Montepio. Lei é feita à medida

Para constitucionalistas ouvidos pelo SOL, o despacho publicado na sexta-feira pelo Governo é ad hominem, dirigida a Tomás Correia, e por isso viola direitos fundamentais. 

Montepio. Lei é feita à medida

Depois de várias semanas de polémica em torno de quem é que teria a capacidade de avaliar a idoneidade do presidente da Associação Mutualista Montepio Geral, o Governo veio  clarificar, por diploma interpretativo, que essa função cabe à Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF). O Presidente da República promulgou de imediato o diploma que foi esta sexta-feira publicado em Diário da República. Mas, ao que o SOL apurou, tal norma está longe de ser pacífica. Constitucionalistas ouvidos pelo SOL falam em «lei medida» ou «lei de escopo» – ‘ad hominem’ – dirigida pessoalmente a Tomás Correia, restringindo direitos fundamentais. E não hesitam: «Esta lei medida visa determinar uma ação de uma entidade administrativa supostamente independente contra um cidadão concreto», e lembram que estas leis eram muito frequentes «na Alemanha nacional-socialista». 

Os mesmos constitucionalistas afirmam que o diploma limita o direito fundamental de associação e de autonomia coletiva dos associados do Montepio, uma vez que estes ainda no final do ano passado escolheram a nova liderança da Mutualista, o que, no seu entender, «vem pôr essa escolha em causa por uma usurpação do poder legislativo».

Mas as restrições não ficam por aqui. No entender dos mesmos, o despacho «inibe o direito fundamental de Tomás Correia a exercer a atividade profissional de administrador do Montepio». 

Aliás, esse entendimento vai ao encontro do que foi dito esta sexta-feira pelo presidente da Mutualista – ao dizer que «parece que» a norma interpretativa foi feita para o avaliar. Em entrevista à TSF, ainda antes do diploma ter sido publicado, Tomás Correia revelou que tem «assistido a todo um conjunto de intervenções, muito pouco precisas, exclusivamente dirigidas a uma pessoa que pode desembocar na publicação de um diploma».

O presidente da Associação Mutualista disse ainda que não vê nenhuma «razoabilidade na discussão» que tem existido «na praça pública, no Parlamento, a partir de membros do Governo» sobre a sua idoneidade.

Recorde-se que Tomás Correia foi condenado a uma multa, na sequência de o Banco de Portugal ter detetado falhas de gestão enquanto exercia o cargo do presidente do agora denominado Banco Montepio, entre 2008 e 2015.

Além das falhas no controlo interno, o Banco de Portugal aponta o não respeito pelas normativas definidas nos regulamentos, que justificaram a concessão de crédito de financiamentos de elevado montante a alguns clientes, nomeadamente a Paulo Guilherme e a José Guilherme. 

Além de Tomás Correia, outros sete administradores executivos também foram condenados por contraordenações, assim como a instituição financeira do Montepio, que terá de pagar uma multa de 2,5 milhões de euros. Ao todo, foram identificados sete tipos de ilícitos.

Ao que o SOL apurou, Tomás Correia não está disponível para sair. «Sob pressão não sai», dizem ao SOL várias fontes próximas, que, ainda assim, admitem que a situação é delicada, uma vez que entrou na esfera pública.

Acabar com dúvidas

O Governo justificou a clarificação deste diploma para acabar com o braço de ferro com a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF). «Perante algumas dúvidas sobre o atual quadro jurídico por parte dos agentes do setor, o diploma agora aprovado procede à interpretação autêntica de alguns pontos daquela legislação, nomeadamente no que respeita aos poderes da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões e, em concreto, à competência desta entidade reguladora para apreciar a qualificação profissional, a idoneidade e eventuais incompatibilidades ou impedimentos dos titulares dos órgãos sociais das associações mutualistas abrangidas pelo período transitório», referiu o comunicado do Conselho de Ministros.

Ainda esta semana, Vieira da Silva falou na necessidade de clarificar a norma interpretativa, apesar de considerar que a lei é explícita. «Não é acrescentar nenhum ponto, é clarificar que as questões da organização, de idoneidade, de avaliação das condições de gestão dessas mutualidades […] são da responsabilidade da supervisão e fiscalização da ASF», afirmou o ministro.

E o diploma não deixa espaço para dúvidas, acabando assim com o jogo do empurra entre Ministério do Trabalho e da Solidariedade, que tutela a associação, e o regulador ao referir que a ASF terá de aplicar, de forma imediata, as mesmas regras às mutualistas que já estão previstas no regime jurídico de acesso e exercício da atividade seguradora.

«Analisar o sistema de governação, designadamente verificando a adequação e assegurando o registo das pessoas que dirigem efetivamente as associações mutualistas, as fiscalizam ou são responsáveis por funções-chave, incluindo o cumprimento dos requisitos de idoneidade, qualificação profissional, independência, disponibilidade e capacidade, bem como os riscos a que as associações mutualistas estão ou podem vir a estar expostas e a sua capacidade para avaliar esses riscos, por referência às disposições legais, regulamentares e administrativas em vigor para o setor segurador», diz o diploma. 

A verdade é que o regulador está em mudanças em termos de direção. José Almaça terminou o seu mandato há mais de um ano e será substituído por Margarida Corrêa de Aguiar, ex-secretária de Estado da Segurança Social de Bagão Félix e consultora do Banco de Portugal. Esta será acompanhada pelo ex-ministro da Economia do atual Governo, Manuel Caldeira Cabral, agora deputado do PS, para vogal da administração. Ou seja, duas nomeações feitas pelo Executivo. Os dois nomes já estão a ser avaliados na Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CRESAP).