‘Hoje tudo acaba numa ameaça de processo’

Durante um almoço-debate promovido pelo International Club of Portugal, o advogado Rogério Alves alertou para os perigos da ‘judicialização do Estado’.

O antigo Bastonário da Ordem dos Advogados, Rogério Alves, alertou esta semana, durante um almoço-debate promovido pelo International Club of Portugal, para os perigos da «judicialização do Estado, da vida pública, da vida desportiva e da vida social» e a necessidade de voltar a existir um «Estado justo».

«Hoje, tudo desagua ou num processo ou pelo menos numa ameaça de processo (…) vivemos entre a ‘arguidomania’ e a ‘arguidocracia’ – quem é constituído arguido fica como que neutralizado para a vida pública. Como os processos demoram muito tempo na sua tramitação, esta neutralização pode demorar anos. Hoje é relativamente fácil fazer com que alguém seja constituído arguido – assim, descobriu-se um método relativamente fácil de neutralizar adversários. A isto eu chamo um dos sintomas mais doentios da judicialização da vida pública», afirmou ao advogado na passada terça-feira.

Para Rogério Alves, existe outro fator relevante que fomenta este problema: o imediatismo e a relevância dada aos assuntos. O advogado defende que é no debate público que «são criadas reputações, que se destroem e elevam pessoas, que quase tudo se decide. Mais até que nos tribunais». Os órgãos de comunicação social têm um papel preponderante neste debate e alimentam a rapidez com que se desenvolve: «as televisões, as rádios, e os jornais não podem ficar muito tempo a viver da mesma coisa, a não ser que se tratem de casos de grande envergadura. Os mais pequenos são rapidamente substituídos, sob pena das audiências diminuírem. Este julgamento comunicacional é próprio de um estado judicializado».

O advogado falou sobre a importância de um aspeto fundamental da Justiça e que, num debate público, acaba por ser descurado: a presunção de inocência. «Se este fator não existisse, não valia a pena haver julgamento (…) No estado judicializado não há tempo para a presunção de inocência. ‘Eu vi, eu já sei o que aconteceu. Se ganha 3000 euros e tem uma casa que vale um milhão é um bandido, não vale a pena indagar mais’», exemplificou. Rogério Alves defende que os tribunais acabam por ser influenciados por estes debates: «Um violador vai ser presente a juiz e este não encontra nada de especial para o colocar em prisão preventiva, mas os jornais escrevem há 15 dias sobre este caso. Se o juiz decidir libertá-lo, tem de se preparar» para um julgamento na praça pública. 

Já no final da sua intervenção – que contou com vários nomes de relevo na assistência, como o coronel Vasco Lourenço, os antigos presidentes do Sporting Dias da Cunha e Godinho Lopes, o economista António Rebelo de Sousa e o antigo presidente do CDS-PP, Ribeiro e Castro -, Rogério Alves alertou para os principais perigos  deste novo ‘sistema’: «para o Estado judiciliazado, a atividade de julgar só compensa se no final existir uma condenação, no justo nós sabemos que o julgamento conduzirá ou à absolvição ou à condenação e que ambas devem ser aceites pela comunidade por corresponderem àquilo que foi a avaliação e o apuramento feito pelos tribunais; No Estado judicializado, as pessoas têm sede de vingança, querem fazer vítimas, enquanto no Estado justo tem de se julgar e a decisão é uma consequência desse ato».

Jornais devem ser punidos? 
Já na fase de debate, o tema central das intervenções foi a violação do segredo de justiça. Este é um assunto que tem estado na ordem do dia, desde que veio a público o caso e-toupeira, que investiga fugas de informação confidencial de processos judiciais ligados ao mundo do futebol para a esfera do Benfica. Para Rogério Alves, Portugal devia adotar medidas que já existem noutros países, como a Inglaterra, e punir aqueles que compactuam com este crime.

«Em 2007, quando era bastonário da Ordem dos Advogados, foi feita uma proposta de algo que existe em Inglaterra, por exemplo: quando o juiz diz que uma peça está em segredo de justiça e um jornal divulga a informação, o órgão de comunicação que publicou o artigo é punido. E assim levar-se-ia o segredo de justiça a sério. Isto é o que acontece em Inglaterra, o que acontece nos EUA e o que não acontece em Portugal», explicou.

O advogado admitiu que, de acordo com a lei portuguesa, é difícil identificar responsáveis: «Em Portugal, um jornalista diz que não violou o segredo de justiça, pois o autor do crime foi aquele que lhe entregou a informação. Assim é quase impossível chegar a uma conclusão» e a uma forma de travar este problema.