Alberto Pimenta. A desarmante lucidez de um monstro do inesperado

Nos 80 anos do mais político dos poetas portugueses, e depois da prenda de aniversário que lhe deu Edgar Pêra no IndieLisboa, com o seu novo filme “O Homem Pykante- Diálogos com Pimenta”, recordamos a singularidade da sua obra

Como uma água no rosto, que de tão fresca o muda, lhe arranca a máscara do cansaço, pinta feições vivas, até agarotadas, ou uma expressão de espanto antigo como o mundo, é assim que se nos dão tantos versos de Alberto Pimenta. Têm um embalo e revolta, um vigor de antes da revolução, um descaramento, uma sem-cerimónia; ele chegou arrancando de si essa besta criada num medonho habitáculo, um país que se encaverna, lança uma distância só para pregar uma partida, lixar-nos uns passos mais à frente, neste sítio que começa por nos situar tão mal, antes de tudo em relação a nós próprios, às nossas convicções, este poeta furou a coisa tresvariando.

Fez sair de si um "Labirintodonte" – título que marca a estreia de Pimenta, em 1970 –, e usou da própria censura, do esquema debilitante, e dessa vigilância embutida em cada um, para montar com as partes da arma que nos tolhe a sua razão de língua de fora, esse bicho escarnecedor, reflexo que deixa em cuecas o original, e o persegue, ri-se dele até invadir-lhe os sonhos. Pegue-se num poderoso, desses mais enfatuados com o som da própria voz, os estentóricos que puxam pelo acento mais belicista do verbo, convencidos das suas artimanhas, basta passar um pouco de Pimenta e não passa já de um cerdo bom para ir ao forno. Diante de um mundo enfileirado na linha de montagem, surge um desmontador, um tipo cujo gosto é escaqueirar, pegar numa coisa dessas prodigiosas, toda técnica, linhas sumptuosas, mil funções… um pouco de Pimenta e logo fica feita num berbicacho.

Não há nada de novo em levar em conta a qualidade política deste poeta, o músculo que foi ganhando da apanha ao filho-da-puta: pequeno ou grande, por cima da gravata lança-lhe uma das suas. Mas, do lado de lá do Atlântico, e quando deste parece às vezes tão isolado, Pimenta tem contado, de há uns anos, com uma cumplicidade tão firme que causa inveja. A de Pádua Fernandes, poeta e ensaísta brasileiro igualmente ardiloso na desmontagem de vícios de ordem política. Foi ele quem mais longe foi ao apontar esta capacidade de Pimenta para causar a disfunção eréctil nesses figurões abusando de algum poder. Seja como performer, escritor, ensaísta, como professor académico, sempre poeta, mesmo se “rebarbativo”, como notou Maria Irene Ramalho, ele toma a maior das precauções que um artista pode ter: é dos mais empenhados em fugir da repetição, seguir na vanguarda, tratando de propor algo que não tenha já sido feito.

E, desde logo, isto é sinal de uma exigência invulgaríssima num país em que o desinteresse pelo trabalho dos outros passou de pose a uma ignorância assumida em nota de desdém. Pimenta é dono de uma erudição que não esmaga tanto como faz sala, como um ambientador capaz de recriar ali um cenário tão calmante num momento para, no seguinte, usar de efeitos drásticos e baixar uma tempestade sem mais que algumas frases. Ora, num poeta que tanto joga e brinca, esta razão cheia de recursos – “tanta história da terra/ um grão uma asa uma flor/ e depois o imaginado” – faz dos seus devaneios espectáculos de infinitas consequências e ramificações. Ao contrário de tantos poetas, se a nossa obscena época lhes puxa o vómito, em Pimenta, mais do que alguma substância que ajude ao nojo, percebemos um processo de multiplicação, o menor estímulo provoca nele uma “Ascensão de dez gostos à boca” (título de um livro que publicou em 1977, no mesmo ano em que sai a primeira edição de “Discurso sobre o filho-da-puta”).

Entre os que gostam de poesia, ou assim vão dizendo, os leitores de Pimenta não estarão com os que assinam a Vogue-lírica: não andam muito interessados em saber o que manda a Beleza que se vista nesta estação. Talvez à flor prefiram levar com o vaso nos cornos. Não há cá jardim das delícias terrenas; é mais fácil sentir uma mosca infiltrar-se-nos debaixo da pele, um bzz ressoar junto aos ossos. Um dia este poeta morrerá e será qualquer coisa. (“O que morre em mim/ não apodrece,/ seca:/ pode até guardar-se/ nas páginas/ dum livro.”)

Ainda que o tremor não abale muitos, haverá realmente um lugar a menos nesta terra que alguns sentem atravessar-lhes os nervos dos pés até às ideias. Talvez a língua portuguesa dobre os tantos sinos que nela pendurou este seu inspirado meliante capaz de tão rudes golpes por puxar a mão bem lá atrás, ao afecto. E caso alguém estranhe a descortesia do epíteto, vale a pena dizer que a uma hora destas é tarde para virmos cobri-lo de elogios. O melhor será não disfarçar em vénia mesma o mais doce incómodo, e enchê-lo de insultos. Este pelintra não veio para a poesia para se dar ares, não veio pelos tecidos luxuosos, pela alfaiataria, esse modo de cingir graciosamente as formas, mas veio pela capacidade de fisgar o lado mais estafermo da vida, trazer tudo de volta para o recreio, resolver o problema na intimidade de um beijo ou de uma bordoada: “vai a pedra/ de entre os dedos/ sobe à terra que a chama/ na água ao seu redor/ muda de leito e de forma/ irradia então/ puro líquido fulgor/ que até ao mais fundo/ da memória ilumina/ as formas que já tomou/ as que ainda há-de tomar.”

Se este heresiarca soube desenvolver um particular talento foi o de “inter-romper” (para nos servirmos da noção de Maria Irene Ramalho, há muito uma das leitoras mais atentas à singularidade desta obra) o teatrinho, desarmar essas situações de aparente bloqueio, esta encenação dos produtores da geral torpitude. Essa triste dimensão labiríntica do mundo contemporâneo e que, por diversos esquemas de empobrecimento, criam os “escravos do novo tempo”, com os “economistas androides” como pastores. É reconhecendo a violência intersticial do actual jogo político, expondo as tácticas desse “teatro de guerra”, que Alberto Pimenta se reveza entre todos os ângulos possíveis, e arrastando muitas vezes para o banco das testemunhas até o impossível, para nos mostrar como, neste engulho em que estamos metidos, “cada dia/ trabalha/ nova companhia./ mas permanece/ o encenador/ e a peça/ é sempre/ do mesmo autor./ o actor esse fenece/ esse fenece com a cena/ com a cena/ e desaparece./ é um teatro/ realista/ que a toda a hora/ muda de artista.// mas de hora a hora deus melhora”.

Ao contrário da obsessão de alguns artistas e poetas que tudo sujeitam a modelos de ‘realismo’, e o elevam a uma causa, continuando a reforçar o seu prestígio, ele mostra como também este realismo é um aspecto da grande farsa. E se há algo que resulta muito claro da colaboração com o realizador Edgar Pêra (mais um dos grandes cúmplices do poeta), e que ao longo de duas décadas tem vindo a filmar as suas conversas com Pimenta, é como o que está sempre presente no seu trabalho é a obsessão por uma arte que, sabendo não ser socialmente bem vista ou tida sequer como útil, se coloca do lado dos pobres (sim, porra, os pobres!, que em algum capítulo somos todos nós), do lado dos deserdados, dos que chegando à vida logo caíram na merda, e muitas vezes nem forças têm, nem voz, nem a própria merda conseguem atirar à cara daqueles que os põem e deixam ficar assim.