Pelé. Um deus a negro

Fez ontem 80 anos o maior jogador de futebol de todos os tempos. Só o seu nome foi capaz de se confundir com o jogo e com a bola. Aos 17 anos foi campeão do mundo e mudou para sempre a idiossincrasia do povo brasileiro. Quem escreveu sobre ele perdeu-se entre a divindade e a poespeia.…

Toda a gente sabe que Deus é brasileiro e, assim sendo, o seu filho também é. Pois estava o nosso bom Jesus Cristo numa tarde de sol, batendo umas bolas com Moisés, no estádio do Flamengo (ah!, Deus também é do Flamengo, por falar nisso), quando soltou, de repente: «Ei, Moisés, tá recordado daquele gol que Pelé andou querendo fazer enquanto jogou futebol?». O velho embatucou: «Qual golo?». E o JC: «Aquele do meio do campo. Passam a bola para ele, aproveita o guarda-redes adiantado e chuta para a baliza». Moisés sorriu malandro: «Sei, sei. Vi no Mundial do México ele tentando contra a Tchecoslováquia, a bola passou sobre o goleiro e ia entrando. E contra o Uruguai, o keeper chutou o pontapé de baliza, a bola foi na direcção do crioulo, e ele devolveu de primeira. Para mim foram os dois golos mais lindos que ele não marcou». O Cristo ergueu a crista: «Pois eu vou fazer isso agora mesmo. Vou ali para o centro do gramado, você passa para mim e eu chuto directo no gol». Moisés era macaco velho. Velhíssimo. «Tá pensando o quê? Se Pelé, o melhor de todos os tempos não conseguiu, como é que você, que até é ruim de bola vai fazer?». Jesus não quis nem saber: «Dá aí um passe para mim, Moisezão!». O parceiro encolheu os ombros. Deu a bola certinha para o Cristo, este pegou com o pé direito, assim meio por baixo, deu um chutão, a infeliz da redondinha voou bem por cima da trave, para lá das bancadas e foi cair na Lagoa Rodrigo de Freitas. «Não falei?», casquinou Moisés. «Estou só pegando o jeito. Vai lá buscar a bola que da próxima eu acerto», replicou Jesus. Cheio de paciência, Moisés foi à lagoa, fez aquilo que sabia fazer bem, ou seja, separou as águas, e trouxe a bola de volta sem uma pinga nas sandálias. Depois voltou a fazer um passe certeiro para o Nazareno que repetiu exatamente o que tinha feito antes: chutão com o pé direito, bola longe e alta, mais alta do que longe, e plosch, outra vez no meio da lagoa. Aí Moisés fartou-se: «Tem pachorra. Não vou lá pegar a bola outra vez, não. Vai lá você e é se quiser». Jesus Cristo estava com tanta gana de copiar Pelé que nem se importou: «Deixa comigo». Foi até à beira da lagoa e fez aquilo que sabia fazer bem, ou seja, foi caminhando sobre as águas até pegar a bola. Nesse momento, iam chegando uns remadores do Flamengo para o treino de regatas e ficaram pasmos vendo um homem se passeando à superfície. Não contendo a curiosidade, perguntaram a Moisés: «Quem é aquele cara lá? Tá pensando que é Jesus Cristo ou quê?». E Moisés, já farto da brincadeira: «Não. Está pensando que é Pelé».

Serve a pilhéria para exemplificar um daqueles óbvios ululantes de que o cronista Nelson Rodrigues gostava tanto: se nem Jesus Cristo, o dos milagres, conseguia fazer o que Pelé fazia, como é que os homens normais pretendiam chegar sequer aos seus calcanhares? Por isso, há que escrever sobre Pelé no superlativo. Estive com Pelé muitas vezes na minha vida e em muitos lugares do mundo. O crioulo até pode ser para o baixinho, mas eu olhava para ele e via um Deus a negro. Não precisa de ser Deus mesmo Deus, pai de Jesus Cristo, criador do céu e da terra e blá, blá, blá. Pode ser um deus menor, um deus com um metro e setenta e três, deus da bola, essa mágica senhora das paixões. Uma vez vi um Inglaterra-Brasil a seu lado, no velho Wembley, o estádio mais maravilhoso que alguma vez foi construído, e ele perguntou-me: «Sabe qual o maior desgosto da minha carreira?». E eu sabia lá, o deus era ele, não eu. Por isso Pelé respondeu ao meu silêncio: «Nunca ter jogado aqui. Nem sequer um jogo amigável». Acho que não vai jogar nunca mais e não é preciso ser Deus para chegar a essa conclusão. Edson Arantes do Nascimento, por extenso Pelé, fez ontem 80 anos. Não é nenhum Matusalém, mas também já não é o atleta esplêndido que foi, sobretudo no tal Mundial de 1970, do qual ainda recordo umas imagens a preto e branco, com umas risquinhas volta e meia a descerem ao longo do ecrã, numa televisão de um café no Santo da Serra, na Madeira, onde nesse tempo só se apanhava as transmissões via Canárias.

 

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