Jogos de azar e um golpe de sorte

Um achado raríssimo proveniente das termas de Chaves serve de ponto de partida para uma exposição na Gulbenkian sobre o jogo, o acaso e a dança do tempo.

Jogos de azar e um golpe de sorte

Em 2008, durante a primeira fase de escavações das termas romanas de Chaves, a equipa liderada por Sérgio Carneiro fez uma descoberta que se pode considerar, sem exagero, sensacional: uma peça de bronze da qual só existem mais dois exemplares em todo o mundo (um na Alemanha e outro no Egito). Trata-se de um pirgo, ou, como explica o arqueólogo, «uma pequena torre de bronze que servia para lançar os dados e evitar que os jogadores fizessem batota».

A conservação deste objeto raro deve-se a circunstâncias, também elas, excecionais. Poderia mesmo dizer-se a um golpe de sorte. «No final do século IV houve um terramoto que soterrou completamente as estruturas [das termas romanas], e manteve as lamas húmidas por baixo, o que fez com que isto se tornasse uma espécie de cápsula do tempo, em que todos os materiais orgânicos que normalmente desaparecem – nomeadamente o osso, a madeira, e mesmo os metais que também oxidam – se tenham conservado de uma maneira absolutamente notável», continua Sérgio Carneiro.

O pirgo de Chaves empresta o nome à exposição patente até 3 de junho na galeria inferior (frente à biblioteca de arte) do museu Calouste Gulbenkian, e que combina artefactos encontrados nas escavações da cidade transmontana com criações contemporâneas do artista Francisco Tropa.

Antes de avançarmos até à atualidade, o arqueólogo dá-nos mais um pouco de contexto. «O próprio nome de Chaves [Aquae Flaviae] deriva do facto de ser uma cidade termal. Numa altura em que não existiam medicamentos, as termas tinham uma função terapêutica e uma importância muito maior do que têm hoje em dia. As termas eram locais de lazer, de ócio, as pessoas deslocavam-se muitas vezes longas distâncias para se irem tratar, estavam longe dos seus afazeres normais, do trabalho – uma palavra que deriva de um instrumento de tortura, o tripalium – e podiam dedicar-se a outras atividades. Nomeadamente ao jogo. Não só aqui como em diversos sítios termais é muito frequente aparecerem objetos relacionados com o jogo».

O jogo mais comum em que se utilizava o pirgo era um antecessor do gamão. Chamava-se XII scripta e simulava uma corrida de cavalos num tabuleiro, onde havia seis palavras de cinco letras e cada letra correspondia a uma casa.

 

Da clepsydra à lanterna mágica

A arquitetura das termas encontra ecos numa obra que Francisco Tropa levou à bienal de Veneza em 2011. O autor descreve-a como «uma escultura-lanterna, um piscar de olho aos primórdios do cinema, às lanternas mágicas. As suas formas reproduzem em miniatura arquétipos como «o templo, a praça, e a torre». E depois há uma imagem na parede que faz pensar num corpo astronómico mas é na realidade_«uma projeção de uma gota de água que está a cair, uma mistura de sombra e projeção». Esta gota caindo a intervalos regulares configura uma clepsidra, «um dos instrumentos arcaicos da medição do tempo».

O visitante depara-se agora com um esqueleto em bronze. Ou melhor, com uma «coleção dos ossinhos do corpo fundidos em bronze», esclarece Francisco Tropa. «Não é uma peça arqueológica, embora pareça», declara o artista, que elege um osso em particular. «Este osso – o tálos – é um osso muito curioso», pois «é nele que todo o movimento do corpo se produz». O_seu equivalente nos cavalos e veados «era usado pelos gregos e pelos romanos como um dado. Tinha quatro posições, cada uma equivalia a uma pontuação. O_tálos, o astrágalo e o dado são primos, portanto. É o mesmo objeto que põe em movimento o corpo e põe em movimento a sorte».

Ao longo dos anos, o artista tem exposto o esqueleto de bronze de diferentes maneiras: os ossos são como peças móveis de uma escultura que está constantemente a ganhar novas configurações.

Outras esculturas aqui apresentadas obedecem a esse princípio – são como peças de um jogo que se pode montar e desmontar. «A exposição está repleta de ideias muito simples e muito antigas, são uma espécie de esculturas-máquinas que produzem imagem», considera o artista.

E, quase sem nos darmos conta, passamos da escultura para a pintura. Seja na superfície de réplicas de laranjas e nozes feitas em bronze, seja numa instalação composta por garrafas que evocam de imediato a obra de Giorgio Morandi. A referência ao pintor italiano não aparece de forma gratuita. «O Morandi trabalhou a vida toda com um leque muito reduzido de objetos parecidos com estes, fraquinhos e copos», refere Tropa. «E tinha uma mesinha onde marcava a canivete as posições de cada um deles». Essa mesa, «onde toda a obra do pintor ficou registada» tem pois qualquer coisa de tabuleiro de jogo. Mas um jogo, dir-se-ia, com regras muito precisas e onde nada acontece por acaso.