professores e um médico. A riqueza estaria mal distribuída, os terrenos férteis a desaparecer à conta da sobre-exploração. Outra preocupação no discurso de Meadows era o armamento nuclear, suficiente para rebentar com toda a vila,  mensagem que vai parecendo por estes dias atual. «Estaria sob o controlo de 100 pessoas. As outras 900 ficariam a observá-las num estado de ansiedade profunda, a pensar se aquelas 100 pessoas se iam entender e, se isso acontecesse, se por acaso as armas não poderiam ser acionadas por descuido ou algum problema técnico. E mesmo que decidissem desmantelá-las, onde é que colocariam o perigoso material radioativo”.

Mais de duas décadas volvidas, são também as preocupações ambientais e sociais a mover o projeto 100 People, mas não só. 

Isabel e Carolyn avançaram em duas frentes: por um lado, queriam compor um retrato visual destas 100 pessoas. Não lhes faltariam ferramentas para ir pelo mundo à procura dos rostos. Mas quiseram fazer do exercício de Meadows uma ferramenta de educação em todas as latitudes. O projeto educativo pôs-se na frente do outro e têm-se dedicado a desafiar escolas dos EUA e internacionais a apresentar os seus nomeados para o retrato global: se tivessem de ilustrar esta aldeia de cem pessoas, como o fariam? E quem nomeariam? O site do projeto inclui alguns retratos enviados de vários cantos do mundo. Aakash Deshpande, de 10 anos, hindu, fotografado por Sabina Panday, da American International School em Chennai, na Índia. «Nos próximos anos, vai absorver as virtudes e ensinamentos do hinduísmo para se tornar padre». Abdulrahman Bawa, nigeriano de 57 anos, muçulmano, fotografado por um aluno da American Internacional School of Niamey. «Tem uma mulher e dez filhos. Ganhava a vida a vender sapatos e agora é vendedor de artesanato de pele da Nigéria numa pequena loja ao pé do Petit Marche onde se compra frutas e vegetais», escreveu Asmau Mohammed. 

Há também uma pintura de Ah Fong, de 40 anos, de Shenzhen, China. Foi a escolha de um grupo de alunas de uma turma de sétimo ano da Shekou International School. «Trabalha como empregada e é casada. Vive num apartamento com o marido e os filhos. A coisa interessante é que não tem religião. Tem dois filhos e poupa o dinheiro que ganha. Come arroz ao pequeno almoço, almoço e jantar. A sua altura preferida do ano é o Ano Novo Chinês. Nos tempos livres, vê televisão», escreveram. 

Há ainda Fermin Aguilera, jardineiro de 82 anos, católico, natural de Tlajomulco de Zuniga, Jalisco, Mexico. Ou May Nwe Zin Aung, 12 anos, vendedora de bananas no zoo de Rangum, na Birmânia. 

Até ao momento, há 769 escolas inscritas como participantes no projeto, em todos os continentes. Em Portugal estão listados três colégios, mas por agora não há nenhuma nomeação. 

A fundação propôs em 2011 um conjunto de aulas que podem ser usadas para abordar o tema e explorar cada um dos números, o seu significado, as suas implicações. Pensar globalmente, agir localmente é o mote.

Mesmo sem grandes formalismos, muitas interpretações possíveis para exercício de Meadows, mesmo à distância de mais de duas décadas, continuam a ser uma forma simples de despertar a consciência, coletiva e individual. «Se acordou esta manhã saudável, é mais abençoado do que o milhão de pessoas que não vai sobreviver a esta semana. Se tem comida no frigorifico, roupas vestidas, um telhado por cima da cabeça e um sítio onde dormir, está mais confortável do que 75% da população mundial. Se tem dinheiro no banco, na carteira ou uns trocos num sítio qualquer, está entre os 8% mais ricos do mundo. Se leu isto, tem mais sorte do que os dois mil milhões de pessoas em todo o mundo que não sabem ler», lembra uma das reproduções do original. Houve melhorias – hoje estimam-se 775 milhões de adultos não saibam ler nem escrever. Se o mundo fosse uma aldeia de 100 pessoas, 84 teriam essa vantagem na vida, os outros não.