‘Todas as pessoas são um compósito de saber e ignorância’

O vice-reitor e diretor da Imprensa da Universidade de Lisboa, António Feijó, é natural de Viana do Castelo, estudou em Lisboa e nos Estados Unidos, onde se doutorou. Escolheu literatura porque gostava de ler e hoje dirige a recém-criada Imprensa da Universidade de Lisboa, que já tem oito títulos publicados, alguns deles ‘um pouco excêntricos’.

‘Todas as pessoas são um compósito de saber e ignorância’

De quem partiu a ideia de criar esta editora?

Foi uma decisão do reitor. Havia e há escolas que têm uma editora própria, por exemplo o Instituto de Ciências Sociais ou o Instituto Superior Técnico. Falámos com todas elas até para aprender o modo como estavam a operar, e foi decidido que a editora da universidade, a que foi dado o nome de Imprensa da Universidade de Lisboa, devia coexistir com todas. Portanto elas continuam exatamente o que estavam a fazer e nós fazemos também o nosso trabalho, não haverá competição.

E que tipo de livros publicam? São livros que se destinam aos alunos ou a um público mais vasto?

O público que visamos excede os estudantes. Gostaríamos que fosse um público inteligente médio. A Imprensa publicaria textos de três naturezas: textos clássicos fundamentais nunca publicados em português ou que, tendo sido publicados em português, se encontrem esgotados há demasiado tempo; depois uma segunda categoria de manuscritos inéditos nos vários domínios de saber que a universidade cultiva, desde as ciências exatas às ciências sociais e às humanidades; e finalmente uma terceira categoria, que é residual, de projetos avulsos que podem ter interesse para a universidade. Por exemplo, o primeiro livro que teve a chancela da Imprensa é um livro sobre o património material da universidade.

E publicam romances, por exemplo?

Decidimos que não publicaríamos ficção, embora interessantemente um dos volumes que vamos publicar na primeira categoria dos textos clássicos e fundamentais é um texto do Diderot que poderia ser lido como uma ficção. Só que há ficções que nos parecem ser textos tão determinantes da cultura europeia ou da cultura ocidental que transcendem o estatuto da ficção. Por exemplo, a Nova Heloísa, do Rousseau, é decisiva na criação de uma sensibilidade moderna. É um romance, mas é mais do que um romance.

Tanto quanto sei, esse livro foi recebido quase com histeria [a procura era tão grande que os exemplares chegavam a ser alugados à hora e os leitores refugiavam-se em lugares onde não fossem vistos por ninguém, para poderem chorar à vontade]…

E nós olhamos para ele como um nó decisivo na mudança de sensibilidade. Mas não publicamos ficção.

Há algum livro que lhe dê especial prazer ter no catálogo?

Há muitos. Já temos oito livros prontos. Um deles é as Cartas da Rússia, do marquês de Custine, de 1837, que é a descrição que este aristocrata francês faz da sua visita à Rússia. Muita gente refere-o como o equivalente para a Rússia do que Tocqueville fez em relação aos Estados Unidos com A Democracia na América. É interessantíssimo porque o marquês de Custine teve acesso ao imperador, aos círculos aristocráticos de São Petersburgo, portanto é um documento que eu penso que qualquer leitor médio achará interessante. Outro livro que publicámos e que é um pouco excêntrico – se estivermos a pensar em livros universitários no sentido estrito – são as memórias da governanta do Proust. Quem tenha lido os romances do Proust ou se interesse pelo Proust lerá com muito interesse, pela descrição que faz dos últimos anos da sua vida em clausura, fechado num quarto durante oito anos. Esta governanta foi a única pessoa que esteve com ele em permanência e descreve tudo isso.

E autores portugueses?

Vamos editar um conjunto de três livros do historiador Alberto Sampaio. O primeiro é As Vilas do Norte de Portugal, um grande clássico da historiografia portuguesa, que é associado a outro livro do autor, As Póvoas Marítimas do Norte de Portugal. Estes livros já foram publicados, mas estamos a fazer edições tal como o autor as tencionava fazer na forma definitiva.

Os livros da Imprensa da Universidade estão à venda apenas aqui ou também em livrarias?

Estamos neste momento em conversas com cadeias de distribuição. Só que os contratos têm de fazer toda a tramitação da contratação pública e só quando isso estiver fechado é que os livros podem aparecer nas livrarias, o que deverá acontecer, no mínimo, daqui a um mês.

O mercado da edição não é um mercado saturado? Fizeram algum estudo nesse sentido?

Não fizemos um estudo. É um mercado um bocado saturado, embora essa saturação, se a decompusermos por tipo de publicação, é desigual. Se a ficção é um dilúvio de títulos que estão a ser publicados, a não ficção é um parente pobre. E quando entramos no domínio da não ficção, se calhar podemos publicar coisas que os editores comerciais têm mais dificuldade em fazer. Aí podemos correr alguns riscos. Dou-lhe um exemplo: há alguns textos clássicos greco-latinos para os quais em Portugal era muito difícil obter publicação. Nós vamos agora ter uma pequena fileira de textos dessa natureza, mas isto coexistindo com muitas outras coisas, porque como a universidade é muito ampla nos seus saberes, da economia aos clássicos latinos, à filosofia… é uma latitude muito grande.

Todos temos, nos nossos empregos, áreas mais estimulantes e outras mais burocráticas ou maçadoras. O trabalho aqui na reitoria tem um lado administrativo que seja menos interessante, por assim dizer?

Essa questão bate no nervo da gestão universitária. A equipa reitoral é constituída pelo reitor, vice-reitores e pró-reitores. E muito do nosso tempo é consumido com atividades de natureza administrativa que não são propriamente aquelas de que mais gostamos. Segundo o decreto de fusão que criou a ‘nova’ Universidade de Lisboa, a universidade teria um estatuto de autonomia reforçada correspondente à sua dimensão e que nos pudesse poupar uma série de pesos. Temos o escrutínio do Tribunal de Contas – e acolhemos muito bem esses escrutínios todos – mas há uma série de tramitações que são demasiado laboriosas e isso é frustrante. Não é tanto a nossa frustração pessoal, é a menor eficácia.

Um intelectual norte-americano que talvez conheça, Lewis Mumford, disse que as universidades se estavam a transformar em linhas de montagem. Hoje, com os rankings, acha que há esse risco de a universidade se tornar uma espécie de indústria do ensino?

Os rankings são para muita gente um fetiche. Suponha que alguém num país estrangeiro quer saber com que universidade portuguesa deve falar. Vai aos rankings. Agora, há dois modos de olhar para eles. Um seria pensar ‘vamos modelar toda a nossa atividade em função dos rankings’. Nesse caso a natureza industrial da atividade de que fala seria o melhor modo de acomodar a atividade ao ranking. Essa não é a nossa posição. A universidade tem três fins centrais: o ensino, que é crucial; a investigação; e a transferência para a sociedade desse conhecimento, que muitas vezes é abusivamente tomada pelos poderes públicos como uma coisa central. Em vez de adequar a atividade aos rankings, o que está a fazer é a robustecer as atividades de base – que o ensino seja bom, que a investigação seja de qualidade, que a transferência se faça. O reitor pensa sempre: se nós robustecermos esta atividade, os resultados aparecerão, sem que nos preocupemos ostensivamente com isso. Eu acho que o reitor tem razão.

Disse noutra ocasião que as universidades dos Estados Unidos, onde estudou, davam possibilidade aos alunos de florescerem intelectualmente. Acha que isso também acontece nas universidades portuguesas?

Se a compararmos com a universidade italiana e até com algumas do Norte da Europa, a universidade em Portugal tem uma vitalidade muito grande – está sempre em discussão o que pode ser, o que deve ser, o que podemos fazer. Isso é uma coisa virtuosa, quer dizer que aquela instituição que eu conheci há muitos anos, perfeitamente cristalizada, desapareceu, explodiu. O único problema que temos, de que o reitor deu recentemente expressão de um modo muito claro, é que a autonomia das universidades não é suficientemente respeitada pelos partidos. Há por vezes intromissões do Estado nas universidades que não são as melhores. E não dizemos isto por purismo. É porque, na prática, a autonomia é um aspeto decisivo da instituição. A instituição só floresce – para usar esse termo – na liberdade intelectual, na escolha dos seus currículos, e nós vemos por vezes que há uma pressão dos órgãos da tutela que vai fazendo uma erosão dessa autonomia. Mas acho que neste momento a universidade é uma coisa muito viva onde os estudantes podem florescer.

E o seu despertar, o seu florescer intelectual, como foi?

Foi uma coisa muito simples. Desde miúdo gostava de ler. Não era propriamente um miúdo que só lesse – também jogava futebol todas as tardes, tinha interesses desse tipo. Mas gostava muito de ler sobre todo o tipo de coisas. Desde o jornal diário até livros sobre isto e aquilo.

Livros que os seus pais tinham em casa?

Sim. Depois ia lendo mais coisas. Tinha interesse em várias coisas, em perceber. Depois nunca tive pensamento nenhum de carreira. Pensava: ‘Vou optar por uma licenciatura que durante uns anos me permita ler porque é isso que se espera que um aluno daquilo faça’. E depois a pessoa acaba e pensa: ‘Por que não fazer agora uma pós-graduação?’. Foi mais ou menos assim.

Isso parece uma coisa quase casual…

Depois de acabar o ensino secundário estive num liceu americano durante um ano, num subúrbio de Washington DC. Depois vim para Direito, estive dois anos em Direito, e fui para Letras, para Literatura, na altura chamava-se Estudos Anglo-Americanos.

Mantém a ligação aos EUA? Ainda lá vai com frequência?

Cheguei a ser professor visitante lá e até há uns anos ia com frequência quase anual. Nos últimos cinco, seis anos não tenho ido.

Porque está mais absorvido pelo trabalho na universidade?

Sim. A minha vida aqui na reitoria é muito absorvente e muitas vezes as férias também são usadas para trabalhar. Não há tanta disponibilidade. Mas continuo a ter imensos contactos e acompanho os acontecimentos muito proximamente. Aliás, acabo de vir de uma aula de Literatura e Cultura Norte-americana do Século XIX que dou neste semestre na Faculdade de Letras. Até acabei cinco minutos mais cedo para ter a certeza de que estava aqui a horas para o receber.

São alunos de licenciatura?

Estou a dar uma cadeira a alunos de licenciatura, que é normalmente o curso em que mais gosto de dar aulas, e no semestre seguinte dou um seminário de pós-graduação a mestrandos e doutorandos. Na equipa reitoral todos damos aulas. Nunca faltamos e, se for necessário mudar alguma coisa no calendário, mudamos aqui na reitoria para não perturbar as aulas.

Nunca se aborrece ou se exaspera com os alunos?

É uma boa questão. Eu gosto de explicar uma coisa complexa e se acontece um aluno dizer – ou mostrar – que não percebeu, isso nunca me exaspera. Gosto de ouvir isso porque dá-me o ensejo de explicar outra vez e fazer com que ele perceba. Há um jogo intelectual nisto. E também gosto de pegar numa coisa muito complexa e começar no rés-do-chão, de modo paulatino, passo a passo, até que a coisa muito complexa no fim esteja dissolvida. Outra coisa que gostava de fazer há uns anos era entrar na biblioteca um quarto de hora antes da aula, abria o Times Literary Supplement e tinha lá um poema. Olhava para o poema e era enigmático. Fazia uma fotocópia para os alunos, levava para a aula e estávamos todos no mesmo barco: não sabemos o que é isto, agora vamos tentar decifrar. Isso dá aquele corpo a corpo com o texto. E há momentos em que o professor pode dizer: ‘Também não sei o que isto quer dizer’. Isso em si também é pedagógico.

Não o fragiliza perante os alunos?

Acho que não, porque eles percebem que aquilo é feito de um modo sério. Daquele texto eu não tenho que saber – estamos todos face a ele. Por outro lado, também acho que falar sobre literatura deve ser uma coisa mais prosaica do que aquilo que se faz. Os alunos de literatura têm tendência para fugir para termos técnicos. Aparece uma coisa difícil e dizem: ‘Isto é uma metáfora’. E a minha reação é sempre: ‘Pois, mas o que quer dizer?’. E também faço isso a mim próprio. Suponha que há uma coisa que não parece clara. Só que essa coisa que não parece clara eu posso tentar estabelecê-la como clara. Mesmo que não consiga, o trabalho é muito grande, e os alunos estão a vê-lo.

Uma das ideias que temos hoje é que os alunos são pouco cultos – ou até mesmo bastante ignorantes. Que noção tem acerca disso?

Achamos sempre isso em contraste com o que achamos que é o conhecimento de gerações anteriores, nomeadamente a nossa. E tendemos a assumir que o conhecimento da nossa é superior ao da atual. Há colegas meus a quem pergunto como são os alunos este ano, e dizem-me sempre que os alunos são piores do que no ano passado, o que dá a entender que o nível já devia estar no Neandertal (risos). Não concordo nada com isso. Todas as pessoas ignoram coisas e sabem coisas – e são um compósito disso, de ignorância e de saber. Se acontece um aluno ou aluna mostrar desconhecer alguma coisa, sou capaz de dizer ‘isso é assim’, só para que ela disponha do dado e eu poder continuar a falar. Se é uma coisa que percebo que outros também não sabem, sou capaz de parar e dizer: ‘Vamos lá ver isso’.. O interesse é transformar isso numa coisa que seja um ganho cognitivo. Diz-se que as novas gerações leem muito menos do que no meu tempo. Isto é falso, porque repare: as novas gerações agora estão a ler em permanência, porque estão com o iPad…

Podem estar a ler o post do Facebook da amiga!

Isso é verdade. Mas por outro lado é uma ilusão pensar que a minha geração era uma grande coleção de leitores. Muitos dos meus colegas não liam. Outros liam coisas que se calhar não eram tão interessantes assim, como o jornal desportivo, por exemplo. Não se pode mitificar o estado de saber da geração anterior, aliás essa geração é a que normalmente ouvimos dizer certas coisas no debate público e pensamos ‘como é possível?!’. Aliás, as pessoas ignoram que na minha geração éramos 5% da corte geracional que podia ir para a universidade.

Era uma seleção.

Agora estamos nos 30-40%. Só isso é um ganho extraordinário.

Então a ignorância dos alunos nunca é um obstáculo para a comunicação nas aulas?

Acho que não.

E faltas de educação?

Ouço histórias de que existem, mas comigo não. Quando andava no liceu, havia um lado de guerra larvar entre alunos e professores. Os alunos tentavam ser indisciplinados mas mediam o professor e viam logo o limite. Lembro-me de um grande professor que, mal entrou na aula – e fisicamente não era uma pessoa impositiva –, todos percebemos que não havia nada a fazer desse ponto de vista da indisciplina. Acho que é uma questão de trato.

De autoridade natural?

Também. E se coloca os alunos num certo nível de interlocução, eles percebem que têm de responder a esse nível. Se os tratar como crianças, está tudo perdido. O melhor é tratá-los como adultos que são. E eles rapidamente adotam esse registo. Mas estou a falar da universidade. Se calhar os meus colegas do ensino secundário têm mais dificuldades.

Mas mesmo aqui na universidade não tem alunos mais impertinentes, mais desafiadores, mais provocadores?

Se a provocação é intelectual, se é em relação ao que eu digo, isso é bem-vindo, porque dá-me ensejo para responder. O único tipo de provocação que acho inadmissível é de maneiras, de educação. Mas a provocação intelectual é salutar – e até pode ser provocação mesmo provocação, em que sinto que estou a ser testado, em que ele me quer levar para um domínio em que acha que eu vou estar em dificuldades.

Ou colocar-lhe uma rasteira…

Isso acho admissível, não tenho problema nenhum com isso. O gozo aí é expô-lo e fazê-lo perceber que percebi o jogo e que não vale a pena. Há sempre um aluno inteligente que me vem falar do princípio da incerteza do Heisenberg. E a minha resposta é sempre: ‘De que é que estamos a falar? Você sabe definir densidade em física?’ O nosso desconhecimento é tão aquém que eu já sei o que ele me vai dizer sobre o princípio da incerteza. Mas isso interessa-me pouco. É apenas um modo luxuoso de dizer uma coisa. E acho que, por exemplo, humilhar esse tipo de pseudoconhecimento é uma coisa que faz bem às pessoas, para perceberem que estamos só a usar nomes próprios que são sonantes – normalmente os mais sonantes são em alemão – para dizer uma coisa muito mais simples.

Teve professores marcantes?

Sim, sim. Tive. Independentemente do grau de ensino. Talvez o professor mais marcante que tive na minha vida tenha sido o da terceira classe. De um ponto de vista didático e pedagógico e no modo como o fazia nunca vi ninguém com um talento assim, em lado nenhum do mundo, em nenhum domínio.

Os seus colegas também achavam isso ou havia uma empatia especial consigo?

Os meus colegas também percebiam que estavam perante alguém especial. No Portugal salazarista os miúdos da terceira classe eram de origem social diversa, e era muito interessante constatar a igualdade de tratamento que ele dava a todos. Fazia torneios de cálculo mental, com oitavos de final, meias finais e final. Ou anunciava um torneio de capitais para dali a 15 dias. Um miúdo que tivesse acesso a uma agenda estava em circunstâncias de igualdade com outro de uma retaguarda familiar mais forte – mas ele fazia justamente para que essa igualdade estivesse assegurada.

Mantém a diversidade de leituras de que me falava há pouco?

Sim. Aliás, à medida que o tempo passa, a pessoa fica melancólica porque já não tem tempo físico para ler os livros que tem em casa. Mesmo que tenha uma longevidade muito grande, já não tenho essa capacidade. E se uma pessoa tem livros de toda a natureza… Posso pensar que ainda hei de ler aquela obra, mas realmente é impossível dizer se vou ler ou não, porque quando me encontrar em situação de poder escolher nessa altura o interesse é imprevisível. Pode ser a obra que está noutra sala ou outra coisa que nem está em casa.

Neste momento o que está a ler?

Leio mais do que uma coisa ao mesmo tempo. Neste momento estou a ler uma antologia das líricas portuguesas do José Régio e os poemas que ele escreveu. Mas podiam ser coisas completamente diferentes.

Li uma afirmação sua em que dizia que Teixeira de Pascoaes foi um poeta tão importante quanto Fernando Pessoa. Isso tinha um lado de provocação?

Não…

Nem de suscitar o debate?

Desse ponto de vista, sim. O Pascoaes tem uma obra muito longa. Enquanto o Pessoa morreu com 47 anos, o Pascoaes viveu entre 1877 e 1952. E sempre produtivo. Essa obra pode-se entrar de modos muito diversos. Outro dia estive num júri de doutoramento de uma tese sobre Pascoaes e foi muito engraçado ouvir os membros do júri dizerem como começou o seu interesse.

No seu caso como foi?

Foi através das cinco biografias que o Pascoaes escreveu. São Paulo, S. Jerónimo e a Trovoada, O Penitente, sobre Camilo Castelo Branco, Napoleão e Santo Agostinho. Eu ia escrever uma introdução a uma delas e li as cinco. E percebi que as cinco eram uma coisa única em Portugal – de uma audácia especulativa, poética, uma prosa monumental, uma coisa extraordinária. E portanto fiquei apanhado por aí. Onde a poesia parece difusa, depois de ler as biografias percebe-se que há um sistema muito preciso, que não tem nada de difuso, e de uma audácia inacreditável. Estou agora a escrever uma introdução a um romance da Agustina Bessa Luís, que é um romance extraordinário, em que as duas personagens principais são o Pascoaes e o Pessoa. Para ela, Pascoaes é o grande poeta, excede Pessoa.

Isso é curioso, porque estamos habituados a ver o Pessoa como o líder incontestado do século XX.

Em certo sentido, isso é verdade. O Pessoa é um poeta de uma magnitude extraordinária. Isto é o lado cruel do tempo. O Pascoaes, na sua morte, em 52, era o grande autor.

Como se chama esse romance?

O Susto. Vai agora sair pela Relógio d’Água. A Agustina tem uma intensa admiração pelo Pascoaes, põe o Pessoa em cena e fala da relação entre eles. Ela tinha só alguns indícios do que teria sido essa relação, mas fez uma análise finíssima e percebeu coisas profundíssimas.

Havia uma relação de uma certa emulação?

E de antagonismo. Especialmente do Pascoaes em relação ao Pessoa, mas na fase inicial, em 1912-13, o nome maior para o Pessoa é Pascoaes, e é o nome com quem ele se quer medir. No caso do Pascoaes fica sempre com uma pedra no sapato.

Porquê?

No fim da vida – em 1952 – deu uma entrevista ao O Primeiro de Janeiro. O Pessoa tinha morrido em 35 e, em 52, já estava a ter uma voga expressiva porque tinham saído vários livros da Ática. E então perguntam ao Pascoaes o que ele acha do Alberto Caeiro. E ele diz: ‘O Caeiro? Aquilo não é nada. Um homem cuja poesia consiste em dizer que uma pedra é uma pedra…’. Por sua vez, o Pessoa, nos poemas do Alberto Caeiro, tem um contra o Pascoaes. ‘Há poetas que dizem que as árvores choram e que as pedras sentem. Isto é um disparate’.

Como é que o professor, no meio dos seus afazeres, tem tempo para ler as cinco biografias do Pascoaes?

Evidentemente às vezes é um bocado temerário conciliar coisas tão diferentes – não há tempo físico – e uma pessoa acaba por não ter férias ou ter poucas férias. Até porque se a pessoa quer escrever sobre um livro tem de conhecer a obra mais ampla do autor. Dou o exemplo de um autor muito negligenciado, um autor maior do século XX português, que é o José Régio. Estive agora a ler a obra toda do José Régio, que é uma coisa monumental, muito acima das críticas que depois lhe fizeram. Mas implica esse esforço de conhecer a totalidade desse universo. Isso sai do corpo, porque a pessoa tem de ir ler, mas ao mesmo tempo tem um lado interessante, que é entrar no interior de um certo domínio e de uma certa personalidade.

E compensa o sacrifício?

Não é sacrifício, porque estamos a lidar com uma inteligência superior, excecional, e com uma prosa de príncipe. O Régio guarda-se muito e às vezes é de mais difícil acesso do que o Pessoa. E pensamos que o juízo da posteridade foi injusto. Se eu acho isso, compete-me dizer: ‘Olhem para isto, que é grande’.