Viver para contar: Undressed

Ao princípio, os casais tinham um aspeto normal. Depois começaram a aparecer pessoas feias, todas tatuadas, e os casais deram lugar a pares de dois homens ou duas mulheres

Este nome corresponde a um formato televisivo em que duas pessoas conversam na cama durante meia hora e no fim decidem se querem ou não voltar a encontrar-se.

Apesar do nome, os participantes não estão completamente nus. No início do programa despem-se um ao outro, mas eles ficam em cuecas e elas em cuecas e soutien. Depois, deitados, conversam livremente ou são convidados pela produção a determinadas ações, como beijarem-se na boca. 

De vez em quando, ao fazer zapping à noite, deparo-me com um destes programas e fico uns minutos a ver. As relações humanas interessam-me muito. O que leva as pessoas a sentirem-se atraídas por outras ou a rejeitá-las, a cumplicidade que se estabelece ou não entre dois seres humanos. 

 

"Nada do que é humano me é estranho". Esta frase tem-me perseguido toda a vida. Gosto de perceber os mecanismos da atração física, do desejo, da comunhão intelectual. 

Nos romances que escrevi, as relações entre as personagens são sempre complexas, nunca são lineares. 
Recordo-me de uma conversa na adolescência com o meu irmão mais velho, em que ele me dizia que o amor era necessariamente recíproco: se uma pessoa se sentia atraída por outra, é porque havia uma afinidade entre ambas, qualquer coisa que as duas partilhavam que levaria a outra a ter o mesmo sentimento. Era uma visão idealista do amor – em que eu não acreditava. 

E continuo a não acreditar. Acho mesmo exatamente o contrário: raramente duas pessoas gostam uma da outra da mesma maneira e com a mesma intensidade. "Numa relação de amor, uma das pessoas ama e a outra deixa-se amar" – dizia a minha mãe e eu concordo. Vou até mais longe: quando um dos membros do casal é demasiado ardoroso, demasiado insistente, demasiado impulsivo, o outro é geralmente tentado a dar-lhe para trás, a contrariar-lhe os ímpetos, às vezes a desinteressar-se. 

 

Mas voltando ao Undressed, trata-se de um formato internacional, como o Big Brother, e é produzido em vários países por diferentes cadeias de TV.

Nos primeiros programas a que assisti, há uns anos, o homem e a mulher tinham em geral bom aspeto, o que se compreende: estando os participantes em trajos menores, e numa situação de sedução, era lógico que os produtores escolhessem pessoas bonitas. Mas a pouco e pouco – e talvez de acordo com as mentalidades dos países onde os programas são feitos e emitidos – a produção começou a alterar os critérios de seleção dos participantes. Em vez de um homem e uma mulher, começou a juntar homens com homens, e mulheres com mulheres, alguns com péssimo aspeto: cheios de piercings, carregados de tatuagens, com cortes de cabelo extravagantes. E hoje é raro ver-se um casal ‘normal’.

No último programa a que assisti, numa cama estavam duas mulheres, ambas muito gordas, cheias de banhas, uma com piercings nas bochechas, como se tivesse um ferro a atravessar-lhe a cara, as duas com tatuagens por todo o corpo. 
Na outra cama – há sempre duas camas, e o realizador vai dando alternadamente imagens de uma e doutra – estava um indivíduo de aspeto relativamente normal, à parte o cabelo ridículo: completamente rapado dos lados e com uma popa no alto da cabeça. A mulher também não tinha nada de extraordinário, mas a meio do programa revelou que nasceu homem – e fizera uma operação de mudança de sexo.
Eram, portanto, estes os ‘casais’ de participantes nesse programa: duas mulheres gordíssimas e tatuadas (que no fim quiseram voltar a encontrar-se) e um homem com um transexual (em que o primeiro rejeitou um novo encontro).

Ao pé destes seres, apresentados como pessoas comuns, as personagens de Fellini são uma brincadeira. O grotesco tomou conta da vida real. 
Não digo, como outros, que o mundo está louco. Que as pessoas endoideceram. Constato apenas que a sociedade ocidental entrou em decadência acelerada e os sinais são de ano para ano mais evidentes. 
Já não é preciso procurá-los: estão à vista de todos. Mas o maior sinal de decadência nem são essas figuras absurdas, esses seres fantasmagóricos. O maior sinal de decadência é muita gente olhar para esse mundo irreal com uma expressão de indiferença. Ver esses destroços da civilização e não se impressionar, não reagir.
Isso é que é verdadeiramente assustador.