Ricardo Cardoso. ‘Não sou um juiz pressionável nem impressionável’

Nos 25 anos do acórdão de primeira instância do caso do fax de Macau, o juiz Ricardo Cardoso recorda aquele que foi um dos maiores processos que teve em mãos. 

Ricardo Cardoso. ‘Não sou um juiz pressionável nem impressionável’

Escolheu a gruta de Camões, no Parque dos Poetas, em Oeiras, para conversar com o SOL. Entre sonetos, falou sobre o estado da Justiça em Portugal, abordou o caso do fax de Macau – que terminou com a absolvição do governador Carlos Melancia – e desvalorizou a noção de ‘superjuiz’. A pedido do próprio viu o resultado final desta entrevista antes de ser publicada. Em toda a conversa fez questão de deixar um ponto bem assente: acima de tudo, um juiz «tem dever de reserva».

 

Nasceu no Huambo, em Angola. Quando chegou pela primeira vez a Portugal, quais as diferenças que mais o impressionaram?

Não me recordo. Tinha um ano quando vim pela primeira vez a Portugal, para ser apresentado à família do meu pai. Essas questões pessoais não são importantes. Mas não sou um estrangeiro. Vivi sempre dentro do que era o espaço português de então.

Recorda-se do momento em que começou a ter noção que queria seguir Direito?

O Direito foi uma coisa que desde cedo me motivou porque existe uma herança familiar que remonta aos meus trisavô e bisavô, que foram juízes no seu tempo. Era um tema recorrente nas conversas de família.

Quando começou a exercer, a justiça portuguesa não devia ser o que é hoje. Pode fazer um paralelo e recordar as principais diferenças?

A sociedade era muito diferente. A seguir ao 25 de Abril, a Justiça debruçava-se sobre questões do seu próprio tempo: os divórcios e questões relacionadas com a reforma agrária, por exemplo. Havia o pequeno crime, como o furto em viatura – nem sequer era de viatura. A sociedade era muito pobre, as pessoas viviam com grandes dificuldades. Após o tempo de estabilização do sistema democrático, começaram a surgir novos problemas. Antes ainda da integração europeia, já era visível o crime económico – o contrabando de café e a evasão de capitais. A seguir à integração europeia, agrava-se o fator económico, com a atribuição de subsídios. Surge uma corrupção diferente, com interesses económicos superiores, que envolve pessoas com responsabilidades políticas, de vários quadrantes. Ou seja, surgem problemas diferentes que foram abordados de formas diferentes, conforme a aprendizagem.

E essas mudanças implicaram também uma mudança nas relações com o poder político.

Até 1997, existia uma ideia de autogoverno da magistratura de acordo com o que fora o modelo inspirador da constituição de Francisco Sá Carneiro e de Francisco Salgado Zenha, que defendiam um autogoverno dos juízes – os juízes necessitavam de independência, a própria sociedade necessitava de independência dos juízes como garante dos seus próprios direitos. Então, isso vigorou até 1997, desde a Constituição de 76. Na década de 90, começaram a surgir processos judiciais contra titulares de cargos políticos e públicos – como o caso das viagens de deputados que não eram feitas e recebiam os respetivos subsídios, o caso do Ministério da Saúde, do Governador de Macau – que levaram a um relacionamento diferente entre o poder político e o poder judicial. É nessa altura, em 1997, que surge uma alteração na Constituição: acabar com o autogoverno dos juízes e com a maioria dos juízes [no Conselho Superior de Magistratura]. Dois vogais passaram a ser nomeados pelo Presidente da República. 

Sentiu que os juízes andavam a ritmos diferentes no período de adaptação a estes novos casos que começaram a aparecer? 

Cada juiz conhece a sua velocidade e não se deve comparar a nenhum outro. Não cumpre a um juiz avaliar os outros. Só deve pronunciar-se sobre o caso concreto que tem em mãos, em aplicar o Direito e fazer Justiça. Por vezes, o Direito e a Justiça têm relações difíceis, são como um casal… Mas como todos os casais, quando há alguma discussão, ela [a Justiça] tem sempre razão…

É considerado por muitos um ‘superjuiz’, como o espanhol Baltasar Garzón ou o italiano Antonio Di Pietro…

Conheço-os pessoalmente. Sou amigo do Baltasar e conheço o Di Pietro. Falamos sobre essas coisas e temos a noção de que as pessoas criam mitos sobre os outros. Projetam aquilo que querem ver, mas isso não corresponde à forma como os juízes compreendem a sua função. Nós poupamo-nos e reservamos as nossas emoções. Enquanto os advogados gostam muito de falar e incendiar os corações, os juízes são pessoas que estão reservadas a resfriar os espíritos. E compreendem essas visões, mas não se deixam encantar por elas. 

Esse mito é criado quando um juiz, num momento de transição, sem uma base alargada de apoio, consegue ter uma maior velocidade e incomodar os poderes instalados?

Não sei o que está na base da criação deste conceito, mas hoje vivemos num tempo de mediatização e de pouco rigor na abordagem das questões. Essas análises têm de ser feitas sem a parte emocional.

Em 2009, numa entrevista ao SOL, disse que a Justiça estava na sua pior fase e que a tendência era a piorar. Como estamos agora?

Essa análise que tem de ser colocada no tempo: foi na sequência das alterações legislativas que foram introduzidas no código do processo penal no verão de 2008, no sentido de alterar algumas regras e procedimentos, de encurtar prazos dos inquéritos e outras questões técnicas que trouxeram algumas dificuldades no trabalho jurídico, na parte criminal e de investigação. Pela primeira vez na nossa História, essas alterações foram feitas sem uma explicação prévia – normalmente trazem os preâmbulos, nos quais eram dados os argumentos para estas mudanças. O professor Manuel da Costa Andrade até publicou um livro muito interessante de crítica a essa mesma alteração legislativa, que curiosamente se chama Bruscamente no verão passado, como o filme [de 1959, que conta a história de uma jovem a quem tentam remover quaisquer lembranças da morte um primo]. Se calhar foi por isso que escolheu este título… 

Mas hoje vivemos um momento melhor?

É incomparavelmente melhor. Não se verifica hoje um clima de crispação ou conflito com o poder judicial. A justiça chegou a um ponto em que compreende que tem de prestar informações e contas em relação aos seus resultados – e tem apresentado resultados cada vez melhores, que são também resultado de ligeiras alterações implementadas ao longo das experiências que foram surgindo. A partir de mais experiências, atingem-se sempre conclusões que ajudam a tomar medidas mais corretas.

Passemos ao caso do fax de Macau, cujo acórdão de primeira instância faz agora 25 anos.

Não posso falar sobre nenhum caso concreto. Tenho o dever de reserva sobre os meus casos, que me obriga a não me pronunciar sobre os mesmos. Pronunciei-me no processo. Ficou tudo escrito. Pela mesma razão que tenho um dever de reserva ainda maior se me vai colocar alguma questão sobre outro processo que não seja meu.

Então falemos sobre a sua postura na altura. Escreveu-se que atirou o processo para cima da mesa com uma grande teatralidade…

Não houve teatralidade nenhuma, nem protagonismo.

25 anos depois, acha que houve um exagero na forma como as coisas foram divulgadas?

Não houve teatralidade nenhuma. Eu sou uma pessoa que não esconde os seus sentimentos. Sou uma pessoa leal e franca, que diz sempre o que pensa. O que se passou na altura foi algo completamente diferente: há 25 anos, começaram a aparecer as televisões privadas. Ainda antes desse caso, assistimos ao julgamento do padre Frederico em direto! A forma como tudo aquilo se passou chocou-me profundamente, com os jornalistas a perguntarem aos pais o que sentiam após a morte do filho. A desgraça e o luto das pessoas eram explorados de uma forma desproporcionada. Um dia, em pleno julgamento no Tribunal da Boa Hora, entram jornalistas de uma estação televisiva pela sala. Interrompi de imediato os trabalhos. A jornalista mostrou-se desagradada e perguntou-me se, no final, podia filmar a sala. Eu autorizei. Estava em casa quando vi que a jornalista sentou-se no meu lugar, sentou um colega no lugar do arguido e pôs-se no lugar do juiz a fazer o comentário à audiência a que tinha assistido. Percebi que o jornalista já queria fazer de juiz, julgar o juiz e fazer o julgamento. Isso motivou comentários pouco profissionais e pouco esclarecidos, mais emocionais, menos jurídicos como as acusações de teatralidade e de protagonismo. A declaração de depósito de sentença em cima da mesa com a declaração de voto vencido não teve qualquer teatralidade. Até porque eu já o vinha a fazer há vários anos. 

Mas era proibido.

Os juízes estavam proibidos de votar vencidos na altura. Na sequência do julgamento das FP 25 [Forças Populares 25 de Abril, uma organização armada clandestina de extrema-esquerda] houve uma alteração legislativa – tinha havido um voto vencido contra a condenação dos arguidos desse processo pelo juiz Nunes Ricardo e foi feita uma alteração legislativa que tinha como objetivo proibir os juízes em processos penal de declarar voto vencido. No entanto podiam fazê-lo em todas as outras instâncias e todas as outras formas de processo. Ora, isso violava o estatuto de juiz, pois existe uma unidade de estatuto. Isso é inconstitucional. Na altura, eram aplicados dois códigos: o novo e o antigo, para os processos anteriores à entrada em vigor do novo código, no qual era permitido aos juízes votar vencido. Ou seja, os juízes podiam votar vencido apenas nos processos em que o novo código era aplicado. Essa limitação era algo que me causava desconforto. Eu já vinha desde 1989 a votar vencido em vários processos. E eu próprio comunicava ao Conselho Superior de Magistratura o que havia feito, apesar de a lei me dizer que não o podia fazer. Um juiz está sempre sujeito a acusações de protagonismo. Apenas cumpri o meu dever de esclarecer em termos jurídicos as razões da minha discordância.

Mas, na altura, encarou essas declarações como uma acusação?

Não como uma acusação pessoal, mas como uma forma de distorcerem o valor da decisão, envenenar e intoxicar a opinião pública contra os juízes. Mas conformei-me com isso. Chegaram a fazer uma queixa-crime contra mim por ter declarado voto vencido, mas isso acabou por ser arquivado num despacho fundamentadíssimo, que se encontra publicado em vários sítios.

Este foi, provavelmente, o caso que teve em mãos que mais mexeu com o poder político. Sentiu pressões desse lado?

Nenhuma. Não sou um juiz pressionável nem impressionável. Nenhum juiz o é…

Mas é humano…

Sim, mas todos os juízes têm uma compreensão exata de quais são os seus deveres e do que têm de fazer. Nós não temos de ser agradáveis nem desagradáveis, temos de ser corretos e de dizer o que é que achamos em consciência, de acordo com a aplicação do Direito e da Justiça.

Como é que acha que foi possível condenar uns e outros não?

Há normas de Direito que nos levam a compreender como o sistema funciona. Cada homem tem direito ao seu julgamento justo, equitativo, de acordo com as regras do Direito. Os julgamentos são independentes. No caso concreto, o que me está a falar é que o julgamento dos corruptores ativos acabou com a condenação de todos, confirmada por tribunal superior. Já no que respeita à corrupção passiva, ou seja o governador [Carlos Melancia], assistiu-se a uma absolvição por maioria e o recurso foi interposto pelo Ministério Público – com fundamento em erro notório na apreciação da prova – para o Supremo Tribunal de Justiça, que dentro dos poderes que tinha confirmou a absolvição. Temos de aceitar que cada caso é um caso, que se pode provar em relação a muitas pessoas que são culpadas, como pode concluir-se que cada uma delas é inocente. As regras são estas, os julgamentos são separados e independentes, não fazem casos julgados em relação aos outros. Vamos supor que todos aqui nesta conversa vamos roubar uma maçã àquela árvore. Se formos todos apanhados, cada um com uma maçã, um pode ser absolvido e outro condenado, conforme as regras do julgamento. Por exemplo, o polícia que nos apanhou esteve mais atento a um do que a outro e não viu que um fez desaparecer a maçã ou já não se lembra de ter visto a maçã na mão de uma das pessoas, gerando uma dúvida ao julgador. E em caso de dúvida, absolve-se sempre, porque no nosso sistema romano-germânico há mais probabilidades de um culpado ser absolvido do que um inocente alguma vez ser condenado, ao contrário de outros sistemas de direito, como nos anglo-saxónico ou americano, onde há erros judiciários.

Pode dar exemplos?

Na minha experiência toda, só conheci um. Um caso em que absolvi um rapaz acusado de roubo, porque se fez prova pelas impressões digitais que estava inocente noutro processo em que tinha sido condenado – alguém tinha-se apoderado do bilhete de identidade dele e quando foi apanhado a praticar crimes identificava-se com o bilhete de identidade dele. No julgamento a que presidi, gerou-se a dúvida sobre se seria aquela pessoa ou não, independentemente dos polícias dizerem que era. A pessoa era visivelmente perturbada. Mandei tirar impressões digitais e com elas viu-se que não correspondiam às que tinham ficado do manuseamento do bilhete de identidade. Isso demonstra que o nosso sistema dá mais possibilidades a um culpado de ser absolvido do que a um inocente ser condenado. São as regras do nosso modelo.

Disse no passado que não se pode partir a espinha a um juiz. Porquê?

Ninguém pode querer partir a espinha a um juiz, porque este é a garantia da paz social, do Direito. É a garantia dos direitos das pessoas. Além de que também isso é impossível – um juiz está preparadíssimo, sabe as suas obrigações. É impossível partir aquilo que a sua própria natureza, que é o seu fio-de-prumo, a sua retidão. Não se pode partir a espinha a um juiz, como não se pode partir o princípio da retidão.

Deu a entender que na altura em que esteve com esses processos mais mediáticos, as televisões privadas estavam a aparecer e que ainda não se sabia qual o lugar de cada um…

…Quem sou eu para o desmentir.

Foi o que entendi do que disse. Considera que hoje há um maior profissionalismo no jornalismo?

Claro que sim, as pessoas aprendem. Não se pode já ir perguntar aos pais de um miúdo que acabou de morrer o que é que estão a sentir…

O que há de melhor e pior nesta relação entre os média e a Justiça?

A Justiça está mais explicada, presta mais contas, estamos permeabilizados no mundo atual por um conjunto de influências de vários modelos diferentes de Direito. Vivemos um tempo de fertilização constitucional cruzada. Isto é, os modelos de direito, anglo-saxónico, romano-germânico e outros, visando dar mais garantias ao cidadão e agilizar os processos, deixam-se permeabilizar por institutos que vêm de outros ramos de Direito, de outras famílias jurídicas. Do anglo-saxónico, por exemplo, entrou no nosso direito a proibição de aproximação das vítimas, as suspensões provisórias de procedimento criminal. Foram importadas de outros modelos coisas que nos são importantes para o desempenho da função.

Mas o que lhe perguntava era: o que é que há de melhor e de pior na relação atual entre os media e a Justiça?

De melhor temos esse prestar de contas, esse ‘accountability’, esse ‘check and balance’, que adveio do sistema anglo-saxónico. O que temos de pior é a violação da privacidade, a falta de regras, de compreender as fronteiras que há em relação ao indivíduo e aos seus direitos pessoais e familiares. Isso tem a ver com novas experiências e novas invenções: quem legislou há 20 ou 30 anos não podia prever que hoje, com acesso a qualquer telemóvel, temos uma infinidade de redes e sistemas de comunicação, de interpenetração no mundo dos outros. Tudo tem de ser adquirido através da experiência e do que vamos observando. Só estaremos preparados para as novas novidades depois de as experimentar, não no momento em que as vamos enfrentar.

A Justiça hoje toca em toda a gente ou ainda há um caminho que tem de ser feito?

A Justiça não afronta ninguém. Confronta pessoas específicas com atos concretos, praticados pelas mesmas. Não confronta poderes, confronta pessoas e não se deixa atemorizar por nada. Vou contar-lhe uma história que se contava na família: havia um Tribunal da Relação em São Salvador da Bahia e, durante o domínio filipino, o governador chamou os juízes e disse-lhes que tinham um processo que interessava a um familiar dele. Se a decisão não lhe fosse favorável, os juízes iam todos parar à Índia. Os juízes recolheram, falaram uns com os outros, tomaram a decisão que tinham a tomar, fizeram as malas e apresentaram-se no porto para ir para a Índia. E assim acabou o Tribunal da Relação da Bahia. Portanto, é impossível partir a espinha a um juiz.

Mas os juízes são humanos e erram. Como em todas as profissões, há bons e maus, pessoas com interesses que não são profissionais e outras que fazem o seu trabalho de forma muito competente…

Os juízes são profissionais, são como um médico que está a operar um paciente – vai fazer o melhor que sabe para cumprir o seu dever. Não vai deixar o seu paciente morrer…

Mas, como em todas as profissões, há juízes bons e maus…

Um médico não vai deixar um paciente morrer. Se perceber que o paciente é um serial killer, o médico não o vai matar, vai fazer o melhor possível. É a mesma coisa: um juiz não vai mudar o seu pensamento porque se diz que a pessoa que vai julgar é um político ou um serial killer, isso não vai ter influência nenhuma. Não há juízes maus, há apenas alguns com menos experiência e sabedoria.

No jornalismo há maus profissionais, nas restantes profissões também, incluindo entre os juízes…

Não, não há nada… Não há juízes maus e também essa visão de que há jornalistas maus é um conceito pessoal seu…

A Justiça nos últimos tempos tem mostrado estar particularmente atenta ao que se passa em sua casa. Temos o caso Fizz em que um procurador foi acusado de corrupção e levado a julgamento. Temos o caso Lex, em que dois magistrados da Relação de Lisboa estão a ser investigados. Esta Justiça toca em todos e dá mais garantias aos cidadãos?

Não vou falar desses casos em concreto, o que posso dizer é que a Justiça está sempre atenta ao que se passa dentro de casa ou à frente da sua própria casa. Independentemente desses casos, tivemos já outro de um procurador que foi condenado a pena de prisão efetiva por corrupção, no âmbito do processo Dona Branca. Tivemos juízes acusados de corrupção no passado e pessoas condenadas – as pessoas que lhes terão entregue o dinheiro foram condenadas. A Justiça está atenta ao que se passa na sua casa, é uma coisa de sempre. E está atenta logo à entrada das pessoas no Centro de Estudos Judiciários, desde os primeiros passos que dão. Os juízes são permanentemente inspecionados ao longo da carreira. A Justiça hoje e sempre existe para dar garantias à sociedade e aos homens.

Mas a Justiça ganhou mais crédito junto da sociedade. Se a Justiça não melhorou, está a saber demonstrar melhor que não há intocáveis…

O que é hoje novidade é que todas as áreas estão sob maior escrutínio. Há uns anos, ninguém se lembraria de fazer um programa sobre sem abrigo, deixava-se a pessoa morrer. Hoje não, tem tudo uma maior visibilidade.

Sempre que há um caso que envolve um magistrado, os homens e mulheres da magistratura que têm espinha ficam preocupados?

Não me cumpre a mim fazer observações, nem comentários sobre esses processos. Há o Conselho Superior da Magistratura para comentar essas coisas, há a Associação de Juízes. Não vou falar de nenhum caso concreto, nem em abstrato.

Há cada vez mais inquéritos que visam políticos e decisores públicos. É impossível fugir nesta conversa a uma Operação Marquês, a casos como os Vistos Gold. A Justiça tem meios e recursos para investigar casos desta complexidade?

A seguir ao 25 de Abril, o atual conselheiro Gonçalves da Costa fez um julgamento com mil réus, imagine. Era sobre cartas de condução falsas. Juntava 20 de cada vez e acabou o processo. Já nessa altura havia processos desta complexidade. Eu cheguei a ter processos de querela com dezenas de apensações e centenas de réus por tráfico de droga, furtos, corrupção. Tinha tudo, todos os crimes, o acórdão tinha cinco ou seis mil folhas. Ainda há pouco tempo tive um processo na Relação em que julguei uma senhora juiz e a sentença tinha quatro mil folhas. Portanto, sempre houve processos desta dimensão. E sempre houve modos de chegar a uma conclusão, sempre houve meios. As pessoas não se podem queixar de falta de meios, porque outros com os mesmos meios conseguem objetivos e atingir resultados. O que digo é que quando há equipas, como aconteceu em processos complicados como as FP-25, de magistrados a trabalhar em conjunto, os meios aparecem. E do trabalho em conjunto chega-se sempre a bom termo.

Falou dos instrumentos que são trazidos de outros modelos de direito. O que acha de instrumentos como a delação premiada?

Já estou atento a essa polémica há vários anos. Quando há oito anos fui ao Brasil, os colegas brasileiros colocaram-nos essa questão e eu dei-lhes a minha experiência e a experiência do que foi aqui o processo das FP-25 com os seus arrependidos. Falámos sobre o que acontece com os arrependidos, tanto em tráfico de droga, como em terrorismo, como em corrupção. O que podemos ter certeza é que esses métodos de premiar os arrependidos são válidos e legais. E o que temos em Portugal é suficiente, não é preciso mais do que existe na lei. Falar da delação premiada é ir atrás de uma cenoura que vem lá do Brasil. Mas não é necessário, nós já temos mecanismos que asseguram a isenção de pena dos arrependidos. E também temos outras formas de proteger as vítimas, as testemunhas privilegiadas e os arrependidos, já experimentámos com sucesso. Um arrependido, depois de dar esse passo, perde confiança do outro lado, já não reincide.

Disse em 2009 ao SOL que a Justiça estava a atravessar um período mau e com tendência a piorar, mas disse hoje que se respira melhor. O que espera daqui para a frente?

Projeto tempos melhores e favoráveis ao caminho do poder judicial. Depois das experiências que já vivenciámos, há um conjunto de consensos maiores e está atenuado algum fracionamento que existiu no passado dentro da classe. Perspetivo com confiança e otimismo, até pelo trabalho que tenho visto das novas gerações, que nos enche de esperança.