Filomena Marona Beja. O fascínio da História

“A escrita, afinal, é uma espécie de dentada de cão: só sara, aplicando-lhe pêlo de outro cão”, disse a autora numa entrevista

Revelada em 1998 com As Cidadãs, Filomena Marona Beja é autora de uma significativa obra abertamente atraída pela História – das invasões francesas à revolução de Abril, passando pelo mandato de Manuel Teixeira Gomes como Presidente da República ou pela passagem meteórica de Humberto Delgado pela nossa paisagem política. Depois do romance Um Rasto de Alfazema (2015), uma metáfora sobre a deriva portuguesa das últimas décadas, publica agora Avenida do Príncipe Perfeito, com a chancela da Parsifal, um atribuladíssimo romance que recorda acontecimentos marcantes das últimas décadas.

A ficção narrativa, praticada nos seus vários géneros – o romance, a novela, o conto – e pouco propensa ao continuum cronológico, é a sua vocação literária. Os seus leitores mais constantes sabem, aliás, que lhes cabe um papel na reconstituição de nexos estruturais e cronológicos, já que o modo ficcional da autora, afastado do encadeamento narrativo tradicional, encontra na tendência fragmentária um seu fundamental elemento caracterizador. A sua escrita firme, elíptica, ágil, de ritmo sincopado e sugestiva economia narrativa, aberta aos registos de um humor subtil, ora terno, ora desapiedado, articulando de forma talentosa diálogo e narração, dá corpo ao retrato ficcional da sociedade portuguesa, dos começos do século XX até aos nossos dias, nas grandezas que se foram e na pequenez vivida que nos resta como actualidade. A moldura dramática da ditadura tem nela uma presença marcante.

Filomena Marona Beja nasceu em Lisboa, em 1944. Cresceu na Rua do Açucar, mas é avessa a histórias glicodoces, até porque glicodoce não foi o século XX português, pleno de transformações sociais e mentais, por vezes aceleradamente incorporadas no viver colectivo, e no qual se movem, com desenvoltura narrativa e pessoalíssimo à vontade, os seus primeiros romances. Se o seu livro de estreia, As Cidadãs, cuja reedição, em 2009, coincidiu com as comemorações do centenário da implantação da República, decorre no início do século, o que se lhe seguiu, Betânia (2000), permite-nos acompanhar uma história que decorre do nascer ao pôr-do-sol do dia da morte de Oliveira Salazar, em Julho de 1970. Romance com força narrativa ímpar, com o qual obteve o Grande Prémio de Literatura DST, em 2006, A Sopa (2004), centra-se nos anos finais do século XX, designadamente na chegada a Portugal dos imigrantes africanos e do leste europeu.  

Aluna do Lycée Français Charles Lepierre e da Faculdade de Ciências da Universidade Clássica de Lisboa, onde se licenciou, Filomena Marona Beja cedo começou a trabalhar em documentação técnico-científica na área de Arquitetura e Construções Escolares, primeiro no Ministério das Obras Públicas, depois no Ministério da Educação. Neste domínio, desenvolveu estudos de rigorosa investigação, e é autora de vários trabalhos na área dos espaços escolares e outros equipamentos educativos, com divulgação no estrangeiro. Dir-se-ia que no final da década de 90, Filomena Marona Beja iniciou nova vida: a de romancista, à qual tomou o gosto.

Depois da «trilogia do século XX», prosseguiu o exercício seguro da escrita com A duração dos Crepúsculos (2006, com ilustrações da pintora Maria José Ferreira) e A Cova do Lagarto (2007), distinguido com o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores. É um romance que nos oferece o retrato de uma época e de um homem cuja vida investigou ao longo de 20 anos: Duarte Pacheco, o mítico e misterioso ministro das Obras Públicas. Liberdade, esperança, ilusão e… desilusão são palavras que percorrem insistentemente o livro que se seguiu, Bute Daí, Zé (2010), sobre o assassínio do militante de esquerda José Carvalho por um bando de skinheads.

Mais recentemente, a autora publicou Histórias vindas a Conto (2011, com fotografias de André Beja), a sua primeira incursão na narrativa breve, e O Eléctrico 16, um admirável romance sem intriga que progride, caleidoscopicamente, ao sabor das flutuações quotidianas de uma Lisboa popular cujo rosto fechado, rígido, socialmente contido o 25 de Abril de 1974 veio transformar, dando à cidade da carreira ribeirinha uma fisionomia cosmopolita, europeia, de costumes profanos. Sempre regida pelo desenvolto impulso para uma efabulação narrativa marcada por uma lúcida rejeição do acessório, e uma imposição do essencial, Filomena Marona Beja deu também a público as admiráveis novelas de Franceses, Marinheiros e Republicanos … (2014). Repartido por quatro novelas, em regime de descontinuidade narrativa, é um ‘concentrado’ de conturbações, evoluções e sujeições por que passámos – «Nós, Portugal», como diria Pessoa –, das campanhas de Napoleão até à I República.