João Pereira Coutinho: “Há hoje uma espécie de salazarismo do avesso”

Coloca ao mesmo nível os que no Estado Novo se orgulhavam do Império e os que hoje se envergonham dele. Reduzir o passado à barbárie ‘é uma forma de neurose histérica’, acusa João Pereira Coutinho.

Professor na Universidade Católica (onde se doutorou em Ciência Política) e colunista com seguidores fiéis tanto em Portugal como no Brasil, João Pereira Coutinho é um dos mais destacados comentadores políticos assumidamente de direita. Nas suas crónicas provocatórias, que se distinguem pelo uso do humor e da erudição em doses generosas, não esconde as suas simpatias politicas – e ainda menos as suas antipatias. Convidado pelo Nascer do SOL para uma conversa, citou uma frase do escritor russo-americano Vladimir Nabokov: «Penso como um génio, escrevo como um vulgar homem de letras e falo como um idiota». João Pereira Coutinho diz que não vai tão longe – «nem no génio, nem no idiota» – mas preferiu ainda assim responder por escrito. Falou sobre os erros do Governo na gestão da pandemia, sobre Marcelo e Passos Coelho, sobre o CDS e o Chega. E explica por que acha que as suas previsões sobre Rui Rio se estão a confirmar.

O pior da pandemia parece já ter passado mas ainda não podemos deitar foguetes: Portugal é neste momento o 8.º país com mais mortes por covid-19 por milhão de habitantes. Acha que a culpa deste péssimo registo é mais do Governo ou dos portugueses?

O fracasso pertence ao Governo. Se partirmos do pressuposto de que a função básica de qualquer Estado é proteger os cidadãos, o número obsceno de mortes por covid é a imagem desse fracasso. Não somos caso único. A pandemia expôs de forma brutal a crise dos estados ocidentais. Eu sei que a retórica é outra: os estados são importantíssimos, até os liberais se renderam à evidência, etc. Um erro: os estados que temos falharam. Precisamos de estados mais capazes, mais ágeis e mais profissionais para executarem as suas tarefas básicas.

Quais lhe parecem ter sido os erros mais grosseiros que contribuíram para este estado de coisas? Por exemplo a abertura no Natal (a que se referiu ironicamente como ‘o bacalhau cozido’)?

Sem ironia, o problema central foi o negacionismo face à pandemia. A palavra é usada para descrever aqueles maluquinhos que negam a existência do vírus e a gravidade da doença. Mas há um tipo de negacionismo bastante mais letal porque é cultivado por quem tem responsabilidades públicas. É o negacionismo de quem nos disse que o vírus não chegaria cá e que as máscaras davam uma ‘falsa sensação de segurança’. É o negacionismo de quem abriu excepções politicamente convenientes para se realizarem festas e festanças enquanto a restante população era fechada em casa. É o negacionismo de quem, por pura obsessão ideológica, dispensou o esforço conjunto de todo o sistema de saúde, público e privado. É o negacionismo de quem não planeou nada em tempo útil, da testagem aos rastreamentos, da vacinação ao ensino à distância.

Com a má gestão da crise sanitária, uma crise económica sem precedentes à vista, os antigos aliados a abandonarem-no e os adversários internos a assumirem-se (ou pelo menos Pedro Nuno Santos), acha que António Costa começa a ficar encurralado? Prevê um cenário de crise política?

Não prevejo e nunca previ. Uma crise política precisa de duas condições: falta de dinheiro e a existência de uma alternativa. Basta lembrar 2011, quando ambas afastaram José Sócrates. Neste momento, há 16 mil milhões de euros a caminho, em subvenções e empréstimos europeus, que serão usados para as despesas regulares do Estado – e não, como se pensa, para transformar a economia do país para as gerações vindouras. E a alternativa chama-se Rui Rio, o que significa que, de momento, não há alternativa.

Ao mesmo tempo, o PSD não parece estar a conseguir tirar proveito do descontentamento nem do momento de maior fragilidade do Governo. Falta agressividade a Rui Rio?

Falta inteligência política mínima. O dr. Rui Rio colocou o PSD ao centro, como ele diz, sem perceber três coisas medianamente óbvias: o centro é do PS, que lá continuará; os portugueses do centro-direita que ainda votam começam a dispersar-se por novas freguesias; e os portugueses de centro-direita que deixaram de votar não se reveem neste PSD e continuam em casa.

Há cerca de um ano disse a propósito das eleições no PSD: ‘Se Rui Rio vencer, prevejo um futuro negro’. As suas previsões estão a confirmar-se?

Creio que sim. Basta apenas dizer isto: a Economist, recentemente, voltou a colocar Portugal na lista das democracias com falhas. E, entre as razões para a despromoção, lá estava o fim dos debates quinzenais com o primeiro-ministro, proposto pelo PSD. Posso estar enganado, mas é a primeira vez que vejo um líder da oposição a contribuir para a degradação da qualidade da democracia no seu país. Normalmente, isso é uma prerrogativa dos governos.

Rio garantiu que não faria uma coligação com Ventura, mas o crescimento do Chega parece tornar cada vez mais provável um cenário em que não será possível formar um governo de direita sem o Chega. Vê alguma solução para este impasse?

Confesso que essa conversa sempre me pareceu bizarra. É uma conversa que só interessa às esquerdas e ao próprio Chega, que até já fala nos ministérios que gostaria de ter! Uma vez mais, essa conversa revela a fraqueza do PSD, que desistiu de ser uma alternativa forte ao governo e permite que a discussão seja colonizada por terceiros. Se o PSD vencesse eleições sem maioria absoluta, poderia formar um governo minoritário como António Costa em 2015. Depois, o ónus da sua sobrevivência estaria no Parlamento e nos partidos à direita, tal como aconteceu com a “geringonça”. Eles que decidissem: preferem o PSD a governar ou o regresso das esquerdas? Não é rocket science.

Acha que Passos Coelho já cumpriu o período de nojo ou ainda é cedo para se falar no seu regresso? Poderia ser o homem capaz de federar a direita?

Não faço ideia do que vai na cabeça do dr. Passos Coelho. Foi um bom primeiro-ministro num contexto dramático. Mas regressar ao mesmo lugar do passado? Talvez, mas isso também é um sinal do nosso bloqueio. Vê os Estados Unidos a discutirem o regresso de Obama ou a Grã-Bretanha a discutir o regresso de Cameron ou Blair? Em latitudes civilizadas, as gerações políticas passam e renovam-se, não são este museu de relíquias em que nos transformámos.

Além do primeiro-ministro, uma figura que tem sido muito visada por certos setores, que o acusam de ‘conivência’ com o Governo, é o Presidente. Existe uma direita que não gosta de Marcelo?

Sempre fui muito modesto nas críticas ao Presidente Marcelo. Não que ele não mereça reparos por um primeiro mandato de excessiva colaboração com o Governo, o que só reforça a minha crença de que os mandatos presidenciais deviam ser únicos e com a mesma duração dos actuais. Mas é preciso não confundir os papéis: muitas das falhas atribuídas a Marcelo são formas de desresponsabilizar o Governo, que é quem detém a acção executiva. Além disso, esperar que o Presidente faça o papel que a Oposição não faz só revela a fraqueza de uma parte da direita.

Face aos resultados das presidenciais, com o crescimento do Chega e da Iniciativa Liberal, o líder do CDS foi posto em xeque. Diz-se que o CDS corre o risco de desaparecer. Mas Francisco Rodrigues dos Santos, que está no cargo há apenas um ano, tem culpa disso? Afinal foi precisamente esse processo de erosão que levou à saída de Assunção Cristas. Acha que o CDS, ensanduichado entre o Chega (mais popular e combativo) e a IL (que tem a frescura de um partido jovem) está condenado ou ainda tem hipótese?

Regularmente, instala-se por aí uma discussão bizantina sobre a natureza do CDS: democrata-cristão? Liberal? Conservador? Populista? Marciano? Acho piada, claro, mas nestas matérias prefiro ouvir um eleitor regular do CDS, que tem pouca paciência para os dramas identitários do clube. O eleitor regular quer pagar menos impostos; quer autoridade onde ela falha (nas escolas, nas ruas, etc.); quer um Estado que ajude quem realmente precisa; e, em matéria de costumes, há uma maior inclinação pela prudência e pelo conservadorismo. Podemos dizer que a IL e o Chega dividem estas preocupações. Mas nenhum deles é capaz de as congregar inteiramente: a IL promete menos impostos, mas falta-lhe o conservadorismo de costumes; o Chega defende a autoridade, mas falta-lhe um mínimo de humanidade para os deserdados deste país. Se o CDS tivesse um líder carismático capaz de defender o básico, talvez a conversa fosse outra.

Por um lado a direita parece muito dividida, uma espécie de família desavinda. Mas a esquerda, nas presidenciais, também obteve um resultado fraquíssimo, com os candidatos, todos juntos, a recolherem uns meros 20%. O que é que isto faz prever para as autárquicas de setembro/outubro?

Há duas certezas e duas dúvidas para as autárquicas. Entre as certezas, o definhamento do PCP e a inexistência do Bloco. Entre as dúvidas, saber se o PS cai muito e saber se o PSD sobe muito, conquistando cidades importantes como Lisboa, Porto ou Coimbra. Tenho dúvidas sobre ambas.

Paulo Pedroso, face aos bons resultados do Chega (e maus resultados da esquerda) vaticinou um ‘inverno democrático’ caso não haja mudanças. O Chega pode constituir uma ameaça à democracia?

Há duas formas de olhar para fenómenos como o Chega. A primeira é através do insulto, o que pode ser benéfico para a saúde cardiovascular. A segunda é tentar perceber. E, aqui, não há grandes mistérios: os partidos populistas são um sintoma, e não uma causa, de uma democracia disfuncional. O dr. Paulo Pedroso devia preocupar-se mais com as causas: a exclusão económica e social de milhões de portugueses, a corrupção endémica para que apontam vários relatórios internacionais, a desconfiança geral face aos partidos tradicionais, a captura do Estado por lóbis diversos, enfim, a lista é generosa e, sobretudo, dá muito trabalho a resolver.

Como referiu, Portugal foi recentemente despromovido no ranking da Economist, de ‘democracia plena’ para ‘democracia com falhas’. Este Governo tem tiques autoritários?

Para a Economist, tem. Entre as razões para a nossa despromoção democrática está, por exemplo, o processo de nomeação do presidente do Tribunal de Contas. De certa forma, o que a Economist está a dizer é que a erosão da democracia é hoje exercida de forma subtil: pelo condicionamento do poder judicial, por exemplo. Há sinais de que isso está a acontecer por cá.

Temos assistido a sucessivas polémicas envolvendo o nosso passado. Primeiro vimos o Padre António Vieira ser acusado de racismo. Depois foi a denúncia (por Daniel Oliveira, por exemplo) do nosso papel no tráfico de escravos e a controvérsia em torno de um hipotético Museu dos Descobrimentos. No 10 de junho de 2018 Catarina Martins disse que o Presidente tinha perdido uma oportunidade para pedir desculpa. Mais recentemente, tivemos a discussão sobre a retirada dos brasões florais na Praça do Império e sobre a figura do tenente-coronel Marcelino da Mata, considerado um herói por uns, mas acusado por Mamadou Ba de ser um “sanguinário”. Será abusivo ver em todos estes casos diferentes momentos de uma campanha para fazer de Portugal e dos portugueses os maus da fita da História?

É uma espécie de salazarismo do avesso: durante o Estado Novo, o império era o orgulho da raça. Agora, é a vergonha da raça. Em termos científicos, estão ao mesmo nível – o nível da propaganda. Que as nossas aventuras ultramarinas se fizeram com uma boa dose de violência e barbárie, eis um facto que nenhuma pessoa letrada nega. Mas reduzir o passado a isso, e apenas a isso, é uma forma de neurose histérica só pode ser cultivada por conveniência profissional ou ignorância amadora.