Vítor Aguiar e Silva. Em literatura, a moral da história pode ser imoral

Elogiado pela ministra da Cultura pelas suas virtudes “humanistas”, o Prémio Camões pode até ser uma atribuição justa pelo perfil de Aguiar e Silva como teórico da literatura mas não deve branquear o seu percurso político, e, particularmente, o ter colaborado na repressão dos estudantes em Coimbra, em 1969, tendo denunciado alguns à PIDE

A ingénua confiança de que o exercício de actividades tidas por intelectuais é, em si mesmo, a garantia de uma postura humanista expôs o flanco esta semana no anúncio da atribuição do Prémio Camões 2020 a Vítor Aguiar e Silva. Na passada terça-feira, ainda que fosse intenção da ministra da Cultura, Graça Fonseca, produzir apenas uma nota de exaltação bastante inócua, cumprindo com o protocolo, ao ler uma dessas declarações que soam mais como formulários em que basta preencher o nome do visado, não se limitou a  destacar as qualidades intelectuais e académicas do premiado, mas foi um pouco além da conta e ligou a actividade de Aguiar e Silva enquanto teórico da literatura a um suposto “perfil humanista” que terá marcado “de um modo decisivo gerações de alunos”. Sendo, por norma, bastante pacatas, e até, por vezes, apagadas ou inofensivas as personalidades que se destacam hoje no campo cultural, particularmente as que se dedicam à literatura, um elogio destes, em princípio, não deveria provocar engulhos. Acontece que a memória não se esbateu a um tal ponto que se possa passar ao lado do perfil que de facto emerge se for considerado o percurso político de Vítor Aguiar e Silva. E então, mais do que uma postura de reserva ou um conservadorismo aferrado à defesa de uma espécie de ordem feudal e rigorosa que caracteriza ainda algumas instituições de ensino, no caso deste galardoado há que ter em conta aquilo que o levou a colaborar com a PIDE na repressão dos estudantes de Coimbra em 1969, indo ao ponto de denunciar alguns dos estudantes da sua Faculdade. Se não deixa de ser condenável aquilatar tudo por uma mesma base, sobretudo quando se mede a importância de um contributo de valor indiscutível na área dos estudos literários, na escolha de honrar um autor não se deve deixar de reflectir sobre todo o seu percurso, lembrando também esses aspectos ou manchas que tantos prefeririam que fossem esquecidos. Se em momentos turvos ou de incerteza, não falta quem busque refúgio num silêncio que chega a ser hostil, ou se mostra capaz dessa indiferença expressa num olhar gelado, o caso de Vítor Aguiar e Silva exige uma reflexão mais profunda, e houve quem viesse notar como o galardão veio passar o pano por aquelas manchas. Num texto que teve ampla repercussão nas redes sociais, José Barata, professor jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, identificou na atribuição do prémio “uma perversidade só possível porque, de facto, estão-se a rasurar algumas memórias”. Para este, o premiado não merece ver as suas qualidades humanas exaltadas a reboque do seu percurso académico, o qual não põe em causa. Por outro lado, faz de Aguiar e Silva “um sósia do Julian Sorel de Stendhal; do Rastignac de Balzac”. De resto, lança algumas questões: “Saberá a Senhora Ministra cuja 'fala' terá que ser 'também' política o trajecto percorrido por Aguiar e Silva? De delfim do regime e seguidor de Miranda Barbosa? de deputado na Assembleia Nacional ao lado de Fezas Vital, solicitando poucos dias antes de um 28 de Maio, mais repressão sobre os estudantes de Coimbra na Crise de 1969? colaborando com a PIDE, na denúncia dos estudantes da sua própria Faculdade, num processo que muitos de nós guardamos como o grau zero da ética?”

Para que a polémica não estale nunca em condições de revirar seja o que for, conta não apenas o silêncio, mas também a brandura de certas reacções bastante mornas, sinalizando um incómodo, mas leve, nada que exija empunhar um martelo, até porque, mesmo tratando-se da maior distinção literária da lusofonia, o Prémio Camões não se distingue dos restantes que se vão trocando no nosso meio literário. E, no entanto, estamos suficientemente esclarecidos sobre os caprichos do espírito, e sabemos como este sopra como quer, pela boca de quem lhe apetece, e, faz parte de uma certa ideia de maturidade do público reconhecer que há algo de truculento e mesmo caótico na forma como os dons se revelam. Alguns dos maiores autores da contemporaneidade aclamaram as piores formas de tirania que o século passado concebeu, e não se pode atribuir isto a um mero erro de avaliação nem a ingenuidade das suas leituras, ou sequer a “um fascínio perturbado”, pois o que há muitas vezes é até uma espécie de ânimo vingativo, por parte daquele que, incapaz de desempenhar o papel que julga seu por inerência das suas qualidades, sonha pôr um freio fascista à sociedade, para subjugá-la a uma ideia de ordem e justiça que não admitem a indisciplina e o caos próprios da liberdade. Num dos seus ensaios, Claudio Magris diz que “continuamos a amar Pirandello, apesar do seu telegrama de solidariedade a Mussolini depois do assassinato de Matteotti; a Céline, apesar das Bagatelas para um massacre; a Hamsun, apesar da sua adesão ao nazismo; a Éluard e a Aragon, apesar da sua aprovação dos processos e execuções estalinistas”. O que resta saber, no caso de Aguiar e Silva, é se a sua extensa obra, o seu contributo, o coloca a par dessas figuras que, até mesmo pelo que há de contraditório nelas, conseguem ser personagens muito significativas na leitura mais vasta que vamos fazendo do mundo, e as suas contradições, essas águas negras das quais recolhemos os seus reflexos são, por assim dizer, um material valiosíssimo para esse folhetim gigantesco das notas escritas nas margens, ajudando-nos a compreender esse vínculo que torna tantas vezes indestrinçável o bem e o mal no que diz respeito às grandes obras literárias. E é neste aspecto que, como reconhece Magris, estas figuras podem muitas vezes ensinar-nos tanto mais pois a sua mestria obriga-nos a ultrapassar um certo repúdio que pode também ele ser leviano, levando-nos a entender o sofrimento e a compreendermos essa espécie de eclipse do juízo crítico mais solidário e humano que leva alguns a alterarem a sua visão do mundo. “A literatura moderna não é uma viagem através do mar, mas através das cinzas e da desolação”, lembra Magris, e defende, por isso, que se há espaço para uma literatura comprometida, esta não deve nunca ter a pretensão ou a arrogância de estar do lado certo da história, e o que é preciso defender, na verdade, é a sua liberdade absoluta para assumir posições pouco éticas e até antiéticas, “porque não lhe cabe formular juízos teoréticos nem muito menos proclamar ideologias, mas sim exprimir experiências e, portanto, pode expressar a fé em Deus ou a sua negação, pois cada indivíduo, na odisseia da sua vida, pode ter a experiência de ambas e a literatura conta essa experiência, sem se deixar coagir ao ponto de formular um qualquer credo”. Assim, é bem possível que Vítor Aguiar e Silva seja um pulha, um bufo, em alguns aspectos uma personagem desprezível, mas isso não impede que a sua obra mereça a nossa melhor atenção.