Jorge Listopad (1921-2017). Sobreviver para elevá-la

O escritor, professor e encenador checo, que vivia radicado em Portugal desde a década de 1950, morreu no passado domingo aos 95 anos.

O exílio português durou uma vida. Aqui radicado desde os anos 50, o nome próprio, pelo qual a morte o chamou aos 95 anos, é uma versão aportuguesada daquele que lhe deram os pais: «Jorge é o mesmo que Jíri [seu nome no BI checo]. Listopad é ‘Novembro’. Nasci em novembro. Agora o Jorge tem a mesma raiz, estão todos ligados à terra; são lavradores. Portanto, sou o lavrador de Novembro», explicou numa entrevista ao Jornal de Notícias.

Nasceu em Praga, a 26 de novembro de 1921, e se nos primeiros anos não suspeitava que esta «era uma das mais belas cidades do mundo», foi só mais tarde, com a guerra, que triunfou a consciência dessa beleza.

Vindo de um meio privilegiado, as marcas da cultura centro europeia ficaram nele. Numa crónica autobiográfica assinada no Jornal de Letras, o escritor, professor e encenador checo, fala dos anos de infância e juventude, relembra a elegante casa que o viu crescer, o bairro onde tirou as primeiras medidas ao mundo entre a «burguesia instalada» – não por muito tempo, adianta -, como o jazz se revelou um parceiro colhendo altos e baixos e avançando «contra a solidão da puberdade». Fala dos movimentos pendulares entre o campo e a metrópole, na profunda ilegalidade a que a resistência antinazi obrigava. E fala de Helena, a primeira paixão, «morta com 17 anos, em trânsito para o campo de concentração, em 1940». 

«Exemplo patriota checo», o pai morreu numa prisão alemã, e Jorge viu-se separado da irmã cinco anos mais nova, Alena, sendo que, depois dos cinco anos que durou a guerra, se reencontraram para se perderem entre todos os órfãos que sobreviveram para não saber «se ainda estávamos vivos».

Deixou o seu país para renascer na capital francesa, e diz-nos que «em Paris fiz tudo». Tantos anos depois, mostra ainda um certo entusiasmo com a oportunidade que teve então de «conhecer a high society da esquerda», trabalhando como chefe de redação do semanário Paralèlle 50, que contava com uma ilustre lista de colaboradores – entre escritores, como Roger Vailland e Claude Roy, e sociólogos e filósofos como Edgar Morin.

Revela ainda como conheceu Camus – «a paginar o seu jornal, e depois na rua Ciseau, ou pagar um café filtre, no Café Bonaparte a Tristan Tzara, pai do dadaísmo, ele sempre de casaco comprido de inverno mas sem camisa por dentro» -, como as conversas com meteoros internacionais também com ele contaram. Aragon, Beckett, Cocteau, Duras, Éluard, Malraux, Sartre… De Marcel Marceau jovem foi amigo, frequentou Roger Caillois e François Mitterrand, Václav Havel, «etcetera, etcetera», tendo quem lhe corrigisse o francês escrito e a abertura de perspetiva sobre tantas outras línguas do mundo depois da pior das juventudes.

Em 1948, deu-se o golpe de Estado em Praga. Os comunistas tomaram o poder, as quatro décadas seguintes foram perdidas para a asfixiante tristeza da ditadura, e Listopad, apesar das convicções à esquerda, sabia a diferença entre saber a direção e forjar um destino infernal a partir de boas intenções. Decidiu então que não voltaria ao seu país até que aquilo passasse.

Naqueles anos, a atividade na imprensa levá-lo-ia às primeiras experiências na televisão, e isto viria a ser-lhe útil em Portugal, onde realizou programas com a Companhia de Marionetas de São Lourenço e do Diabo e Música em Água e Mármore, uma composição de Jorge Peixinho para a Torre de Belém. O crítico e amigo Augusto M. Seabra nota que Listopad fez parte de uma estirpe rara e hoje extinta, a dos realizadores que eram também autores.

Quando o domínio do francês lhe deu uma segunda língua-mãe, foi atrás de uma mulher que deixou Paris, e mudou-se para o Porto. Foi a sua grande homenagem ao amor, trocando as margens do Sena pelas do Douro atrás de Julieta, a mulher dos olhos azuis, um azul que estimava e a que se referiu como se fora outra das suas inescapáveis direções.

Depois da década em Paris, abraçou Portugal apelando ao seu gosto pelos detalhes, «microscosmos»  – «gosto dos pequenos países, há muito mais para ver». Foi um dos fundadores da RTP Porto, e além do trabalho na televisão prosseguiu a colaboração com a imprensa, com textos tantas vezes polémicos de crítica de teatro, crónicas e ensaios. E depressa também se ligou às figuras que vão renovando o orgulhoso prestígio daquela cidade, como Agustina e Sophia, o cineasta e poeta António Reis e Eugénio de Andrade, que lhe corrigia o português. 

Cinco anos depois veio para Lisboa para dar aulas no Instituto de Ciências Sociais e Políticas. Na capital presidiu à Comissão Instaladora da Escola Superior de Teatro e Cinema, codirigiu o Teatro Nacional D. Maria II e, em 1981, fundou e liderou o Grupo de Teatro da Universidade Técnica de Lisboa. Dirigiu 60 peças, publicou uma dezena de livros. Em Portugal como lá fora, foi por diversas vezes distinguido e premiado, e tudo o que fez dedicou-o sempre com afeto aos leitores e ao público, como aos seis filhos que teve com a sua Julieta, todos portugueses e de olhos azuis.