“Quando canto não quero ser atriz, quero ser eu”

Quando Sara Correia chega, chegou. Mas chegou mesmo. A prova é esta conversa frenética sobre o seu último disco, Do Coração, e este título diz mesmo tudo, sobre o fado e sobre o hip hop, sobre Chelas, este lugar onde num dia de ainda sol quente de outubro nos encontrámos e que é o lugar onde…

Deste lugar que pode nem ter casas de fado, essas em que começou a cantar aos 9 anos para chegar aos 15 a cantar já sete noites por semana, mas tem aquela escola em que um dia, criança, apareceu sozinha a dizer que queria cantar os fados que ainda não podia. Aí, como hoje, era já essa a sua forma de vida. O fado de que não se livra, e acredita que não se livrará algum dia.

«Tudo o que cantar vai soar a fado. Não há nada a fazer. Penso milhares de vezes em casa… como é que é possível? Mas se nem a Amália conseguiu explicar isto também não vou conseguir». Talvez se aproxime disso Sara Correia quando nos diz que fado, fado é o que se sente.

O All About Jazz escreveu sobre ti: «Uma voz rouca de alto contralto que ainda projeta a intensidade das raízes da música que cresceu a ouvir». Isto fala-nos sobre um lugar novo.

Mas que nos puxa para a tradição na mesma. Foi exatamente essa a ideia deste disco: um novo mundo, abrir uma nova porta para outras coisas que quero fazer e desafiar-me a mim própria mas trazer também sempre a minha tradição e o meu percurso até aqui enquanto fadista. É uma coisa que não é fácil de se fazer porque desafiando-me a mim própria, fazendo outras sonoridades, uma música que as pessoas possam não achar que é fado, trago a minha portugalidade e o meu português para dentro dessa nova sonoridade. É isso que traz este álbum, é essa a magia disto, e é isso que quero passar para as pessoas, para esta nova geração que está agora a começar a cantar. Acho que não temos de ser só fadistas ou de ser só uma coisa. Mete-me um pouco de medo pensar que tenho de viver dentro só de uma caixa sem horizontes para olhar.

Numa entrevista já antiga que deste um dia na Califórnia falavas com saudade de um tempo que já não existe, que não viveste na verdade. Dizias que tinhas pena de não ter vivido esse tempo, os anos dourados do fado.

Sim. É uma coisa de que tenho muita pena de nunca poder concretizar: estar há 100 anos atrás a viver a intensidade com que se vivia os fados. Como é que as coisas começaram, como é que as coisas se desenvolveram, como é que a nossa tradição foi feita a este ponto? Gostava muito, mas como nunca vai acontecer… é tentar construir eu os meus sonhos.

O que na verdade queria perguntar-te era se achas que o fado já não tem como voltar aí, se hoje, em 2020, já tem mesmo de ser outra coisa.

O que penso é que estamos a viver numa era diferente, uma geração diferente que pensa de forma diferente e tem uma forma de estar diferente. Antigamente havia preocupações que hoje não há. Hoje os jovens são muito mais desprendidos. Não vivemos como a minha mãe ou os meus avós. Acredito que a tradição do fado terá sempre o seu caminho, mas acredito que com histórias novas, com formas de estar diferentes e com outra perspetiva sobre o fado.

E o que é o fado para ti, o fado em 2020?

É o mesmo que era quando comecei a cantar. O fado é uma música muito dramática, muito intensa, é muito difícil explicar-se o que é o fado. Não há forma a não ser cantá-lo ou ouvi-lo. O fado é aquilo que a gente sente. Quando comecei a cantar, por exemplo, não havia muitas pessoas a cantar, muito menos da minha idade. Toda a gente achava que isto era uma música para pessoas mais velhas, não para a juventude. Talvez pelas letras, que são um pouco mais difíceis de se compreender, ou pela dor, pelo sofrimento. Só que entretanto há uma modernização que traz outras coisas, outra forma de estar. Antigamente usava-se muito o xaile, as cores eram muito escuras, era tudo muito denso. Hoje não. Hoje já se vê cor, é outra era.

Apareceste, no teu primeiro disco, a dizer-nos, num videoclipe, que o fado era estar com as amigas, comer pizza na cozinha, os turistas.

É exatamente isso. São dois videoclipes juntos: o primeiro, Fado Português, vem de uma coisa mais dramática, de como o fado nasceu, usámos o preto e branco, e depois vem a outra fase, que é «tenho 25 anos e há uma lufada de ar fresco», no sentido de…

… de «tenho 25 anos».

O problema às vezes é vivermos nesta coisa de parecer que somos mais velhos. Isso também nos pesa. Aprendi muito com o fado e cresci muito no fado mas isto também é necessário. Tenho 25 anos, não posso pensar que tenho 40 ou 50. Por mais que ache que estou avançada na minha cabeça para a minha idade, tenho também que trazer a juventude que tenho para a minha música. E torna-me mais leve, sou sincera. Este disco, o Do Coração, tornou-me uma pessoa mais leve.

É mais pessoal e ao ser mais pessoal torna-se mais justo com isto de que falas.

Sem dúvida. Amei fazer este disco, deu-me uma felicidade enorme. E tive a sorte de vários artistas terem aceitado escrever para mim.

A diversidade das pessoas que colaboraram contigo neste disco — Joana Espadinha, Jorge Cruz, Vitorino, Mário Pacheco, Luísa Sobral, Carolina Deslandes, António Zambujo, enfim – é obviamente resultado dessa intenção. E diz-nos muito sobre o que ele é.

Aconteceu naturalmente.

Ou como é que todos esses contributos de músicos e compositores tão diversos e tão distantes do fado na verdade podem transformar-se, tornar-se fado.

É a minha voz. É a minha forma de entoar as palavras. É a minha forma de ser portuguesa a cantar. Porque o mais próximo do fado é o português, somos nós, Portugal. E isso é o que faz a magia acontecer. Quando começámos a receber as letras e as músicas — muitas delas em cru, à viola, cantadas num quarto ou numa sala — houve automaticamente músicas, que são as que estão no álbum, que me fizeram um clique. Disse ao meu produtor, o Diogo Clemente: «Isto com a minha forma de cantar, com a minha intuição, com o meu fado, podemos fazer disto a minha música».

 

Leia o artigo na íntegra na edição impressa do SOL. Agora também pode receber o jornal em casa ou subscrever a nossa assinatura digital.