Marcelo e Costa em jogos de xadrez

Costa quis ‘dar xeque’ a Marcelo, logo no início deste 2º mandato, quiçá visando transformá-lo num mero tabelião sem qualquer margem para juízos independentes, e este foi o pretexto.

Tanto já foi escrito sobre a promulgação de Marcelo dos 3 (três) apoios sociais e o facto de ser ou não constitucional face à Lei Travão (n.º 2 do art.º 167.º da Constituição) por renomados comentadores e conceituados constitucionalistas (muitos deles ligados à esquerda), que não irei por esse caminho da legalidade ou ilegalidade da decisão de Marcelo. Este promulgou, Costa entendeu recorrer ao Tribunal Constitucional e estes factos são elidíveis, ficando as razões para as interpretações de cada um.

Acho muito curioso que estes específicos apoios sociais não tenham sido considerados no OE pelo PS, sempre alegadamente tão defensor dos desprotegidos desde 2015. Quem não se lembra dos seus fervorosos combates contra a austeridade imposta por Passos Coelho e pela troika (que o seu antecessor Sócrates teve de chamar) nunca hesitando na devolução de rendimentos, sobretudo a todos os que representam a sua base eleitoral? 

Como a ‘manta é curta’ para tanto apoio nesta época de pandemia, transformou-se esta promulgação de Marcelo num ‘berbicacho’ para Costa e Leão (utilizando as palavras de Costa noutro enquadramento). Alguém acredita? Como se algo que representará cerca de Euros 40 M mensais fosse obstáculo intransponível, quiçá até podendo encontrar cabimento nas verbas repetitivamente cativadas? Sobretudo porque beneficia quem precisa, como são os ‘trabalhadores independentes’ e os ‘sócios-gerentes’, os ‘pais que ficam em casa em teletrabalho com filhos’, além de flexibilizar a contratação dos profissionais de saúde.

Marcelo, na excecionalidade da pandemia e dando primado à substância sobre a forma, promulgou estes diplomas aprovados pela oposição a 3 março, sobretudo porque são necessários e deveriam ter sido incluídos no OE. Vir Costa dizer, na sua ânsia formalista e com a arrogância que o caracteriza, que a situação constitui um precedente perigoso porque a oposição unida poderá torpedear no futuro qualquer Governo lançando o descalabro nas contas públicas, é confundir as pessoas, pretendendo fazer do PS o guardião das ‘boas contas’. 

Mas será que este PS é mesmo o guardião dessas boas contas? Por exemplo, respeitar as boas contas também consiste em não gastar o que o OE prevê devidamente aprovado? Sobretudo quando nos referimos a apoios sociais, tão ferreamente controlados (até cativados), primeiro por Centeno e agora por Leão? 

Ou ainda, terá este Governo PS atuado sempre em conformidade com esse princípio de respeito pela lei-travão? Então as decisões tomadas de vender o Novo Banco com uma cláusula de correção de preço pela possibilidade de os compradores serem ressarcidos em caso de prejuízos ‘ocultos’ até Euros 3,9 MM ou na TAP, em que se aprovou injetar até Euros 4 MM não furaram, em substância, a lei-travão, dado não terem sido precedidas de inclusão no OE? Ou ainda a aprovação da lei das 35 horas semanais também foi precedida de inclusão dos seus impactos no OE? 

Deixemo-nos de subterfúgios: Costa quis ‘dar xeque’ a Marcelo, logo no início deste 2.º mandato, quiçá visando transformá-lo num mero tabelião sem qualquer margem para juízos independentes, e este foi o pretexto. Veremos se Marcelo se deixa condicionar, o que sinceramente não acredito, dado que até já lhe devolveu o ‘xeque’, com maior clareza que subtileza, relembrando a importância da aprovação dos próximos dois OE para a estabilidade governativa de Portugal. Mesmo que o Tribunal Constitucional venha a dar razão a Costa, Marcelo ganhou vantagem neste jogo de xadrez e dificilmente a cederá.

P.S. 1 – Um destes dias, em boa hora li uma entrevista do Embaixador António Martins da Cruz ao DN, apontando algumas críticas na condução da política externa portuguesa em relação a África (sobretudo quando temos a Presidência da União Europeia e nem uma cimeira com África conseguimos realizar). Ideias claras, um fervilhar de sugestões. Só o título de ‘per si’ é sugestivo: «a aposta de Espanha em África não deixa de ser uma bofetada de luva branca a Portugal». Animemo-nos por ter pessoas com esta envergadura e clarividência no nosso país. Ouvi-los, é dever de qualquer Governo, seja qual for a cor política.

P.S. 2 – Jorge Coelho sempre mereceu o meu respeito, mesmo muito antes de o ter conhecido pessoalmente. Homem de profundas convicções, era um guião espiritual no PS. Entre-os-Rios e a sua demissão ao referir que “a culpa não pode morrer solteira” caracteriza quem a proferiu e a sua frase deveria estar afixada em todos gabinetes ministeriais (sobretudo quando constatamos que nestes últimos anos de governação socialista os seus princípios não fizeram escola). Quando mais tarde o conheci, pude confirmar uma rara sagacidade e pragmatismo, aliadas a um humor só acessível a pessoas de rara inteligência. O seu saber e ponderação vão fazer falta a Costa, em contraponto aos esquerdistas do PS, à oposição (para saberem ouvir uma voz que sempre se deu ao respeito), a Portugal e, já agora, aos seus familiares e amigos, todos eles destroçados com esta partida inesperada.