Abel Neves. Usar o desfibrilhador nas naturezas mortas da narrativa de ficção

Há muitas ambulâncias na ficção lusa, mas se andam às voltas e fazem um grande escarcéu, muitas vezes entrar nelas é como ir directo para a morgue. A maioria não dá com nenhum hospital. Com Abel Neves, nem a volta é muito grande nem a urgência é de vida ou morte, mas as suas narrativas…

Os mestres sabem como aos contos o ar lhes dá melhor, lhes enche mais a vela, se forem escritos em mesas com alguma inclinação. Num autocarro atravessando algum México, mental ou físico (ou líquido), indo daqui para o além, ou com a mão de fora da vida, a fazer ondas no vento, com uma atenção perfurante em relação às suas ironias. O que se quer é o insólito, algum percalço ou vício nas leis da física que nos transporte para esse mundo imitando este e estranhando-o, rindo-se: a literatura. Essa que lhe mete à frente um espelho e o rouba ou acrescenta algum aspecto que torna a vida bamba.

Abel Neves é um experimentado caçador de improbabilidades, seja como dramaturgo, ficcionista ou poeta. No seu livro mais recente, “O Bibliófago e mais historietas breves”, reúne 80 narrativas breves ou brevíssimas, conseguindo sempre fazer ruir por um lado inesperado a casota dos hábitos que as leituras de ficção nos criaram. Estes contos ou fragmentos narrativos funcionam como pequenos ensaios sobre o género, sem se furtarem a assentar em bases sólidas as suas situações e personagens, sem esquecerem que a prosa não pode ser só um cabide, nem um manequim, mas tem de ter sangue a correr e pernas para andar.

À dimensão muito variável – normalmente, entre quatro páginas a apenas um parágrafo –, somam-se nestes textos outros indícios da sua acidental inspiração. Como nuvens de fumo aprisionadas em copos de boca voltada sobre a toalha, as suas peripécias e personagens surgem-nos à superfície de espelhos foscos, montras convidando o quotidiano a espiar as caretas que faz sem dar por isso. De “uma ingenuidade e alcance cativantes”, boa parte destes micro-relatos parecem nascer como versos relaxados, sem especial urgência, e a cambar entre registos, despreocupadamente. São objectos de recreio ocioso, mas que se sustentam em prodigiosas elipses, dizendo o menos possível, sem o desejo de levar para a pista de atletismo as suas sugestões. Acende-as, dá uns bafos encostado num muro, e vai-se. Isto não quer dizer que, para trás, vá deixando piriscas ou uns seres mal-formados às contas com umas poucas horas de vida, até que uma veia se lhes rompa na cabeça e faça o cérebro afogar-se. São mais como lances de dados que, não pretendo anular o azar, vivem bem à margem das ambições que fazem suar nas voltas os maratonistas da ficção portuguesa.

“Acariciem os detalhes”, dizia Nabokov, “os divinos detalhes”. Muitas vezes, logo nos títulos, a mesa de jogo fica montada. Cabe-nos colocar algumas fichas nesta casa ou naquela e ver que número sai. Desde logo aquele que dá título à reunião, “O Bibliófago”, que leva a imaginação para esticar as pernas, e as deixa no ponto ideal para ‘sacar’ tanto quanto possível das duplicidades que vai montando, a partir de “floreados de magia mimética”, ao mesmo tempo que os alerta para a insídia que fica, contudo, além destas linhas, como se as trancasse lá fora. Um livro como uma prisão para o que nele não entra, mas também não passa ignorado. Outros exemplos no que toca a títulos: “’Lesma’, o cavalo solitário”, “Kafka com lâmpada chinesa”, “Um fóssil no quintal”, “A vida segundo o talhante Horácio e o jardineiro Olívio”, “O budista de Massarelos”…

E as coisas vão bem. Como há talentos capazes de ordenhar tudo o que mexa, e até por vezes coisas inanimadas, Abel Neves prova uma eficácia invulgar enquanto parteiro. Não precisa de mais de duas linhas para se ver uma cabeça, puxar um corpo da página e dar-lhe o tabefe para o pôr a chorar. E, nisto, não é difícil perceber a capacidade que tem para pôr uma linha a intrigar, tendo uma obra que se estende pela ficção, o ensaio e a poesia, mas acima de tudo com muita prática na escrita para teatro. Assim, o talento aqui está na forma como a um problema o cerca de imediato de uma prole de berrantes soluções.

“Mar” é o nome de um conto que arranca com um velho pescador que estará mal com tudo o resto, mas que é no amigo de sempre que viu a conversa azedar – como eco natural das suas próprias inquietações, um convite inacessível. Mas isto já é jactância do crítico, porque o autor resolve a coisa sem demasiadas explanações. Num diálogo silencioso com um rapaz atrás do balcão do café, diz-nos que “o velho pescador vinha do tempo dos baleeiros em que, armado de arpão e coragem, não era crime dar caça aos cachalotes”. Só que o mundo dá umas voltas danadas, e o que era a vida de uns, por razões dessas muito fortes mas sem deus, torna-se um pecado capital, crimes terríveis. E ele, dando por si mais tempo em terra, “sentado no café como se estivesse sentado num quadro pintado por alguém que soubesse exactamente as cores da sua paciência e, por que não dizê-lo?, da sua tristeza”, sabe que não lhe restam trunfos nem fichas, e já se adivinha o desfecho do pequeno conto que arrancara com ele a dizer-nos: “– Só há um modo de calar o mar, ninguém o cala”. Então, um dia é visto a sair do café e entrar num bote. “E foi remando. Estranharam ele não voltar./ Só há um modo de calar o mar. Deixando de o ouvir.”

O motivo por que estas “historietas” não se ficam pela “ornamentação dos lugares-comuns” de que Nabokov acusava os autores menores, esses que vivem das “noções tradicionais que podem ser retiradas da biblioteca itinerante das verdades públicas”, esses que não se incomodam com a reinvenção do mundo, mas “tentam simplesmente espremer o melhor que podem uma dada ordem de coisas, a partir de padrões tradicionais da ficção”, é o facto de estas narrativas viverem justamente dessa incomodidade. Se de algumas não se pode dizer que arrisquem grande coisa para lá dos tais limites estabelecidos, produzindo meros divertimentos “agradavelmente efémeros”, o certo é que Abel Neves escreve revelando um grande cansaço da literatura. E não veste, como as nossas dondocas que gostam muito de fazer que sim com as cabecinhas enquanto não se adormecem a si mesmas e a quem perde tempo com elas, esses disfarces gentis em que a ficção deste tempo, como de outro qualquer, é tão pródiga. E, a este respeito, a única distinção do nosso só pode ser o modo como vem triunfando a literatura das amenidades, uma lei das compensações, como se os livros fossem lulus de colo, gatinhos para adornar o tédio de umas madamas que, ao invés de serem elogiadas pelos centros de mesa, querem elogios pela forma como compõem ramalhetes narrativos.

Não se reclamando um dinamitador da literatura de cordel cheia de tiques modernos que se pratica entre nós, nestas prosas lê-se uma difusa sensação de desconforto, e elas debatem-se com a própria questão de se saber “para quê?”. Isto, escrever. Mas a quem? Os textos trazem o tabaco para o autor, sobra algum ainda para o eventual leitor, e, por meio de uma série de quadros instigantes, a questão vai e volta: “Onde vamos?” Enquanto isso, a própria escrita é afectada, experimenta-se, recusa-se ao mero entretenimento, a transformar-se num passatempo ou num chá das cinco. 

Um chama-se “Naturezas”. Aqui fica, inteiro: “Num instante a natureza morta começou a cantar. O pintor recuou. Era o galo que acabara de matizar ao lado de uma mão cheia de frutos e um ramo de louro. Acresce que o bicho estava degolado, mais morto do que a própria natureza morta. O bico roçava um pêssego e talvez por isso tivesse ressuscitado uma antiga alvorada. O pescoço descaído sobre o louro, as asas tapando as pernas com pudor, o galo não parava de cantar. O pintor aproximou-se do cavalete e fechou o bico da ave com um pouco de ocre do pêssego. O galo calou-se, e logo o pintor ouviu uma surdina de cores. Era o coro dos frutos. Pousou os pincéis e saiu. Na rua olhou para a janela do ateliê. Quem diria que lá onde estava o quadro os frutos cantavam como um galo?”