Ruy Cinatti. O Padroeiro desta nossa pátria insana

Desamparado, o poeta construiu a sua dura fantasia e tirou notas de tudo o que sonhou e sofreu. Antes da reunião da obra na Assírio & Alvim duas antologias haviam resgatado a nudez destemida e encantadora de um português que passou trabalhos, mágoas, humilhações, mas a quem hoje foi feita justiça

Já não é tão menina e só por graça insistem em carregar com o "moça". Tem crescido com clara perda para a sua forma, para os modos de refinada antiguidade. Cidade-mito, a pose que os séculos lhe souberam incutir ainda a vai resguardando daqueles que pagam o que for preciso para edificar a sua estupidez. Num dos seus arroubos lúcidos meses após a espantosa madrugada dos cravos, Ruy Cinatti passeou a seu lado, tomando-lhe o pulso, pressentindo o futuro em que viria a esbarrar todo o seu passado. Viu Lisboa à cabeça de uma "Europa medrosa", viu-a sofrer indecisa, pobreta/ricaça, automóvel/carroça, e sentiu-a "funesta" como se fosse a morte e já não os velhos quem assomava às suas janelas. Depois veja-se o soberbo engenho do poeta nesta quadra perfeita: "Lisboa congraça,/azuleja a vista./Lisboa alimenta,/futuro, egoísta." Menos de três meses havia ela "passado/ um dia de Abril", já não escapava à evidência do quanto era "fecunda/em filhos da mãe…" ("Fado Corrido", 20.7.74).

Como Kavafis quis Alexandria, Cinatti desfez-se na capital de um império abolido. Foi, aliás, um dos poucos que tinha a voz muito tocada pelo gosto de ter conhecido as províncias, ter medido a passada de gigante da pátria entretanto exausta. As suas "Lembranças para S. Tomé e Príncipe" definem com contornos de uma "precisão íntima" aqueles dois pontos recortados "no mar imenso". Ligou-se ainda mais profundamente a Timor e às suas gentes. Os amigos testemunham como o homem que de lá regressava trazia uma dor que mais e mais o encostava à loucura. Era português num sentido tão lato quanto íntegro, vivo, com um tipo de convicção que hoje caiu em desuso. Mais que ele foi é difícil. Quantos afinal poderiam assinar estes dois versos sem cair num patriotismo bandoleiro: "Se não fosse português matava-me/e acabava de uma vez com a raça."

Como Kavafis – que em vida não publicou um só livro, mas dos seus poemas mandava fazer umas cem cópias e as confiava a amigos e a leitores escolhidos –, Cinatti viria nas décadas de 70 e 80 a adoptar também este modelo das chamadas "folhas volantes", distribuindo centenas de poemas pelas ruas, pelos lugares acesos de vida no centro da cidade, pelos restaurantes, cafés e bares. O Chiado, o Cais do Sodré, o velho mapa. Menos parcimonioso que o poeta grego, que deixou pouco mais de centena e meia de poemas, sendo-lhe reconhecido o constante e exemplar trabalho de reelaboração, de apuro, o português aceitou o risco de deixar o ombro descoberto, dar ao leitor o produto de horas fortuitas tanto como das mais aziagas. Gesto de um extremo desprendimento num autor consagrado, com edições nas melhores casas e um fero percurso de mais de 30 anos. Era, ainda por cima, um dos co-fundadores da prestigiada revista "Cadernos de Poesia".

Muitos dos poemas que Cinatti distribuiu eram francamente maus. Quem com ele se cruzava, se lembra de o ver passar ainda, distingue-lhe bem a figura, porque era um senhor, mas já meio derreado, às vezes um pouco e outras muito levado no ondeio etílico. O senhor às vezes lá perdia a razão vertical e tinha de se sentar no passeio, ia-se a compostura, essa coisa que para a Lisboa "do parece mal" não estaria certo. Também não escolhia muito a quem. Se reconhecia alguém, era o cumprimento e tome lá, faz favor, espero que goste. Nas casas regulares, às vezes, era a eito. Entre gente-panfleto, um gesto tão vivo ainda parece mal. Escrever poemas e ir pelas ruas a dá-los.

É curioso que ao depararmo-nos com alguns dos mais pujantes versos que escreveu, sobrevenha a sensação de que foi buscar ao persistente desafio do fracasso alguns dos seus momentos mais elevados. Estamos com um poeta sem grande receio de cair no ridículo, que, desarmante no seu modo directo, trazia muito o coração a nu, disperso ali às vezes, para logo aqui bater tão certeiro que nos força o sangue a abater-se numa vénia.

Nunca se antologiou e, então, deixou a tarefa a quem pudesse interessar-se. Depois de, em 1981, ter aparecido com o consentimento de Cinatti uma antologia anónima na editora Regra do Jogo, "56 Poemas", agora surge "Corpo Santo", por iniciativa de Manuel de Freitas, na editora que dirige com Inês Dias, Averno. Mais que a iniciativa é preciso reconhecer nesta edição um prodigioso esforço de recolha e selecção dos poemas. Descontando a circulação na sua versão policopiada, dos 58 poemas agora antologiados quase todos permaneciam inéditos.

Encontram-se aqui composições que formam uma surpreendente unidade, com a inesgotável obra presenteada assim por uma súbita adenda de genial fulgor. Um "resgate" que lança um novo capítulo,mais até que isso, um livro novo, marcante tanto pela força e coerência como pelo grito que décadas depois se faz ouvir com uma "perturbante" actualidade no que toca às suas "denúncias políticas", como Freitas refere. Vale a pena citar na íntegra o poema "Alfaiataria", escrito a 5 de Dezembro de 1974: "O perigoso ofício do governo/quando imoral conduz à catástrofe./O meu país anda à beira do abismo,/replica em vão com voz lamentável.//Não são os vivos que mais nos obrigam/a defender as impossíveis causas,/tão-só, de libertos, os lembrados/esclarecidos mortos que nos fitam.//São os mortos os que mais exigem./São elos vivos na memória gasta./As leis dos homens nada podem/contra a vontade de um cidadão livre.// – Esse que quando despe o uniforme/já outro veste, que o justifica/homem, insecto, passando por ave,/metamorfose, ficção científica."

Esta edição prova o papel decisivo de um leitor empenhado na reanimação e reactivação de uma obra. Cuidar dos vivos passa necessariamente pela justiça com que enterramos os mortos. Na parca nota introdutória, o organizador descansa atrás do critério "assumidamente pessoal" que orientou esta selecção em que "convivem poemas místicos e políticos". É o resultado final que virá depois tornar muito evidente a enorme justiça desta leitura. Freitas recupera este "elo vivo" da nossa "memória gasta", ouve Cinatti, dá-lhe o braço na rua, ampara-o, mostra a grave inteligência "esclarecida" deste poeta que, morto, continuamente nos "fita", nos exige que prossigamos a defesa das "impossíveis causas".

"75 Poemas" é outra antologia proposta também por Freitas, desta vez com a toda a obra de Ruy Cinatti em pano de fundo. Rendida ao mesmo critério "pessoal", é um bom acesso ao poeta e que nãocede à pretensão de traçar-lhe um retrato definitivo. Vale a pena, embora agora-agora este investimento fique um tanto ofuscado pela edição anterior. Surgem as duas com semanas de diferença, mais valia espaçá-las. Na comparação forçada, a esta falta a singularidade da outra, nem tão tão coesa nem tão guiada. A lógica de encadear os poemas pela ordem que traziam das edições originais deixa poços de ar e degraus difíceis em certas passagens. Seria proveitoso arriscar uma ordenação própria. Seja como for, fiquemos todos de acordo nisto: temos mais é que estar gratos.