Uma história mal contada

Durante o ano inteiro alimentamos a mentira.Está tudo preparado, multiplicam-se os meios, limpam-se as florestas, protegem-se as pessoas, dá-se-lhes confiança. É tudo mais simples assim. Num dia contratam-se mais meios aéreos, noutros contam-se os efetivos no terreno, inventam-se as cabras capinadeiras, chamam-se os drones. Noutros oferece-se o tempo de antena aos comandos todos e a…

Durante o ano inteiro alimentamos a mentira.Está tudo preparado, multiplicam-se os meios, limpam-se as florestas, protegem-se as pessoas, dá-se-lhes confiança.

É tudo mais simples assim.

Num dia contratam-se mais meios aéreos, noutros contam-se os efetivos no terreno, inventam-se as cabras capinadeiras, chamam-se os drones. Noutros oferece-se o tempo de antena aos comandos todos e a mais algum.

Exalta-se a proteção civil e confunde-se o essencial com a estrutura.

Passeia-se o Governo e saboreia-se a garantia.

Celebra-se o êxito antecipado.

No terreno a verdade é outra.

Há um país esquecido, abandonado, desertificado.

Sem saber o que fazer, que rentabilidade extrair de terras ermas, a febre do pinheiro bravo e do eucalipto ocuparam, desde há muito, o território.

As levas sucessivas de migração e emigração, a desorganização fundiária, a propriedade minimal, foram deixando a terra sem dono.

Assusta a incúria.

Que fazer, então?

Notificar os proprietários para limpar os terrenos. Medida sábia.

Que proprietários? Não se consegue saber.

Onde se encontram? Também não.

Apanham-se alguns.

Estão na força da juventude, dos setenta anos para cima. 

Estão no auge da vida saudável. Nem médico têm, nem saúde.

Estão no máximo da capacidade económica. Vivem de pensões mínimas.

Simples, portanto.

Se tivessem vida e saúde limpavam eles. Impossível.

Se houvesse gente ativa nas imediações contratavam o serviço. Não há.

Se tivessem dinheiro pagavam. Não têm.

A lei socorre-se então da figura da substituição. As Câmaras devem executar o impossível.

Talvez com a mirífica ideia de serem ressarcidas e de lançarem as simpáticas coimas.

Portanto, os legisladores e o poder celebram o faz de conta, vivem da pura ficção.

Nos dias infaustos o choque é denunciador.

O fogo é rápido, o vento indomável, as condições excecionais, a ação é imponderável.

Por cada povoação uma dúzia de braços reúne-se para lutar ou morrer.

Na maior parte dos casos salvam as almas e perdem tudo. Uma vez, duas vezes, tantas vezes.

Eles não sabem mas são a proteção civil no último grau.

O Estado visita os territórios e avalia.

A área ardida foi do tamanho do concelho de Lisboa. Durou três dias o incêndio. Choveu.

O combate seguiu as normas.

O resultado foi notável.

Não houve mortos.

Foram poucos os feridos.

Só algumas casas e um número considerável de bens de subsistência se perderam.

Nasce a absurda conclusão feliz: estamos melhor preparados.

Depois é o momento da discussão, do apuramento das irresponsabilidades, das lamentações sem muro.

A partir daqui a história reescreve-se pelas mesmas linhas. 

Muito mais gente fica sem sustento, outra sem atividade, outra sem casa, outra sem bens, outra sem força de viver.

A nova censura explica que estes temas não devem ser discutidos, que o mero exercício opinativo é inadmissível discussão política.

No próximo incêndio volta tudo ao princípio, segue-se a mesma via sacra.

A instabilidade e a falta de condições objetivas trarão mais gente para os grandes centros e acentuarão a crise de outras respostas.

Supremo argumento lapalissiano: os incêndios são inevitáveis.

Verdade, verdadinha, mas o resto não.