Margarida Salema. ‘Se prescreverem as infrações dos partidos dos anos 2010 e seguintes o sistema perde a credibilidade’

A ex-presidente das Contas e Financiamentos Políticos recebeu o SOL na faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde é docente. Garante que fez muito para pôr fim a ilegalidades e irregularidades, mas que os partidos ainda não são um exemplo em termos financeiros.

Esteve durante oito anos à frente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, tendo regressado há pouco tempo aqui à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, qual é o balanço que faz do tempo que esteve naquela entidade?

Foi um pouco mais do que oito anos, foram oito anos e meio, uma vez que me foi pedido pelo presidente do Tribunal Constitucional (TC) que ficasse até às eleições autárquicas de 2017. Houve dois mandatos e mais um pedaço. Foi um tempo muito intenso em termos de trabalho, muito desafiante e interessante em termos de corresponder aos objetivos que o então presidente do TC, o professor Moura Ramos, tinha quando me chamou para presidir à entidade das contas – naturalmente que é um cargo sujeito a eleição no tribunal. E os objetivos eram colocar as contas em dia, os processos estavam muito atrasados: quando cheguei em 2009 ainda estávamos na avaliação das contas anuais de 2007 e desde logo havia que acelerar os processos que estavam em curso. E fazer face ao período mais complicado que houve nestes anos, que foi o de 2009 – neste ano há três eleições seguidas (europeias, legislativas e autárquicas) em que os gastos e as despesas eleitorais ultrapassaram limites razoáveis. Não tenho agora os números na cabeça, aliás uma das necessárias funções de presidente da entidade é ir esquecendo-se dos números dada a quantidade de processos que vai analisando ao longo do tempo (risos). 

Mas por alto…

Tenho ideia de que em termos de subvenções estamos a falar de mais de cem milhões de euros. E era uma época em que já tinha sido declarada a crise financeira e estava iminente uma crise económica, como internacionalmente já era sabido – ainda que em Portugal vivêssemos num outro mundo à parte.

Falou em ultrapassagem dos limites razoáveis, não quereria dizer limites legais?

Sim. Sobretudo porque na época verificámos que os montantes das subvenções eram elevadíssimos e que os montantes das despesas eleitorais também eram muito elevados. Naturalmente que as ilegalidades foram todas observadas no que respeita à ultrapassagem dos limites das despesas eleitorais, o que era possível ser verificado na altura foi verificado. A experiência de 2009 foi muito difícil, tivemos de pôr em funcionamento o sistema de verificação das despesas no terreno – algo que os partidos encararam mal, não compreendiam porque é que nós íamos verificar o número de pessoas que estavam num comício, ou o número de brindes que eram distribuídos, ou o número de atividades de caráter eleitoral que eram desenvolvidas. 

E que mais deu trabalho mudar?

Havia uma norma na lei que apesar de todas as alterações que foram feitas até à atualidade, inclusive estas últimas de abril de 2018, nunca foi alterada e que me parece uma norma irrazoável é o facto de se considerar que despesa eleitoral é toda a despesa praticada nos seis meses anteriores ao ato eleitoral. Parece-me absolutamente fora de propósito que as despesas eleitorais possam ter lugar seis meses antes da data do ato eleitoral. Ainda nem se sabe quando é o ato eleitoral e já temos de estar a ficcionar uma data de um ato eleitoral e ficcionar o início dos seis meses para poder fazer a observação que a lei manda que a entidade faça. Houve, portanto, dificuldades grandes não só para aplicar a lei, não só para criar um sistema de aplicação da lei, mas também pelas reações dos partidos no terreno às ações de fiscalização da Entidade das Contas. Foi um ano muito difícil, que só tem comparação com 2013, também pelas eleições autárquicas.

Cada ano de autárquicas era uma dor de cabeça?

O modelo que a lei prevê para a fiscalização das contas das eleições autárquicas é um modelo quase impossível de aplicar, contudo a Assembleia nunca alterou esse modelo, por isso um ano de eleições autárquicas é um ano complexo.

Dizia que 2009 só tinha comparação a 2013…

Não sei o que é que o tribunal entendeu sobre as eleições autárquicas de 2013, o parecer foi entregue no TC e não houve decisão até à data, de acordo com a nova lei esse processo provavelmente será remetido à Entidade das Contas para decisão – o que é algo inimaginável do ponto de vista do direito. Trata-se da aplicação retroativa de uma competência de um tribunal passar para um órgão administrativo que foi ele próprio que fez a auditoria e a análise da matéria. Não tenho a menor ideia como é que este imbróglio vai ser desatado. 

Acha que esse imbróglio vai ajudar a que mais prescrições venham aí, além das de 2009?

Disso não tenho dúvidas. Segundo vi nos jornais, nestes acórdãos que saíram seguidos, o TC ao pronunciar-se sobre as contas anuais de 2009 referiu que muitas das infrações tinham prescrito. Eu li o acórdão e prefiro não fazer comentários, deixarei os meu comentários para um trabalho académico, porque efetivamente não faz sentido nenhum.

E como cidadã, está preocupada?

Claro que estou. Nenhum cidadão cumpridor – não estou a falar dos cidadãos que sistematicamente incumprem, que não pagam impostos – gostará de saber que houve prescrições de infrações. Não consigo entender como é que esta situação é tratada de uma forma tão leviana, peço desculpa pelo termo.

Porquê a repulsa dos partidos à fiscalização? Não se exigiria um comportamento exatamente oposto?

Essa pergunta é importante, porque se efetivamente os partidos nada têm a esconder, qual é o problema de terem ações de fiscalização sobre as suas atividades públicas. Não estou a falar de ir a uma reunião privada de um órgão de um partido. Estou a falar de atividade públicas em locais públicos ou privados, que foram previamente arrendados para o efeito de um comício, um cineteatro, um pavilhão multiusos… Ou qualquer outro local que está à disposição do público e, portanto, não percebo porque é que houve más reações (mais por parte de uns do que de outros. Os grandes tiveram uma reação; os pequenos tiveram uma reação oposta, de dizer: ‘mas porque vêm aqui se há outros com mais despesa’). Éramos presos por ter cão e por não ter, todos tiveram reações adversas nesses anos iniciais. Foi preciso reuniões gerais, reuniões bilaterais com os partidos para ir tentando explicar como é que a entidade encarava a sua função, de aplicação da lei. Não fazíamos mais nada, agora se me pergunta: Aplicaram a lei de forma firme e rigorosa? Eu respondo: sim. Mas também não tenho outra maneira de olhar para a lei, não olho para a lei de forma flexível. Se a lei diz que são seis meses, são seis meses, não são seis meses mais um dia. 

Mas achavam que podiam alargar o período dos seis meses?

Os partidos entendiam que podiam fazer despesas no dia do ato eleitoral, ora nós entendemos justamente o contrário. Porque a lei diz que do ponto de vista material só contam despesas com intuito eleitoral, ora despesas depois da noite eleitoral já não têm intuito eleitoral porque as pessoas já votaram, além de que falamos de despesas de seis meses antes do ato. As do dia do ato ou posteriores naturalmente não eram consideradas. 

Era uma prática que interessava aos partidos.

A lei é feita pela Assembleia, as reações eram más porque dependiam das contas de cada partido: se um partido queria pôr as despesas do ato eleitoral e ganhava, naturalmente dava-lhe jeito pôr como despesa eleitoral para efeito obtenção de subvenção, como é óbvio. E, portanto, se o número de votos aumentava, coisa que só se sabe no dia do ato eleitoral, já pode compreender que se o voto é alto…

Metia-se ali mais umas despesa…

Naturalmente que sempre estivemos muito atentos a isso, como também estivemos à questão do IVA nas campanhas eleitorais. Mantivemo-nos na nossa opinião, independentemente de concordarem ou não connosco nunca entendemos que tínhamos o monopólio da razão e sobretudo não tínhamos o monopólio da decisão. Nós fazíamos pareceres, o tribunal é que decidia e nem sempre concordou connosco ou achou que não era da sua competência – em coisas mais ou menos importantes. E há casos em que uma mesma situação pode ser simultaneamente contra ordenação e ilícito criminal. Aí entendíamos que deveria ser o MP a entender avançar com ilícito criminal ou não o fazer, a lei tem muitos problemas e infelizmente os verdadeiros problemas que a lei tem não foram devidamente analisados neste processo legislativo lamentável que decorreu no ano passado e este ano. Já dei pública nota disso, há pontos que ninguém observa mas que são de uma importância enorme. Por exemplo, o poder regulamentar que foi retirado à entidade. 

Em que se traduzem estas recentes alterações.

A entidade passou a ter muito mais atribuições, todas as do tribunal e do MP, mas retiraram a competência para emitir regulamentos sobre procedimentos contabilísticos.

Ou seja, sobre a padronização necessária à fiscalização…

Pois. Neste momento cada partido faz o que quer…

Mas o cumprimento dos regulamentos anteriores da entidade não está a ser garantido?

Olhe, boa pergunta, terá de a fazer à Entidade das Contas na sua formação atual, se aplica ou não os regulamentos que estavam em vigor ou se eles caducaram. Mas isso já é uma questão de caráter jurídico e o professor Figueiredo Dias [atual presidente da Entidade das Contas] é especialista em direito administrativo, portanto…

Voltando ainda à reação adversa dos partidos, acha que é sintomática de que outras entidades não tratam os partidos da mesma forma no que toca à aplicação da lei?

Penso que não é bem isso. Temos de olhar para os antecedentes da lei de 19/03. Nos antecedentes desta lei que eu vim a aplicar, o que acontecia é que nos orçamentos do Estado colocavam-se alterações à legislação de financiamento dos partidos. Sempre houve. Sempre houve um encapotamento muito grande em matéria de legislação de financiamento partidário eleitoral, o que desde logo é bastante preocupante, porque vai contra o princípio da transparência que está na Constituição. Se formos ver a história da lei 19/03 e depois da lei de 2005 sobre a Entidade das Contas e a sua criação vamos encontrar deputados que fizeram discursos parlamentares a dizer que o sistema de fiscalização dos partidos era inexistente e não funcionava. E foi por isso que fizeram essa lei. 

E se cria a Entidade das Contas.

Em 2005 passaram a fiscalização das contas das campanhas da Comissão Nacional de Eleições para o Tribunal Constitucional, criando a Entidade das Contas para coadjuvar o tribunal nessa função. Naturalmente que temos um primeiro momento, com o meu antecessor de 2005 a 2009, e eu chegou num segundo momento em que me é pedida aplicação da lei com rigor máximo. Foi o que eu fiz, da melhor maneira que podia e com os recursos magros de que eu dispunha. 

Eram assim tão magros? Em muitos outros países não será uma estrutura idêntica?

Muitas vezes os jornalistas me perguntaram quantos recursos é que tinha e eu nunca respondi a isso, nem nunca dei uma entrevista em nenhum dos meus mandatos. Quando tive de ir em nome do Tribunal Constitucional junto do GRECO – Grupo de Estados contra a Corrupção – em Estrasburgo uma das recomendações foi sobre o sistema de fiscalização, que em matéria de recursos humanos e materiais diziam ser ridículo, era utilizada outra palavra. Vejo agora que as coisas não melhoraram grandemente, podem ter melhorado um pouco. De facto, se a entidade vai ter um novo papel, então desse-lhe autonomia.

Quando fala em poucos recursos humanos estamos a falar concretamente do quê?

Estamos a falar dos três membros da entidade – a presidente da entidade em full time, um revisor oficial de contas em part-time e um outro elemento que trabalhava sobretudo na área das ações e meios de campanha e propaganda política. Depois estamos a falar de uma secretária, uma funcionária e um assessor a recibos verdes. Pessoas para atender telefones e pouco mais, tivemos um trabalho muito grande. Ao GRECO disse que este sistema tinha poucos recursos mas que tinha a vantagem de ser flexível, porque podíamos contratar as auditorias junto do mercado. Fazíamos e fizemos concursos para contratar empresas de auditoria para trabalhar connosco, quer nas auditorias das contas anuais, quer nas das campanhas – há que acrescentar isto aos meios que tínhamos. Trabalhei com várias empresas de auditoria, muitos revisores oficias de contas… 

Era preciso mais do que uma empresa?

Trabalhei com muitas empresas e muitas pessoas. Os partidos também umas vezes não gostavam que se mudasse a empresa de auditoria, porque havia constrangimentos nas auditorias por causa das práticas adquiridas com os revisores antecedentes.

Falou ainda há pouco de 2009 como um dos anos mais complicados. Além das irregularidades nas contas anuais nos partidos foram detetadas várias subvenções pagas em excesso para as autárquicas desse ano, que ainda não foram devolvidas na íntegra pelos partidos à Assembleia da República.

Essa decisão do Tribunal Constitucional foi muito corajosa, talvez uma das melhores decisões do TC nesta matéria. Foi muito corajosa porque o tribunal fê-lo, embora dissesse que não tinha poderes para determinar a devolução das subvenções recebidas a mais, e porque não estavam ainda arrumadas as contas. E o Tribunal de Contas tomou nota…

Nunca lhe fizeram avisos por ser incómoda?

No princípio os partidos mostravam a sua insatisfação, isto foi um caminho, depois foi-se encontrando uma forma de tornar o processo mais objetivo e transparente. Nunca me considerei ameaçada, também porque fui deputada e acompanhei todo o processo revolucionário desde 1974, tenho uma atitude mais aberta. Considerei sempre alguns excessos como linguagem política. Chamar analfabeta a alguém para mim não é um insulto, uma difamação, para outras pessoas será. O mesmo quando se chama fascista ou comunista ou contrabandista ou outras coisas… isso era a linguagem política usada nos tempos da revolução. Sempre tive um grande à-vontade.

Mas sempre foi uma pessoa interventiva, muitas vezes criticada por pedir explicações a determinadas entidades…

A partir de certa altura, entendi que mais do fazer relatórios e pareceres, deveria agir preventivamente e proativamente e nesse papel desenvolvi diligências junto de várias entidades, pagadoras de subvenção, como a Assembleia da República, entidades fiscalizadoras de impostos como a Autoridade Tributária, autoridades encarregadas de investigação criminal, como o MP e a PJ. Nos processos que foram desencadeados pelas autoridades judiciárias, sempre que os Departamentos de Investigação e Ação Penal e a PJ entenderam pedir esclarecimentos, os mesmos foram dados. Sempre que encontrei uma infração, fosse de que natureza fosse, foi comunicada, tendo os partidos conhecimento de tudo. O meu feitio é muito escrupuloso, detalhado no sentido obter o máximo de eficácia e de eficiência na análise das contas.

O que disseram pior de si?

Um partido uma vez disse que nós éramos os algozes, houve quem nos chamasse o braço armado não sei de quê… Até respondi que não admitia a ofensa porque não tínhamos armas. Houve mandatários e responsáveis financeiros que nos chamaram todos os nomes. Mas as entidades que colaboravam em todo o processo foram tendo uma evolução em crescendo. E isso foi-se notando ao longo das autárquicas de 2009 e depois de 2013 – que foram muito complexas por causa do duplo mandato, não se sabia quem é que se recandidatava e quem é que não se recandidatava e isso acabou por ter impacto financeiro. E tudo o que tinha impacto financeiro interessava à entidade, que não se preocupava se o conteúdo da mensagem do partido era correto ou não era. Só tratávamos da tradução financeira das questões. Quanto custava, quem pagava e quem é que não pagava e à medida que fomos avançando, há contas anuais todos os anos, percebia-se a evolução. Está tudo no site. Se reparar nas publicações das contas das campanhas vai ver que é a loucura total, mais de 30 ou 40 mil contas e se me fala de 2009, o meu raciocínio vai para 09, 13, 17. Nas autárquicas as entidades queixosas – ou seja, as que tinham queixas da entidade – eram órgãos do poder local. Quando se verifica que há ali situações difíceis de despesas, por exemplo, de despesas feitas por um partido e cuja fatura era enviada para a junta de freguesia para ser paga por esta. Este é um exemplo, são muitas coisas deste género e que já têm a ver com o âmbito de atuação de outras entidades.

Nos últimos anos as isenções de IVA para os partidos também foram polémicas. Sei que já abordou o tema publicamente, mas o que acha que continua errado?

A matéria do IVA não é fácil de explicar. Na última entrevista falei disso a propósito de uma proposta do PS de alteração ao art. 10º da lei do financiamento partidário, segundo a qual os partidos – que já beneficiam de isenção de IVA sobre os bens e serviços que visam difundir a sua mensagem política ou identidade própria através de quaisquer suportes visuais ou multimédia, incluindo os utilizados como material de propaganda e meios de comunicação transporte – passariam também a ter isenção deste imposto a tudo o resto. A isenção passaria a aplicar-se a toda a atividade do partido, com a justificação de que a Autoridade Tributária tinha dificuldade em destrinçar entre o que era destinado a difundir a mensagem política do resto. 

Mas é assim tão difícil essa distinção?

Se um partido vai comprar um computador, a Autoridade Tributária não tem nada de estar a isentar o partido de IVA, mas se o partido vai arrendar um outdoor isso já é para difundir. Os partidos já deveriam mandar esse trabalho feito, distinguir o que é previsto na lei e o que não está – o que não é para receber o retorno do IVA nem deveriam mandar para a Autoridade Tributária, esta era a interpretação mais correta na nossa opinião. Mas quando o PS fez esta proposta disse: ‘Nós só estamos a facilitar a vida à autoridade tributária, porque em causa está um problema burocrático’. E vieram os outros partidos dizer: ‘Isto é o problema das campanhas eleitorais’. 

Acha que se trata de um aproveitamento?

Até aqui não tenho sido muito clara, mas hoje vou ser. Todos os partidos concordam que não têm direito a receber IVA por despesas eleitorais, todos concordaram que não têm direito a pedir retorno do IVA e não pode haver bens ativos tangíveis em despesas eleitorais, ou seja um partido não pode comprar um computador para a campanha eleitoral, se não o computador era reembolsado pela subvenção eleitoral – só pode ser comprado ativo fixo tangível na atividade do partido anual. Bens duráveis não são bens eleitorais nunca, mas foi complicado porque antes compravam-se telefones, mesas, cadeiras… O grande critério tem de ver com questões de lei e contabilísticas. A partir de 2009 os partidos começaram a concordar que não podiam apresentar uma despesa para duplo reembolso, era devolvido o IVA por parte da Autoridade Tributária e depois como apresentavam a despesa com IVA para efeito de subvenção acabavam por receber da Assembleia da República o imposto também como pagamento da subvenção.

Então a isenção de IVA não se aplica às campanhas eleitorais.

A Entidade considerou que não se aplica o art.º 10º às campanhas eleitorais, porque a matéria destas campanhas está regulada noutra parte da lei e porque há outros atores, como os grupos de cidadãos eleitores nas autárquicas e os candidatos nas presidenciais, que também não têm direito ao retorno do IVA. Por razões de igualdade nas campanhas eleitorais sempre defendi que o art. 10º não se aplicava. É uma questão de interpretação da lei para efeitos de auditoria, o tribunal não achou que essa matéria que lhe coubesse tratar e a própria entidade acabou de fazer uma decisão sobre as eleições de 2015 em que diz que essa matéria não é da sua competência. O Partido Socialista, ao contrário dos outros partidos, sempre requereu a devolução do IVA em todas as campanhas eleitorais desde 2009 e portanto tem esses processos todos em tribunal de devolução do IVA. Teve sempre uma interpretação diversa. 

E se a Justiça der razão ao PS?

O risco que isto tem é que se os tribunais vierem a dar razão ao PS, como é que fica a posição dos outros partidos? Entendo que a auditoria tem de se pronunciar sobre esta matéria porque tem de saber quais as despesas e receitas e o que é que a Autoridade Tributária devolveu ou não.

Disse que sentiu uma evolução nos anos em que esteve na entidade. Cumpriu os objetivos?

Senti, o objetivo era chegar num período de 10, 20 anos às contas com irregularidades e ilegalidades zero. Comecei por combater as ilegalidades mais importantes e depois as irregularidades mais importantes. E considero muito positivo o que se alcançou… mas sou suspeita…

Se houver uma atitude menos escrupulosa pode voltar-se à estaca zero?

Acho que se houver uma intervenção mais flexível e se prescreverem sistematicamente todas as infrações dos anos 2010 e seguintes, como pode vir a suceder, que o sistema perde a credibilidade que tinha.

E os vícios podem reaparecer?

Ah claro, ou aparecem outros. A Entidade das Contas, sendo-lhe devolvidos uma série de processos nesta nova formação, sobre os quais não trabalhou, terá dificuldade em reavaliar todos e fazer decisões que antes cabiam ao tribunal. O que considero grave na lei que saiu tem que ver com o período transitório, ou seja, a aplicação aos processos pendentes. O novo modelo deveria ter sido implementado apenas para os processos futuros.

O fim do limite das verbas obtidas pelos partidos com angariações foi muito criticado. Acha que foi um retrocesso?

É um retrocesso, um retrocesso. Se havia coisa importante na legislação portuguesa eram os limites ao financiamento privado. Isto põe em causa a filosofia da lei. Mesmo que se defenda que durante os anos da crise não houve financiamento privado – de facto não, as angariações de fundos não têm expressão, a não ser nas festas que os partidos promovem e onde vão obter angariações de fundos. Considero absolutamente um retrocesso em matéria de financiamento a revogação do limite, os tempos mudam – num ano pode haver muito financiamento e noutros menos – mas tem de haver limitações, sob pena de os partidos estarem num concurso eleitoral em situação de franca desigualdade. 

E quanto aos donativos?

Quanto aos donativos há um limite individual, não há é um teto, uma coisa são os donativos e para os donativos há um regime e os partidos têm de apresentar a lista dos doadores – que é uma coisa que eles não fazem.

Como não fazem?

Alguns até mostram a lista à entidade, mas não deixam que faça parte do processo, defendendo que as pessoas deram sob anonimato. Isto quando se sabe que os doadores dos partidos não podem ser anónimos e que o que se pretende é combater os donativos anónimos. Como os partidos agem numa filosofia contrária à da lei, não posso deixar de considerar que houve um retrocesso. Basta ver o regime dos partidos políticos europeus. É verdade que há uma distinção entre pequenos doadores e grandes doadores, mas por que é que o legislador não arranjou uma solução semelhante? Nesse caso, haveria uma publicação online dos grandes doadores. Em Portugal, nas presidenciais houve vários colegas seus que foram à entidade das contas para consultar as listas de doadores que, apesar de não estarem online, estão lá todas, basta pedir para consultar. 

Porque acha que se fez força para retirar os limites?

Pelas festas dos partidos, como é o caso do Avante!, que extravasam os limites estabelecidos para as angariações de fundos. E ultrapassar o limites definidos pode consubstanciar um ilícito criminal.

Mas os problemas dos partidos alargam-se ao Parlamento. Sentiu isso quando passou a fiscalizar os grupos parlamentares?

O que se verificou a determinada altura foi que não havia uma diferença entre o dinheiro dos partidos e o dos grupos parlamentares. O dinheiro dos grupos parlamentares muitas vezes era destinado ao partido e isso verificou-se sobretudo na Madeira e nos Açores, mas também na Assembleia da República. Quando nos foi dada competência para fiscalizar os grupos parlamentares, começámos a fazer a dessintonia. O Tribunal de Contas tinha poder sobre as assembleias legislativas regionais e portanto fazia perguntas à Entidade das Contas sobre que dinheiro é que entrou da Assembleia nos partidos mas que não pertencia aos partidos, mas sim aos grupos parlamentares, ou seja, para gastar com atividade parlamentar. O que é que se fez? Uma alteração da lei de maneira a que nada daquilo pudesse ser destrinçado. Há o caso do Jackpot da Madeira, uma situação semelhante nos Açores e em menor escala na Assembleia da República.

Como é que foi a sua saída?

Vai ao site do Tribunal Constitucional e procure o discurso de posse da nova entidade em 2016 e veja o que é que o presidente diz da entidade que cessa funções. Fui à posse do novo presidente, para lhe desejar boa sorte e sucesso e tive muito gosto em ver lá os partidos, muitos, que me disseram coisas muito simpáticas. E disseram: ‘Que pena não ficar’. Eu disse: ‘Vocês poderiam alterar a lei e pôr a Margarida como presidente para o resto da vida (risos). Agora tem de vir gente nova’.

Saiu zangada com alguém?

Não, não saí zangada com ninguém, isto para mim é uma questão de interpretação e aplicação da lei, rigor e transparência. Saí com a convicção e a consciência de que fiz tudo para termos partidos com contas claras em Portugal e para não haver indícios de corrupção dentro dos partidos. Tentei, através da contas, combater fenómenos que minam as democracias, como a corrupção, embora não estivesse à frente de uma entidade de combate à corrupção. Ter contas bem apresentadas, corretas e transparentes é um passo importante.

Como vê a operação Tutti Frutti? A Entidade das Contas teve um papel importante para que investigações destas pudessem deflagrar?

Dei a cara muitos anos pela necessidade de rigor das contas, completamente sozinha. O TC é um órgão que não pode aparecer, tem a sua discrição e reserva da judicatura. A entidade era um órgão administrativo e os partidos sabem que o objetivo era preservá-los de fenómenos complexos em matéria financeira.

Mas apercebia-se de pontas soltas?

Encontrámos muitas situações, aquelas que constituíam financiamento ilícito foram canalizadas para os órgãos próprios, as outras também. Esse caminho que se fez teve os seus resultados em termos gerais, até no jornalismo. Ninguém dava muita importância à matéria das contas pelo menos nos anos de 2005 e 2006 e depois a comunicação social começou a dar importância a essa matéria. Aliás, a comunicação social foi fundamental para que essa matéria fosse difundida e para que as contas e as infrações fossem conhecidas. Até porque a entidade era um órgão que funcionava sem imprensa, sem operações de intervenção publicitária ou de marketing. Sempre nos pautámos por uma grande discrição. Mas é obvio que a partir do momento em que mandávamos algo para um partido sabíamos que poderia aparecer nos jornais.

Mas há mais operações a envolver políticos, acha que essa consciencialização chegou à Justiça?

Não tenho dúvidas de que a Justiça hoje está muito diferente, embora muitos destes megaprocessos que envolvem políticos não tenham que ver com os partidos. Mas considero que a Justiça tem, de facto, atuado. Estamos a falar do MP e dos órgãos de investigação criminal, porque há muitas situações em que ainda não se conhece o desfecho. Outros já têm desfecho, sobretudo ao nível autárquico. Isto é um ciclo: é porque o tribunal toma decisões que não passam sempre por absolvições que faz com que haja também uma maior evolução na atividade investigatória. Estou, por isso, muito preocupada com as prescrições – o que significa que nesses casos o tribunal nem sequer se pronuncia, diz apenas que a passagem do tempo levou a que a infração nem sequer fosse objeto de apreciação. Isso preocupa e muito um jurista.

Ainda há pouco dizia-me que o português comum não tinha noção de muitas coisas que se passam, se tivesse ter-se-ia espantado menos com fenómenos internacionais de corrupção na política como o Mensalão, ou mesmo outros casos que nos chegaram de França e de Espanha.

Justamente por causa desses casos é que sempre tive a preocupação de deixar essas situações fora dos partidos. E saí muito satisfeita. Que eu saiba, até 2016 não há nenhum caso dentro dos partidos, os casos que fala de outros países são casos de financiamento e que se passam nos parlamentos. Como os casos de partidos que recebem dinheiro através de funcionários do parlamento europeu, caso que veio recentemente à baila e outros casos virão. Neste momento estou a estudar financiamento indevido de deputados que fazem parte de mais do que um partido europeu. O cidadão comum que não seja cumpridor também entrará nesses esquemas de fazer novos grupos, novos movimentos, novos financiamentos. Sempre que a realidade muda o que importa é que mude para melhor.

Os partidos hoje são um exemplo para os portugueses?

Não. Não podemos ainda falar em termos financeiro de exemplo, acho, porém, que estamos melhores do que outros países. Mas podemos fazer melhor. Do que conheço dos partidos políticos portugueses posso dizer que podem fazer muito melhor e sabem como com fazê-lo, sobretudo os que têm assento parlamentar.