A guerra entre socialistas que ‘eram como irmãos’

Mário Soares e Salgado Zenha eram amigos de longa data e de velhas lutas contra o antigo regime mas, depois da ‘crise do secretariado’,  que levou Soares a ‘suspender’ a sua condição de secretário-geral do partido por causa do apoio do PS à recandidatura de Eanes, romperam relações e foram ferozes adversários nas ‘históricas’ Presidenciais…

«Finalmente frente a frente». O Diário de Lisboa do dia de 2 de janeiro de 1986 anunciava assim na primeira página o debate na televisão entre Mário Soares e Salgado Zenha. Os dois socialistas, que eram como irmãos, apareciam agora como  rivais na disputa pela Presidência da República.

Os debates na televisão eram decisivos, mas Zenha foi implacável. Quando Soares tentou quebrar o gelo e lembrou a relação de amizade entre os dois, Salgado Zenha respondeu friamente: «Não é meu irmão, nunca foi, nunca virá a ser». Mário Soares descreveu aquele momento, mais tarde, na biografia de Joaquim Vieira, como «um murro no estômago que nunca esperava». 

A rutura deu-se quando Salgado Zenha decidiu sair do PS e candidatar-se à Presidência da República, em 1985, mas as divergências políticas começaram muito antes. «Sou testemunha que eles eram como irmãos, mas essa rutura já vinha do passado. O Soares não quis apoiar o Eanes [em 1980] e até se demitiu, mas o Zenha não apoiou o Soares», recorda ao SOL António Campos.

Mário Soares sempre pensou que Salgado Zenha não cederia às pressões para se candidatar contra ele, mas enganou-se. O ex-líder parlamentar do PS avançou com o apoio do PRD e de Ramalho Eanes. Mais tarde contaria também com o apoio dos comunistas.  Quatro dias depois de ter pedido a demissão do PS, Zenha anunciou a candidatura que pretendia «uma nova democracia e uma nova República». 

Os socialistas aprovaram, por unanimidade, a candidatura de Mário Soares e quase todos o apoiaram, mas Zenha ainda conseguiu o apoio de figuras do partido como António Arnaut. Na apresentação da candidatura estavam  José Saramago, Urbano Tavares Rodrigues e Batista Bastos. Salgado Zenha garantiu que defendia «uma nova democracia», porque «a democracia que temos é  achacada por vícios, como o clientelismo, a corrupção e o centralismo». 

Numa entrevista ao Diário de Lisboa, Zenha explicava o entendimento que tinha do cargo: «O Presidente da República não deve ser nem de direita nem de esquerda. Deve ser o agente do maior consenso possível». O candidato antecipava que «Soares não passará à segunda volta» e mostrava-se convicto de que iria ter o apoio do eleitorado socialistas. «Não vão decerto votar no Freitas do Amaral que representa o projeto a que eu chamo de união nacional». 

Um plano para destruir o PS

O então Presidente da República, Ramalho Eanes, envolveu-se na campanha. O que levou Mário Soares a convocar uma conferência de imprensa para protestar contra o que classificou como «uma quebra de isenção grave e uma mau precedente em termos de procedimento democrático». Soares não esqueceu as guerras do passado com Eanes e acusou-o  de ter «um plano concertado» para destruir o PS e «também aí  a candidatura de Salgado Zenha representa uma peça essencial».

Com a esquerda dividida, Mário Soares apostava tudo na segunda volta com Freitas do Amaral, mas as dificuldades foram muitas. O PS tinha liderado um Governo que aplicou duras medidas de austeridade e sofreu uma derrota histórica nas eleições legislativas. Soares arrancou a campanha com péssimas sondagens e sem apoios nas ruas. «As pessoas estavam tristes. Ninguém atribuía a menor importância à minha presença», afirma Soares na biografia do jornalista Joaquim Vieira. António Campos confirma que o desgaste provocado pelo Governo do Bloco Central prejudicou o candidato apoiado pelo PS. «Foi uma campanha de malucos. Custou-me uma semana internado a recuperar».

A dúvida era se Soares conseguia passar à segunda volta e não foram poupados esforços para combater Salgado Zenha. Com a candidatura de Maria de Lurdes Pintasilgo a enfrentar sérias dificuldades, o movimento que apoiava Soares chegou mesmo a apoiar financeiramente a ex-primeiro-ministra para não haver desistências. 

Freitas do Amaral também concentrou as energias no combate contra Zenha, mas, mais tarde, assumiu que não foi a estratégia certa. «Foi um claro erro tático. Se a segunda volta fosse deputada entre mim e o Salgado Zenha, eu teria uma boa parte do PS a apoiar-me e ganhava. Vários dirigentes nacionais do PS mo disseram, sem qualquer hesitação», escreve Freitas do Amaral nas suas memórias políticas. 

Foi Mário Soares quem passou à segunda volta com cerca de 25% dos votos. Salgado Zenha conseguiu 20% e, em último lugar, ficou Maria de Lurdes Pintasilgo, com pouco mais de 7%. Freitas do Amaral foi o mais votado à primeira volta com mais de 46% dos votos. 

O mistério do computador

Um dos momentos marcantes da campanha é o debate entre Mário Soares e Salgado Zenha. Ficou célebre a acusação feita por Zenha de que António Campos, responsável pelo aparelho do partido, tinha um computador para controlar os movimentos dos militantes. Nesse computador estavam não só os ficheiros dos militantes como os dados sobre as convicções políticas de cada um.

Mário Soares ficou baralhado e  no fim do debate perguntou a António Campos se a ‘máquina’ existia mesmo. «Não existia nada. Nós não tínhamos nenhum computador. Isso foi uma malandrice do Soares Louro [diretor de campanha ]. Eu, nessa altura, nem sabia mexer num computador», conta o histórico do PS. 

O confronto foi duro e deixou marcas numa relação de amizade que já estava estragada. Soares e Zenha nunca reataram relações apesar das tentativas feitas por alguns socialistas.